Berry Gordy queria enriquecer sem perder tempo e, para tal, tornou-se pugilista. Nascido em 1928, andou pelos ringues até 1950, quando foi incorporado no exército americano que combatia na Coreia.
Certo dia, descansando no ginásio, este sétimo de oito irmãos de uma destacada família da comunidade negra de Detroit, pousou o olhar sobre os cartazes afixados na parede, alguns anunciando combates, um deles promovendo um concurso de bandas. O contraste era evidente: "Pugilistas jovens que tinham 23 anos mas aparentavam 50, esmurrados e cicatrizados... e depois os músicos que tinham 50 mas pareciam ter 23", contou em entrevista ao "Los Angeles Times" na década de 1980. Abandonou os ringues. E enriqueceu rápido, mas não como músico. Como homem que teve uma visão e a concretizou meticulosamente. Como fundador da Motown, a editora que moldou a música americana da década de 1960, a editora que definiu o presente e traçou o futuro da soul, a casa de Marvin Gaye, Stevie Wonder, Temptations, Smokey Robinson & The Miracles, Supremes, Jackson 5 ou Martha & The Vandellas. O seu slogan, "The sound of young America" (o som da América jovem), apontava a uma geração para quem a segregação racial era violência sem sentido.
Retrospectivamente, é classificada como a editora que levou a música negra ao público branco, mas essa é apenas parte de uma história iniciada em Janeiro de 1959, quando Berry Gordy contrai junto de familiares um empréstimo de 800 dólares.
Nos anos anteriores, trabalhara como compositor e tinha conseguido algum sucesso. Em 1957 "Reet petite", co-composta com a irmã Gwen e cantada por Jackie Wilson, tornou-se um êxito local. Em 1958, Wilson passou de estrela local a nacional ao ver "Lonely Teardrops", outra co-composição de Gordy, ascender ao topo da tabela de vendas r&b e, mais importante, escalar ao Top 10 da de pop. A Gordy, contudo, faltava enriquecer.
Uma discussão sobre a divisão dos direitos autorais leva-o a abandonar a colaboração com Jackie Wilson. Um conselho de Smokey Robinson fê-lo dar o passo seguinte. Aquele que era o seu braço direito aconselhou-o a queimar etapas. Ou seja, compor, gravar, produzir e editar. Em resumo, criar uma editora -essa que nomeou primeiro Tamla, que rebaptizou Motown pouco depois e cujos 50 anos de existência, que se cumprem em Janeiro, começaram já a ser celebrados com a edição de um CD triplo composto pelas melhores 50 canções da sua história, segundo votação do público ("Motown 50"), e "best ofs", igualmente triplos, de Marvin Gaye ou Michael Jackson.
A linha de montagem
Nos anos 1920 e 1930, Detroit ultrapassou Chicago como o destino das famílias negras que, vindas do sul rural e conservador, procuravam melhores condições de vida a norte. Detroit, grande centro industrial desde que Henry Ford ali instalara, em 1913, a primeira linha de montagem de automóveis, oferecia possibilidade de ascensão social. Tal contexto é indissociável da Motown. A ideia de Gordy passava pelo reunir de uma equipa coesa de músicos, compositores, cantores e produtores. A estética, como recordou Smokey Robinson ao diário "Guardian" em Novembro, ficou definida à primeira reunião: "Não vamos fazer música negra, vamos fazer música do mundo, vamos fazer música para toda a gente. Vamos fazer óptima música, vamos ter óptimas histórias, fazer grandes batidas". Ou seja, ambicionava-se aplicar o esquema de Henry Ford à produção musical. Criar uma linha de montagem de êxitos.
O primeiro, que chegou em Junho de 1959 pela voz de Barrett Strong, revelava sem pudor a motivação principal de Berry Gordy: "Give me money, that's what I want".
Não foi porém o sucesso comercial que transformou a Motown numa editora fulcral na história da música urbana. Gordy queria dinheiro, mas acreditava que ele só chegaria através de trabalho árduo e de uma excelência a todos os níveis.
Aos lendários Funk Brothers, a banda residente formada por nomes como o guitarrista Danny Coffey, o baixista James Jamerson, o teclista Earl Van Dyke, o percussionista Eddie "Bongo" Brown ou o baterista Richard "Pistol" Steve, era imposto um intenso regime de gravação. Nas manhãs, passadas nos estúdios da editora, que um painel à entrada nomeava "Hitsville, USA", havia que aprender, ensaiar e gravar novas canções, à cadência de uma por hora. As tardes eram ocupadas a trabalhar em novos sons e a ajudar os compositores a dar corpo às suas ideias.
Exercia-se um férreo "controlo de qualidade", com futuros clássicos como "I heard it through the grapevine", de Marvin Gaye, a serem recusados e devolvidos à sala de ensaios. Para passar esse crivo, tinham de ser cumpridos dois requisitos. A canção teria que ser comparada com o top 5 da semana anterior e passar o teste.
Igualmente importante, teria que se enquadrar numa estética aprimorada, aquilo que ainda hoje conhecemos como "o som Motown". Começava no que os produtores chamavam "o princípio Kiss" ("keep it simple, stupid") e acabava nisto: um concentrado de batida soul e melodias pop, de gospel e balanço r&b, engrandecidos por uma produção majestosa onde se conjugavam orquestra e metais, onde se ouviam coros cuidadosamente elaborados e, em sintonia com a "wall of sound" de Phil Spector, a sobreposição de instrumentos (duas baterias, diversas guitarras).
Durante a década de 1960, nenhuma outra editora concentrou em si tamanha dose de talento e popularidade (110 entradas no top 10 de singles entre 1961 e 1971).
Smokey Robinson ou Holland-Dozier-Holland, a mítica tripla formada por Lamont Dozier e pelos irmãos Brian e Edward Holland, alimentavam a linha de montagem com canções como "Reach out (I'll be there)" ou "Stop! In the name of love". Os Funk Brothers transformavam-nas em realidade sónica e os Temptations, os Four Tops, Tami Terrel ou Kim Weston levavamnas para as ruas.
Nos bastidores, Berry Gordy actuava como orquestrador supremo. Foi o primeiro a reunir vários nomes de uma mesma editora para digressões conjuntas, forma de aumentar a popularidade da Motown e permitir aos novos talentos ganhar traquejo. A todos eles, por considerar que representavam a comunidade negra perante a América e que, como tal, deviam ser alvo de orgulho, exigia que se comportassem como uma nova forma de realeza: por isso, jovens como Stevie Wonder ou mais jovens ainda como Michael Jackson, a voz precoce dos Jackson 5, eram acompanhados por equipas de estilistas ou aconselhados quanto à etiqueta a cumprir nos diversos contextos.
Por outro lado, em tempos de marchas pelos direitos civis e de violentos motins, como o que se viveu em Detroit, às portas da Motown, em 1967, era recusado qualquer tipo de comprometimento político que pudesse prejudicar financeiramente a empresa.
A emancipação criativa
Gerida com mão rígida, com a liberdade artística subjugada ao bom funcionamento da linha de montagem, a Motown era ainda assim uma "meritocracia". Por isso mesmo, duas antigas secretárias da editora transformaram-se em estrelas maiores -falamos de Diana Ross, a cara das Supremes, e de Martha Reeves, cantora de "Dancing in the street" e líder das Vandellas. O mesmo percurso ascendente protagonizou Marvin Gaye, que entrou para a editora como baterista (era o quarto na hierarquia do estúdio) e que se ergueria, a par de Diana Ross, a nome maior da Motown. Curiosamente, seria também, no início da década de 1970, um dos responsáveis pelo desmantelamento da "fábrica" enquanto unidade coesa.
Os primeiros sinais de mudança surgiram quando Berry Gordy entrou numa reunião empunhando um álbum de Sly & The Family Stone, banda que causava furor com uma inaudita fusão de funk, soul, rock'n'roll e psicadelismo. "Isto é o que está a acontecer", terá exclamado. A Motown, "o som da América jovem", teria que o acompanhar.
Com Lamont-Dozier-Holland fora de cena desde 1968, ano em que não viram satisfeitas as pretensões a uma maior fatia de royalties, Norman Whitfield, génio instintivo, tornou-se a figura fulcral na definição do novo som Motown. Fã dos Funkadelic, percebia o psicadelismo e guiou até ele o Edwin Starr de "War", manifesto em plena Guerra do Vietname, e os Temptations de "Cloud Nine" ou "Psychedelic Shack", obras-primas definidoras de uma nova soul.
A Motown mudava e transformarse-ia definitivamente quando, em 1971, Marvin Gaye quebra o rígido controlo imposto por Gordy. Em total liberdade criativa gravou "What's Going On", álbum maior na história da música popular e um imenso sucesso de vendas.
A brecha estava aberta. Nos anos seguintes, Stevie Wonder atinge a maioridade e pede também a emancipação -inicia uma memorável sequência de álbuns ("Talking Book", "Innervisions", "Fulfillingness' First Finale"). Os Temptations tornam-se cada vez mais políticos, adoptando o "sing it loud/ I'm black and I'm proud" de James Brown e dos Black Panthers, e Michael Jackson começa o seu processo de amadurecimento.
A Motown continuou a coleccionar êxitos, mas deixou de ser maior que os artistas que albergava. Tudo mudara. Em 1972, Berry Gordy, ambicionando expandir a editora ao cinema, transfere-lhe a sede para Los Angeles. Dividida entre a produção de séries de televisão, filmes como "Lady Sings The Blues" (biopic de Billie Holiday com Diana Ross) ou "The Wiz" (adaptação d'"O Feiticeiro de Oz") e a edição musical (na segunda metada da década de 1970, os Commodores de Lionel Richie emergiram com grande sucesso), vai perdendo influência e liquidez. Em 1988, a acumulação de prejuízos leva Berry Gordy a vende-la à MCA.
Actualmente, a Motown pertence à Universal Music e tem no seu catálogo nomes como Erykah Badhu ou Q-Tip. À beira de cumprir 50 anos, temo-la novamente a ditar o presente -ouvir Amy Winehouse e Duffy é rever a história do período áureo da Motown. À beira de cumprir 50 anos, temos por certo que, sem ela, a história da música popular urbana não seria a mesma e conjecturamos que, provavelmente, a desta América que elegeu Barack Obama também não.
Feito notável. Afinal, falamos de uma empresa fundado com um propósito demasiado básico para aquilo que atingiu: Enriquecer rapidamente.