História do cinema português com aspas

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Saindo da A8, as referências para chegar ao ANIM (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) são um toldo amarelo e um candeeiro de ferro torto.

Não é muito, mas já não estamos na cidade: o cofre-forte da Cinemateca Portuguesa é uma quinta no campo a meia hora de Lisboa, uma excentricidade zen no alto de uma paisagem visceral.

A colecção de filmes da Cinemateca é aqui guardada em caves com temperaturas rigorosamente controladas, ao ponto de a ventilação reagir à presença humana. "Le Soulier de Satin" de Manoel de Oliveira: 26 bobines. "Lord of the Rings": 5 bobines.
Não se tira o casaco porque faz tanto ou mais frio dentro do ANIM quanto fora, o que também é válido para o gabinete de Tiago Baptista, 32 anos, historiador e conservador de cinema português.

A Tinta-da-China acaba de publicar "A Invenção do Cinema Português", que tem o formato que tem, de álbum ilustrado (ninguém suspeitava que o cinema nacional dava um "coffee table book"), mas é uma acha para a fogueira onde normalmente se queimam argumentos e convicções sobre o cinema feito em Portugal. Podia ser uma história do cinema português, mas é uma história do "cinema português" -com aspas. É o livro de alguém cuja experiência enquanto espectador não coincide com tudo aquilo que se diz do cinema portu- guês. Encarem-no como um manual para desmontar as armadilhas disso a que chamamos "cinema português" e que ganhou vida própria, independentemente dos filmes, cá dentro mas também lá fora.

"O conceito de 'cinema português' é ideologicamente muito carregado", nota Tiago Baptista. "Tem muitíssimas conotações mas é utilizado de maneira muito neutra e transparente como se não fosse um conceito muito opaco. É uma expressão que está longe de designar apenas o conjunto de filmes produzidos em Portugal. Ela já traz consigo todas as ideias feitas, preconceitos e 'clichés' sobre o que o cinema português é ou não é."

Obsessão

O livro mostra como o cinema português foi sempre um cinema aspirante: o debate sobre o que ele devia ser, obsessão actualíssima, não nasceu ontem. A primeira coisa que se lê quando se abre o livro é "O cinema português sempre existiu" (título da introdução) e deve ler-se "O 'cinema português' sempre existiu". Apesar de parecer uma constatação inocente, é tão provocatória quanto "O cinema português nunca existiu" de João Bénard da Costa, monografia publicada em 1996 (edições CTT) e tese por ele explorada no documentário de Manuel Mozos, "Cinema Português?" (1997).

Partindo de uma selecção de meia centena de filmes, do lumièreano "Saída do Pessoal da Camisaria Confiança" (1896), do pioneiro Aurélio Paz dos Reis, a "Aquele Querido Mês de Agosto" (2008), filme-cometa de Miguel Gomes, o livro de Tiago Baptista mostra como o cinema feito em Portugal foi sempre refém de uma construção mental do que devia ser esse cinema.

A obsessão com a criação de uma cinematografia nacional não é uma "especificidade" portuguesa, nota o autor, mas "não era obrigatório que se definisse como uma cinematografia acerca da identidade nacional". Ou, como escreve na introdução, um cinema que quer falar mais sobre o 'ser' do que sobre o 'estar' -ser 'português', naturalmente". Tiago Baptista precisa: "Os filmes portugueses ao longo do tempo dizem-nos mais sobre a ideia de Portugal que estava na cabeça das pessoas que o fizeram do que sobre o país. Os filmes portugueses estão muito longe de serem usados como documentos sobre a época histórica em que foram produzidos."

O "cinema português" sempre idealizou um país maior do que realmente era?

"Não sei exactamente. Durante muito tempo, não estava preocupado em fazer um retrato do país. Estava preocupado em mostrar o que o país devia ser."

Um retrato "bigger than life", portanto?

"De certo modo, sim. Nesse sentido, não estava tão atento ou não privilegiava um olhar sobre a contemporaneidade, sobre a realidade, sobre aquilo que estava mais próximo. Havia sempre a tentação de partir de algumas ideias pré-concebidas sobre o que o país era e ir ao encontro das situações dramáticas ou dos cenários naturais e dos tipos humanos que confirmassem essas ideias -que vinham da literatura, da filosofia, da arte." Se ele fala no pretérito imperfeito é porque, apesar de tudo, a década de 90 representou uma mudança. "Os filmes feitos a partir dos anos 90 põem entre parêntesis a preocupação em fazer cinema português. Querem só fazer cinema", resume Tiago Baptista.

A culpa para a obstinação identitária do cinema português remonta ao tempo do mudo. O livro chama a atenção para o facto de até os primeiros filmes feitos por um português serem feitos a pensar num mercado estrangeiro, nomeadamente brasileiro. O "flop" foi total, ao ponto de Aurélio Paz dos Reis ter desistido de fazer cinema. Mas a partir daí e até aos anos 50, o cinema português foi pensado como "um embaixador", assinala Tiago Baptista, "uma espécie de cartão de visita que veiculasse uma certa ideia do país no estrangeiro".

Para mais, acreditava-se que a criação de uma cinematografia nacional "seria um factor de distinção para melhorar a competitividade do cinema português", tanto a nível externo como interno. Que a marca nacional tenha sido isco para a promoção dos filmes portugueses é qualquer coisa que parece uma impossibilidade nos dias que correm, mas está à vista em "A Invenção do Cinema Português".

Cartazes dos anos 30 e 40, incluídos no livro, revelam todo o tipo de experiências que se fizeram com a escala da portugalidade. "A Severa" (1931): "O mais português dos filmes portugueses". "A Canção de Lisboa" (1933): "O primeiro filme português feito por portugueses". "Fado, História d'Uma Cantadeira" (1947): "No mais português de todos os filmes". O último filme a publicitar-se como "português" é "Os Verdes Anos" (1963), de Paulo Rocha: "Um filme português inesperado". O cinema novo foi uma ruptura, mas tal como o cinema dos anos 50, que condena, esforça-se por representar uma ideia do país. Esta, diz Tiago Baptista, é "a ideia mais estrutural e transversal na história do cinema feito em Portugal" e o livro tenta dar conta dessa continuidade, por ordem cronológica, e debruçando-se sobre casos específicos.

É, de certo modo, um processo dinâmico, a história do cinema português também é uma história de recomeços. "Tendo em mente que o que interessava era criar uma cinematografia nacional, com características distintivas de todas as outras, havia sempre um diagnóstico de que o cinema que estava para trás não tinha cumprido esse objectivo. E que era preciso fazer tábua rasa, arrancar de novo. Isso foi um ciclo repetido ao longo de grande parte da história do cinema português", assinala Tiago Baptista. É a ilustração do mito sebastianista: o cinema português é o cinema das expectativas não cumpridas.

Mesmo que a partir dos anos 90, alguns realizadores e obras dinamitem essa concepção de um cinema nacional, o cinema português "já é estigmatizado pelo público ou idolatrado por alguma crítica estrangeira como uma cinematografia muito específica". Ao ponto, sublinha Tiago Baptista, de poder funcionar como um género, com os devidos efeitos redutores.

Desmontar o cânone

A proposta de "A Invenção do Cinema Português" não é fixar um cânone, é, quando muito de desmontá-lo, admite o autor. A visão é radioscópica, integra cinema de autor e cinema comercial, "O Crime do Padre Amaro" e "Juventude em Marcha" ocupam o mesmo espaço -apesar de tudo o que os separa e que é quase tudo, são filmes que procuram abordar a realidade contemporânea. "Os filmes que aqui estão são aqueles que ajudaram a construir ou desconstruir a ideia de cinema português", diz Tiago Baptista.

"A Invenção do Cinema Português" é também um contributo assinalável para a visibilidade de uma cinematografia que, apesar de tudo, permanece pouco vista. O "cinema português", conclui o autor, é uma "categoria mentirosa", a prova são as reacções ao seu livro. "Algumas pessoas já me disseram que acham as imagens [cenas dos filmes, fotografias de rodagem, cartazes e material promocional] muito bonitas. E dizem-no com algum grau de surpresa. Porque o facto de estas imagens serem tão bonitas e apelativas não bate certo com a ideia que elas têm do cinema português -como uma coisa muito obscura, feia, cinzentona."

Esta ideia também não batia certo com o que ele, Tiago, via nos filmes portugueses. Por isso é que fez um livro.

"Gostava de pensar que é um livro para qualquer pessoa que tenha alguma curiosidade em relação ao cinema português e espero que não seja apenas para as pessoas que já gostam de cinema português."

O facto de ser alguém com um conhecimento anormal do cinema português -Tiago Baptista é especializado em cinema mudo -coloca-o por vezes em situações especiais. "Lembro-me que uma amiga ficou muito surpreendida quando eu lhe disse que alguns dos filmes da minha vida são portugueses. Isso era qualquer coisa de inimaginável para ela. Mas é verdade. Não são os únicos, mas são alguns."

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