A antiga rua dos armazéns dos tecidos está por conta de uma nova geração
A artéria está a caminho de se tornar na Rua da Galeria de Paris, parte dois. Já lá está o Plano B,
e anunciam-se mais bares. Pelo meio, também surgem novos conceitos de comércio
a As ruas, tal como as cidades, são organismos vivos, em constante mutação. A Rua de Cândido dos Reis é um bom exemplo disso: foi aberta nos primeiros anos do século XX, e desde essa época que há registo de armazéns de tecidos na artéria. Porém, a actividade entrou em crise acentuada na década de 90, e dos vários armazéns que aí existiam sobram apenas dois. "Quem se deslocava a esta rua vinha especificamente para comprar tecido a metro. Agora, há jovens a procurar novos negócios e a investir", admite José Alberto Ribeiro, um dos sócios da Camões & Moreira, no ramo têxtil desde 1947. Na Cândido dos Reis, vive-se um período de transição: há uma nova geração a tomar o controlo da actividade comercial, com bares e lojas de cariz urbano e cosmopolita. A partir das 18h00, este arruamento já não é um deserto.O estabelecimento "âncora" desta nova vida é o Plano B, um projecto multidisciplinar que é bar, discoteca, sala de exposições, projecções e concertos. Aberto ao público em Dezembro de 2006, o Plano B foi pioneiro e acabou, depois, por beneficiar do movimento nocturno criado na zona envolvente, desde a Rua de José Falcão até à vizinha Galeria de Paris, onde há a maior concentração de bares. Mas a Rua de Cândido dos Reis está a caminho de ser uma séria competidora: nas próximas semanas, abre um novo bar, no belo edifício com influências de Arte Nova, no número 75. O novo projecto vai ter como referência a Tendinha dos Clérigos, ou seja, o rock vai imperar na pista de dança, situada na cave. E ainda ouvimos falar de pelo menos mais um bar, a avançar em breve.
Mas voltemos ao Plano B. O espaço, gerido pelos arquitectos Bernardo Fonseca e Filipe Teixeira e pelo artista plástico e músico João Carlos, nasceu na sequência de festas privadas e concertos organizados no antigo armazém abandonado. O álcool e a cafetaria, aberta durante a tarde, compensam o investimento na agenda artística (que pode ser vista em www.planobporto.com). De quinta-feira a sábado, as duas salas da cave são das mais concorridas da cidade para dar um pé de dança. Os DJ são habitualmente de topo, e já por lá passaram o francês Gringo da Parada e Reuben Wu, membro dos Ladytron. O consumo mínimo ronda os 5/7 euros.
O novo cosmopolitismo da rua não se fica pela boémia. Tendo como sócios os proprietários do Plano B, a brasileira Flavia Brunetti, consultora de moda, lançou a Mezzanine, uma concept store com 250 metros quadrados de roupa de jovens criadores, marcas exclusivas em Portugal e peças vintage. Para além disso, também há mobiliário (tudo o que está na loja está à venda), objectos de design e pequenos adereços. Na mezzanine que dá o nome ao espaço está a cabeleireira Carla Neiva.
Alguns metros depois, encontra-
-se a Take Me, um paraíso kitsch e retro. Um quadro do "menino da lágrima", colocado atrás do balcão, quase dispensa mais apresentações: entrar aqui é como viajar no tempo (ou explorar o sótão dos avós) e resgatar aquilo que agora pode ser cool (um tupperware dos anos 70 ou um aparador de madeira dos anos 60, por exemplo). Papel de parede, fotografias e artesanato urbano são mais algumas das propostas. A galeria e a pequena loja da cooperativa cultural Gesto também são locais de passagem recomendada.
O lado tradicional
Mas também há lojas que resistem à passagem do tempo. Podemos referir, no cruzamento com a Rua das Carmelitas, os Armazéns da Capela, também chamados de A Pompadour. É um estabelecimento centenário, com um belo pára-sol de ferro e vidro. Os labirínticos Armazéns Marques Soares, a caminho dos 50 anos, têm uma entrada em Cândido dos Reis. E podemos ainda falar da Biblioteca Musical, uma loja especializada em partituras, especialmente de música clássica. A casa foi fundada em 1927, e está na rua há mais de 50 anos, com azulejos a representar Beethoven e Wagner a ladear a porta de entrada.
Mas talvez o melhor exemplo de tradicionalismo seja o Club Portuense, uma associação de carácter social e recreativo fundada em 1857, por aristocratas e burgueses. O seu carácter elitista mantém-se, e foi visível na recepção à reportagem do PÚBLICO. O porteiro de serviço indicou-nos que deveríamos "endereçar uma carta à direcção" para quaisquer informações e, em jeito de aviso, frisou que as calças de ganga e as sapatilhas eram proibidas. Não enviámos uma carta, mas sim um e-mail, inquirindo sobre quais as regras de admissão. Ficámos sem reposta, mas em clubportuense.com é possível fazer uma visita virtual aos luxuosos interiores. Já o imponente exterior está à vista de todos: o Club Portuense é um dos proprietários do Palácio do Conde de Vizela, da autoria do arquitecto Marques da Silva, e que preenche todo o quarteirão leste das Carmelitas, desde 1920.
Falta apenas recordar a figura trágica de Cândido dos Reis: o almirante republicano suicidou-se na madrugada de 5 de Outubro de 1910, pensando que a revolução tinha falhado. Na rua a que deu o nome, vive-se agora uma pequena revolução, mas espera-se que o seu final seja feliz.