A "Material Girl" original

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Não deixa de ser irónico que o seu maior êxito tenha sido uma canção de Natal. Irónico porque Eartha Kitt, autodefinida como "sexy kitten", era a representação máxima de sedução e carnalidade. As suas canções, com as palavras perversamente ronronadas, e as suas actuações ao vivo, onde expunha um glamour provocante e a agressiva sensualidade que se tornou imagem de marca, não conjugam bem com a quadra natalícia. Mas "Santa Baby" não era uma canção de Natal normal. Só Eartha Kitt, afro-americana que nasceu na pobreza, na Carolina do Sul, a 17 de Janeiro de 1927, e subiu a pulso até garantir o seu espaço no circuito de clubes e cabarets nova-iorquino poderia, na América segregada e conservadora de 1953, dirigir-se a um respeitadíssimo decano de barbas brancas, vulgo Pai Natal, como Lolita tentadora e extrair daí um clássico intemporal. Eartha Kitt, a quem Orson Welles chamou um dia "a mulher mais excitante no mundo", morreu aos 81 anos esta quinta-feira, dia de Natal, vítima de cancro no cólon.

No obituário publicado pelo britânico Times, recupera-se uma entrevista em que a cantora de "C'est si Bon" resumiu assim a sua carreira: "Não tenho um número. Faço o Eartha Kitt." Acrescentou: "Quero continuar a ser quem quer que seja Eartha Kitt até que os deuses me levem". Foi-a até ao fim. Deu os seus últimos espectáculos há dois meses e tinha já agenda preenchida para 2009.

A sua carreira dividiu-se pela música gravada em estúdio e pelos palcos da Broadway, atravessou a televisão, o cinema e o teatro. Porém, aquilo que deixa de mais marcante é a sua qualidade de diva: como se o seu brilho, inconfundível, se sobrepusesse à sua obra.

Ao elencar os pontos marcantes do seu percurso, recorda-se a interpretação de Helena de Tróia em "Time Runs", adaptação de "Fausto" por Orson Welles (1950), relembra-se que numa mão cheia de episódios da série televisiva Batman, na década de 1960, encarnou a Catwoman definitiva, lembra-se que contracenou com Nat King Cole em "St. Louis Blues" e com Sidney Poitier em "The Mark Of The Hawk" e assinalam-se canções como as supracitadas "Santa Baby" e "C'est Si Bon", "Just An Old Fashioned Girl" ou "Monotonous". Recordar tudo isso é recolher informação para lhe cartografar a carreira. Para desvendá-la, porém, precisamos de mais.

Quando Madonna iniciou o seu reinado, Eartha Kitt alertou que era ela a "Material Girl" original. Uma mulher a subverter as regras de sedução convencional - Marylin cantava que "diamonds are a girl's best friends" mas Eartha não se satisfazia com tão pouco: "I met a rather amusing fool / While on my way to Istambul. / He bought me the Black Sea for my swimming pool / Monotonous."

Independente e cosmopolita - aos 16 anos já actuava em Paris, falava diversas línguas, cantava em dez -, Earth Kitt nunca se absteve de defender as suas convicções, "no matter what". Em 1968, a sua oposição à Guerra do Vietname, manifestada durante uma cerimónia na Casa Branca, levou a que, no auge da sua carreira, se visse boicotada sem carácter oficial. Impossibilitada de agendar actuações, só regressaria aos Estados Unidos e à Broadway em 1978, integrada no elenco de "Timbutku!", uma versão de "Kismet" transposta para África - entre o público encontrava-se o presidente Jimmy Cárter, que fez questão de a saudar pessoalmente.

Filha de uma trabalhadora rural adolescente e do dono da plantação onde aquela trabalhava, Eartha Kitt, renegada pelo pai, foi enviada para Nova Iorque após a morte da mãe. Ali teve aulas de canto e piano, ali viveu como sem-abrigo, em fuga aos maus tratos que sofria em casa. Uma audição na Katherine Dunham Company garantiu-lhe uma bolsa de estudo e, nos anos 1940, o início de uma longa carreira. A partir daí, tornou-se imune ao tempo.

Em 1984, o single "Where Is My Man", funk moderno apontado à pista de dança apresentou-a a uma nova geração - o tom provocador e a pose eram os de sempre. Há dois meses, as críticas dos seus últimos concertos descreveram uma performer octogenária mestre na sedução e irrepreensível na entrega ao seu vasto repertório. Não temos como duvidar: "Não tenho um número. Faço o Eartha Kitt". É esse o seu maior legado.

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