Wong Kar-wai - Lost in translation

Tudo começou com a voz de Norah Jones a sair do rádio num fim de tarde em Taipé. Wong Kar-wai imaginou aí um filme. Voou para os EUA, convidou a cantora para ser sua actriz e fez “My Blueberry Nights O Sabor do Amor”. Um “road movie” que não o é realmente, numa viagem por uma América onde as empregadas dos “diners” ainda se vestem como antigamente.

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O que faz o dono de um charmoso café nova-iorquino quando a rapariga adormece, cabeça pousada no balcão e um pedaço de chantilly da tarte de mirtilos aquela que ninguém pede e sobra sempre no final da noite esquecido no lábio? Wong Kar-wai sabe o que faria um chinês limparia o chantilly com o dedo e depois beijaria a rapariga. Mas o que faria um americano? Wong Kar-wai não tinha a certeza. E perguntou.

O realizador de Hong Kong fez um filme na América. Partiu da voz de uma cantora Norah Jones e imaginou uma história de desencontros, como são sempre as suas histórias. Mas não queria parecer um chinês a fazer um filme à americana. “Já vimos tantos westerns feitos por chineses, e parecem tão estranhos. Não queria repetir isso. Tentei ser tão próximo quanto possível daquilo que os americanos são”, contou num encontro com jornalistas em Paris.

Foi por isso que fez perguntas. “Quando estávamos a fazer a cena do beijo, disse ao Jude [Law, o dono do café]: ‘A minha ideia é que a rapariga bebeu demais e adormeceu no balcão. A primeira coisa que tu notas é que há um pouco de creme nos lábios dela. Sentes-te atraído por ela.

Vai haver um beijo, mas o que eu faria seria tentar limpar-lhe o creme com os dedos e depois beijá-la. Mas isso seria a forma chinesa de fazer, não tenho a certeza de que fosse a americana”. Acabou por fazer uma votação entre toda a equipa. Ganharam os que diziam que era melhor limpar o creme primeiro. “Percebi que as coisas não são assim tão diferentes”.

Há uma história, uma espécie de mito fundador, sobre “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”. Wong Kar-wai conta-a como se fosse um dos seus filmes, um encontro improvável, uma aposta no escuro e é já impossível sabermos se a idealizou ou se tudo aconteceu daquela forma. É assim: “Estava a fazer uma promoção em Taipé há uns anos. Ficámos presos no trânsito. Eram seis da tarde, azul lá fora, a música de Norah [ Jones] apareceu ["Come away with me"]. Foi a primeira vez que ouvi a voz dela, com essa paisagem em Taipei.
Senti que esta história podia acontecer assim”.

Ele diz não há provas em contrário que o filme nasceu apenas daquela voz a cantar aquela música, e da cor do fim de tarde em Taipé. Nunca tinha visto Norah Jones, não sabia como era o rosto dela, se conseguia ou não representar. Mas foi por causa dela que fez o seu primeiro filme na América.

“Norah não falava outra língua senão o inglês e tinha que ficar nos EUA. Foi a única razão porque fizemos o filme nos EUA”, garante, por detrás dos óculos escuros que nunca tira. Telefonou a Norah, marcou um encontro, e disse-lhe o que queria. E aqui talvez o melhor seja mudarmos de narrador e perceber como é que uma cantora americana, tímida, recebeu a inesperada proposta do realizador chinês num jantar em que, pensava ela, ele lhe iria falar de música: “Olhou para mim e disse: ‘então, Norah, quer fazer um filme comigo?’. Eu não sabia o que dizer, não era isso que eu estava à espera”. “Não sei se consigo representar” Norah também veio a Paris e está, numa sala ao lado da de Wong Karwai, a tentar explicar como é que ali chegou, ela que acha que tem gestos desajeitados e que nunca pensara ser actriz. “[Ter sido escolhida] lisonjeia-me, mas é apenas a forma de ele trabalhar.

Ele desenvolve histórias em torno dos seus actores. Não sei porque é que me quis. Tenho-o ouvido falar disso em entrevistas, mas ainda não sei ao certo porque é que achou que seria boa ideia e porque é que confiou em mim. Eu disse-lhe: ‘não sei se consigo ser actriz, tem a certeza de que me quer a mim?, não era melhor fazer-me uma audição?”. Ela era um poço de dúvidas e inseguranças. Ele parecia não ter dúvida. “Nunca tinha visto imagens da Norah. O primeiro encontro foi com a voz. Honestamente”, repete Wong Kar-wai. “Mas há coisas que num primeiro encontro se percebem, e eu senti: ela consegue”. Ela continuava a não acreditar.

Esperava um guião, alguma coisa em que se pudesse basear para começar a preparar-se. Mas não é assim que ele trabalha. Norah conta: “Duas semanas antes de começarmos a filmar recebemos metade do argumento. Finalmente era qualquer coisa. Depois mudou tanto que era quase inútil, mas pelo menos deu-nos um sentido da história que ele queria contar”. E ela, com o esboço de história na mão, contratou um professor para a ensinar a ser actriz e perguntou ao realizador o que é que ele queria exactamente, o que é que ela deveria trabalhar melhor, como era a personagem.

E ele disse: não quero que tenhas aulas, não quero que aprendas a representar, acho que devias parar. “E eu ‘a sério? Não sei se consigo representar’. E ele ‘está tudo bem, não vai haver problemas, tens um jeito natural’. E eu ‘como é que sabe isso? Não sabe. Nunca me viu fazer nada'”. Por isso, quando as filmagens começaram, ela estava uma pilha de nervos, e ele fazia perguntas sobre a forma como os americanos reagiam nesta ou naquela situação. Depois havia o cafezinho nova-iorquino, Jude Law, desencontros, casais que se separam, chaves abandonadas no café, esses rastos de pessoas que estão sempre a partir e a abando nar as que estão sempre a ficar. Enfim, havia uma história de Hong Kar-wai. E havia a América.

Ele diz, como quem não dá importância ao assunto: “Em vez de filmarmos tudo em Nova Iorque, porque não arranjar uma desculpa para viajar e conhecer o país?”. Por isso não conseguimos saber até que ponto o que ele tinha inicialmente na cabeça era ou não um “road movie”. Ele diz que não: “Um ‘road movie’ é sobre a viagem. Aqui, seja onde for que Elizabeth [a personagem de Norah] esteja, o coração está sempre em Nova Iorque”. Norah não tem tanta certeza: “Acho que pretendia ser um ‘road movie’. Depois houve muitos cortes, mas acho que inicialmente tinha essa pretensão. Mas ainda é um filme sobre ir a sítios”.

Os americanos são “mais específicos” Ir a sítios na América é viajar muitos quilómetros é o que faz Elizabeth, primeiro até Memphis, depois até Las Vegas. E viajar assim na paisagem americana é passar por sítios que já foram histórias, livros, filmes. “Nunca me preocupo com essas coisas”, afirma o realizador. “A América é basicamente um grande palco. Há tantas possibilidades. E mesmo quando pensamos que estamos a fazer uma coisa diferente, alguém diz ‘faz-me lembrar aquele filme'”.

Foi, por isso, sem medo dos clichés que avançou pela paisagem americana. “Depois das nossas grandes viagens pelo país, em que guiávamos 14 ou 15 horas por dia, o que fica na nossa memória são os bares, os cafés. A viagem é sempre o mesmo, não há diferenças. As referências são os ‘diners'”.

Antes de começarem a filmar, deu a Norah Jones um livro de fotografias sobre “diners”. Depois pô-la a trabalhar num em Memphis, vestida de imaginário americano. “Ele diz que estudou a América, que cresceu a ver fantástico cinema americano, mas nunca será um realizador americano porque culturalmente não pode ser”, explica a cantora. “Isto foi uma coisa que o ouvi dizer, mas que eu já tinha sentido. De certa forma todos sentimos isso durante as filmagens: que a visão dele da América, e destas personagens, era uma visão romântica. Era como uma carta de amor. Se for a Memphis hoje, as empregadas dos ‘diners’ já não usam roupa como a minha, é algo de outro tempo”.

Wong Kar-wai descobriu, ao trabalhar com a sua equipa nos EUA que “os americanos são muito directos, muito específicos” e decidiu ser também assim. “A ideia original para esta história é chinesa, por isso há coisas que não são faladas”. Mas num filme “americano”, achou que não bastava mostrar, era preciso dizer. E pôs uma voz-"off” a explicar o que se estava a ver não resultou, houve várias críticas ao filme, dizendo que era demasiado longo e que a voz-"off “ era excessiva. O realizador percebeu a mensagem. “Pensámos que talvez não fossem precisas essas explicações porque podíamos sentir as coisas. Tirámos muita da voz ‘off ‘ e tornámos o filme mais curto”.

Há em Elizabeh um sonambulismo, uma atitude de quem observa a vida mais do que participa nela. Por isso, apesar de percorrer a América, são mais os outros que passam por ela. E os outros são personagens americanas Arnie (David Strathairn), destruído pelo desgosto depois da mulher o ter deixado; Sue Lynne (Rachel Weisz), a mulher que o deixou, fatal (como era fatal a mulher de cabeleira loura de “Chungking Express"), a entrar no bar onde Elizabeth trabalha, para uma última, derradeira, discussão com Arnie, o polícia (como eram polícias duas das personagens de “Chungking...”); Leslie (Natalie Portman), viciada em poker, a viver no risco (como a tal mulher de cabeleira loura vivia no risco). Wong Kar-wai, portanto, mas na América.

E na América o realizador de Hong Kong sai dos espaços fechados, dos corredores, galerias, labirintos de casas, lojas, restaurantes, calor, corpos que se cruzam, que se empurram, que esbarram, que passam como traços de luz, que se fecham em quartos minúsculos, e lança-se nos grandes espaços abertos, estradas, paisagens imensas para, assim que pode, refugiar-se novamente no interior de um bar e na angústia de alguém que não consegue mover-se ou que não consegue parar.

Está lá, como em todos os seus filmes, o tempo que passa, para Elizabeth como um prazo que tem que expirar, como as latas de ananás em conserva que o polícia come em “Chungking Express” e o tempo parado, para Jeremy ( Jude Law), que espera pelo regresso dela, enquanto revê a velha cassete de uma câmara de vigilância. Está lá o momento perdido, as pessoas certas no momento errado, o que podia ter sido, o que fica adiado. Mas porque é que, se está lá tudo, temos a sensação de que Wong Karwai não está?

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