Os factos históricos são conhecidos. Uma guerra civil em Angola de quase três décadas, outra um pouco mais breve em Moçambique. Com o seu livro "Jogos Africanos" (A Esfera dos Livros), título que tomou emprestado de Ernest Junger, Jaime Nogueira Ponto percorre esses factos pelo lado de dentro: dos grandes jogos de interesses mundiais que se movem na sombra aos pequenos e terríveis dramas dos combatentes.
Nessa altura, a Guerra Fria travavase por entrepostas pessoas em entrepostos países. São as suas memórias de África e é também uma história da África lusófona e da África Austral dos últimos 30 anos. "Para acertar contas com o meu e o nosso passado e tentar percebê-lo", disse o autor na apresentação. E para concluir que as ideologias "não escolhem nem delimitam o mal". A virtude do livro é fazê-lo com humanidade e com humor. Extractos da entrevista que deu ao Ípsilon.
A sua aventura africana começa no sótão da casa dos seus pais no Porto, quando descobriu "As Minas de Salomão" (1885, Henry Rider Haggard), e termina de uma forma um pouco desencantada.
"As Minas de Salomão" continuam a ser um belíssimo espelho: estamos sempre naquela coisa de ver quem são os bons e quem são os maus.
"As nobres intenções e as mais sórdidas."
E descobrimos que os bons não são tão bons como isso e que os maus não são assim tão maus.
Define-se como um francoatirador, mas as suas motivações vão variando. A primeira é o nacionalismo e o império e é por isso que vai para Angola, para a guerra do ultramar.
É normal, é ideológico.
Tomou partido, como toda a gente naquela altura. Só que ao contrário.
Nos anos 60, tomávamos partido e de uma forma radical. E com as respectivas consequências. Íamos às consequências, como você também sabe. Se era partidário do império tinha que lá ir [salvá-lo]. Nem sequer havia forma de não ser assim.
Evidentemente que, depois, as coisas mudam. Há ali um período de nojo ou de luto, se quiser...
Com as consequências do 25 de Abril...
Sim. Eu saio [de Angola]. Fico ainda por ali [na África do Sul, incluindo num campo de internamento], como conto no livro, pela região.
Foi uma saída completamente aventurosa, como a que muitos da sua geração, e pelas razões contrárias, fizeram para França...
Era um pouco mais longe (risos). Estava a dois mil quilómetros da única fronteira por onde podia fugir de Angola, a fronteira com o Sudoeste Africano. Tinha de se ter cuidado, podiam-nos mandar para trás. Fiquei com muita amizade, como conto no livro, pelo "senhor Banana" [um português que o ajudou a passar a fronteira de Angola para a Namíbia], que ainda agora veio ao lançamento deste livro. Os portugueses, os da diáspora, são fantásticos. Enquanto aqui são gente encolhida, esses, como o "senhor Banana", que rapidamente tomou conta de uma linha de solidariedade em que ninguém nos pergunta aquilo que pensávamos ou fazíamos, são fantásticos...
Houve esse período de nojo em que tentou em Angola contrariar o destino inevitável do império...
O que também é uma coisa de grande juventude e romantismo.
O regime democrático aqui estabiliza. Já não há nada a fazer. E há agora outra motivação.
Ainda vivo mais dois anos em Espanha, volto para Portugal em finais de 78 e, depois, a partir de 80, entro num circuito político... Estamos no período da chamada revolução conservadora.
Do Presidente Reagan?
Exactamente. Por um conjunto de circunstâncias, entro num determinado circuito político onde, como sou português e passo a acompanhar bastante bem toda essa área [da África lusófona], me num "expert". E talvez porque, entretanto, também me tornei uma pessoa mais objectiva e menos ideológica.
Mas a motivação é política. E nasce quando se passa de uma fase, em que os americanos estão na defensiva e nem querem ouvir falar de Angola, para outra, da administração Reagan, em que o combate ideológico e político da Guerra-Fria reanima.
É, e aquilo passa a ser um teatro da Guerra Fria. Penso que fiz o seguinte raciocínio: isto [Angola e Moçambique] nunca mais vai ser português, mas há aqui outra guerra que vale a pena... É uma época interessante, porque o internacionalismo não é só da esquerda, há também um internacionalismo na direita. Tive vários amigos que fizeram o que fiz em relação a Angola, em relação ao Afeganistão.
Com os mujahedin, a combater a ocupação soviética?
Isso está hoje contado com muita graça naquele filme "Charlie Wilson's War" [de Mike Nichols]. Mas conheci vários tipos ingleses que as férias deles era irem para o Paquistão para, a partir daí, entrarem no Afeganistão e levar abastecimento aos guerrilheiros.
Claro que, nesse combate, havia recursos e um homem na administração Reagan, mencionado no livro, o director da CIA William Casey [1982-87], que estava vocacionado para isso e criou uma vasta rede de canais e circuitos. Lembro-me de aparecem em poucos meses três livrarias polacas em Paris, logo a seguir ao movimento do Solidarnosc. Havia uma massa de recursos e uma rede para os distribuir. Entrei nesse circuito graças a ligações com a Heritage Foundation...
E o "Cercle", um nome digno de filme de espionagem...
Era mais um ponto de encontro. Não era uma instituição.
Mas reunia pessoas muito influentes no mundo Ocidental com o objectivo de vencer a Guerra Fria por todos os meios. Que chegou a ser frequentado por Franz Joseph Strauss (antigo líder da DSU da Baviera) e pelo próprio Kissinger.
Sim, eram pessoas muito ligadas a esse tipo de sensibilidade. Havia um predomínio grande de americanos, alguns sul-africanos. Era uma espécie de "círculo de cold warriors". Uns mais velhos e outros mais novos. E entrei nisso. Estava dentro dos assuntos, estabelecia ligações com o pessoal das UNITAS e das Renamos, e tornei-me um bocadinho "expert" nessas matérias.
Na sua longa aventura africana move-se num círculo que todos sabemos que existe, embora não saibamos muito sobre ele - de serviços secretos, interesses económicos, influências políticas -, que se move na sombra mas tem muito poder.
E de pessoas, também, com alguma boa vontade. Mas tem razão: quando é tratado pelos académicos e pelos jornalistas, é-o de forma completamente conspirativa. Claro que há alguma conspiração. Lembro-me que uma vez perguntei a um amigo francês, a propósito de um terceiro, como é que o tinha conhecido. "C'est toujours la même chose. C'est toujours un ami qui te présente à un ami qui vient de la part d'un autre ami." Nunca ninguém faz muitas perguntas.
No mundo dos serviços secretos não se fazem perguntas.
Mas esta gente é mais "ex" do que outra coisa. Nos americanos, havia três ou quatro. Um era o Ted Shackley, que foi director de operações da CIA e, durante muitos anos, o responsável por Saigão, um homem muito biografado hoje. Foi um daqueles saneados no tempo do [Presidente Jimmy] Carter e que aterrou ali. Mas também havia muitos académicos, ligados aos think-tanks americanos, havia políticos.
Porque é que se escolhe esse mundo?
Aconteceu. Conto aí como é que me aconteceu. Foi o embaixador Franco Nogueira que me levou para o Instituto de Estudos Políticos do Liechenstein, em 78. Foi aí que Brian Crozier [um jornalista anglo-australiano muito próximo dos meios mais duros da NATO] me conheceu e me convidou para o Cercle, e depois as coisas são um bocadinho como as cerejas. Circula-se.
Há também um lado, que o livro tem, de desmistificar isso tudo. As pessoas são o que são. E não se trata de centros de decisão, são coisa para influenciar.
A guerra e a paz em Angola são uma parte fundamental da sua aventura africana. Jonas Savimbi, o líder da UNITA, é uma das personagens centrais do seu livro. Sentia algum idealismo ao apoiar a UNITA ou era apenas o grande jogo da Guerra Fria?
Em parte, sim. Fiquei muito amigo de muita daquela gente. Mas a UNITA é como o PS ou o PSD. Tem tipos fantásticos, tem atrasados mentais, tem gente dedicada e idealista e tem crápulas.
Mas isso não exclui a questão de saber quem é que tem razão. Achava que a UNITA tinha razão na sua luta?
A razão é uma coisa complicada... Se é uma guerra em que esteja envolvido, digo que a minha decisão talvez não se baseie apenas na razão. É mais como Churchill: "right or wrong, my country." "Right or wrong, my tribe." Não nos podemos esquecer que o preço ali [na guerra civil angolana] era o aniquilamento. Acho que este livro dignifica muita gente.
Sou uma pessoa com convicções políticas mas, muito cedo, me habituei a perceber o outro lado da colina. O que é aqueles tipos de lá pensam de nós... São iguais a nós?
Isso no seu livro é verdade, mas pode ser também uma visão cínica das coisas: torna tudo um pouco relativo...
Não é cínica, é humana. É a única maneira de se humanizar as guerras.
Tudo isto para chegar ao seguinte: há um desencanto que assenta nessa ideia de que tudo é justificável.
Não. Acho é que, no meio disto tudo, o que se pode ir salvando são algumas pessoas e algumas situações. Quando falo dos seminaristas [que ficaram prisioneiros da UNITA, motivando protestos da Santa Sé], não queria saber da UNITA para nada naquela altura, queria era tirá-los de lá. Como era, afinal, uma coisa pequena, não envolvia grandes razões de Estado, era tudo tratado naquela base: "tire lá os miúdos daí, se faz favor..."
À portuguesa...
É o lado de facilitar.
Jonas Savimbi era uma daquelas personalidades a que os ingleses chamam de "biger than life".
Era "biger than life". Julgo que fica bem claro no livro.
Mas é isso que torna uma das partes do livro mais amargas. De repente, com o fim da Guerra Fria, ele torna-se num incómodo e toda a gente só lhe passa a ver defeitos.
É verdade. É uma coisa tremenda. Mas o livro, nesse aspecto, traduz a realidade. Podia ter dourado isso, mas não há que dourar. Vi isso acontecer à minha frente. É a condição de quem se torna o perturbador...
Havia crimes da parte da UNITA, havia crimes, porventura mais tremendos, da parte do MPLA, mas houve nessa altura duas atitudes diferentes.
Há uma equivalência moral, muito complicada nestas coisas, que é a equivalência do mal. Que é sempre justificável pelas razões da sobrevivência. Talvez porque era estrangeiro, tive o privilégio de, numa dada altura, falar com uns e com outros e com o conhecimento de todos. Procurei fazer um pouco o vaivém para tentar humanizar o outro lado.
Essa preocupação que a choca, não acho que seja cínica. É o reconhecimento do facto de que a natureza humana é assim. As melhores causas têm, às vezes, tipos horríveis a defendêlas e as más têm tipos bons.
Quando escreve este livro olhando para as coisas com alguma distância não o choca ver hoje José Eduardo dos Santos como figura redimida e Savimbi como figura esquecida. Não há aqui uma profunda injustiça?
É a ordem natural das coisas. A História não tem sentimentos, faz-se assim.
O [Ernest] Junger tem uma coisa admirável nos diários dele do fim da guerra. No último inverno da guerra, enquanto assiste à queda apocalíptica do III Reich, está a ler literatura de naufrágios, explicando que é uma literatura muito útil para se compreender a condição humana. Não há nada mais civilizado do que um paquete, mas se houver um naufrágio, os mesmos tipos... A condição humana...
Sobre a qual você não tem ilusões...
Como cristão também não posso ser um total pessimista, acho que todos nos podemos redimir. Mas, à partida, somos muito mais marcados pelas nossas coisas negativas. Se encontramos uma justificação ou uma necessidade para isso, somos tão bons ou tão maus como os angolanos ou os moçambicanos... A civilização é uma construção, mas é a coisa mais frágil que há.
Hoje, curiosamente, é um homem bem visto pelo regime de Luanda.
Tenho amigos mas também tenho inimigos.
Como é que se acaba esta aventura africana com uma empresa de segurança em África?
É só em Moçambique e emprega cinco mil pessoas, moçambicanos.
Como é que se termina assim este percurso?
Termina não, que eu faço muitas outras coisas na vida. Em Moçambique, num dado momento, o Carlos Veiga Anjos, que na altura [princípios de 2000] era da administração de Cahora Bassa, queria fazer o outsourcing da segurança. Tínhamos uma equipa de formadores [de segurança] em Luanda e disse-lhe que tinha um tipo óptimo, um ex-oficial dos Comandos, o Rui Castro Pereira, que ia ficar livre. Ele foi para Moçambique estudar o caso e, quando acabou, disse-me que talvez pudéssemos fazer nós próprios qualquer coisa. Eu e um grande amigo meu, o Vitor Ribeiro, que foi presidente da Associação de Comandos e que foi decisivo no 25 de Novembro, decidimos então fazer uma empresa.
Uma empresa de segurança em África não é o mesmo que em Portugal.
Não, mas acaba por ser tudo a mesma coisa. É uma coisa banal porque a segurança pública é má.
Tem de reconhecer que é um exército.
É.