O regresso do renegado Confúcio quando os chineses precisaram de se reencontrar

Ao retirar ao regime a sua base ideológica, com a economia de mercado, Deng precisou de outras formas de legitimar o Governo. A resposta veio de um sábio com mais de 2500 anos

a "Uma vez atingido o cimo da montanha, o mundo parece mais pequeno." Será como na frase de Confúcio: 30 anos depois de terem dado início às reformas que tornaram a China uma potência económica, os chineses sentirão hoje que andaram o que havia para andar? O filósofo que foi banido pelo regime comunista regressou, para ajudar o país a reencontrar--se consigo mesmo.
Um livro com respostas de Confúcio - um filósofo que morreu há 2560 anos - a questões actuais vendeu mais no ano passado do que o Harry Potter: 4 milhões de exemplares (sem contar com as dezenas de milhar de cópias). E todos os dias, entre 10 mil e 20 mil pessoas visitam o seu túmulo. As escolas de confucionismo multiplicam-se pelo país, sobretudo para responder aos pedidos da nova classe média.
"A economia está a desenvolver-
-se muito depressa, mas as pessoas sentem necessidade de sabedoria e moral", comentou Gu Qing, com livros publicados em cultura chinesa, ao Christian Science Monitor (CSM), num artigo de Julho de 2007. "Agora, que já resolvemos o problema de encher a barriga das pessoas, procura-se alguma coisa que lhes encha a mente."
Kongfuzi viveu na era "das Primaveras e dos Outonos", numa China dividida em reinos e num momento de transição do esclavagismo ao feudalismo, com uma melhoria do nível de vida e a introdução de várias descobertas. "Foi um período de explosão económica, intelectual e demográfica", resumiu à National Geographic (num número especial de Maio dedicado à China) Danielle Elisseeff, da Escola do Louvre.
Nascido em 551 a.C., na província de Lu, Confúcio foi ministro e conselheiro político da corte; teve alunos e discípulos, alguns dos quais escreveram e divulgaram as suas palavras, já depois da sua morte.

Socialismo e ConfuciolândiaMao Zedong era um admirador do "Primeiro Imperador", Qin Shi Huangdi (unificador da China), que rejeitou os ensinamentos de Confúcio. Tratou também, depois da Revolução Cultural (1966-76), de o renegar, afirmando-o incompatível com o socialismo.
Os guardas vermelhos chegaram mesmo a instalar-se no mausoléu do sábio, em Qufu (que a National Geo-graphic descreve agora como uma Confuciolândia) e a destruir inúmeros pagodes.
Mao considerava feudais as suas ideias de respeito pelos mais velhos, pela propriedade e a defesa da harmonia social conferida pela hierarquia - princípios que foram assimilados durante mais de dois milénios pela cultura chinesa, a ponto de o confucionismo ser a filosofia do Estado durante todo esse tempo. Mas, para Mao, era um obstáculo às transformações sociais.
E uma das graves ofensas desse período, a par de se ser revisionista ou imperialista, era advogar o confucionismo. "Uma das técnicas do Partido Comunista era classificar altos dirigentes em discordância de confucionistas inveterados. Era uma acusação gravíssima", refere ao PÚBLICO Moisés Silva Fernandes, do Instituto Confúcio da Universidade de Lisboa. Um dos exemplos foi Liu Shaoqi, Presidente da China, afastado em 1968.
Foi Deng Xiaoping que, ao mesmo tempo que introduzia as reformas económicas depois da morte do "Grande Timoneiro", veio "recuperar" o filósofo. Hoje, este processo parece até concluído.
Harmonia, a palavra-chave do confucionismo, foi usada pelo actual Presidente Hu Jintao, quando apresentou o seu slogan de uma "sociedade harmoniosa". O confucionismo faz até parte do currículo da Escola do Comité Central do Partido. Confúcio foi também o nome que o regime deu aos institutos culturais destinados a aprofundar a aprendizagem do chinês no estrangeiro e os contactos entre a China e o resto do mundo (como o da Universidade de Lisboa; há outro na Universidade do Minho).
Há também um debate em torno do que a sua mensagem representa para o PCC: a verdadeira procura de uma harmonia social, ou um instrumento para a classe dominante se manter no poder?

Voltar ao nacionalismo"Quando regressou [depois das purgas], Deng verificou que o pensamento maoísta estava errado", continua o investigador português. "Viu o Japão com enorme progresso económico, Taiwan transformado, Hong Kong uma importante praça financeira. Deng teve que desmontar toda a linguagem do pensamento de Mao." E, ao fazê-lo, foi necessário encontrar alternativas.
"Retirar a base ideológica ao regime implicou ir buscar outra coisa para lhe dar legitimidade. Encontrou duas soluções: o regresso à filosofia de Confúcio e o nacionalismo."
O sábio é hoje enaltecido nas escolas. "O ensinamento dos seus princípios fundamentais - o indivíduo submete-se ao colectivo, deve-se evitar o conflito e procurar a harmonia, os mais novos devem respeito aos mais velhos, e os princípios não devem ser postos em causa - é favorável à manutenção do statu quo."
Ou seja, o homem que era apresentado por Mao como "o sábio das classes reaccionárias", lembra Silva Fernandes, "é uma figura que está a ser constantemente promovida para criar obediência dos governados em relação aos governantes. A ideologia confucionista dá grande legitimidade ao regime instituído, seja ele qual for".
Numa altura em que os escândalos de corrupção ligados ao Governo e aos poderes locais foram identificados como uma das grandes ameaças, e o fosso entre pobres e ricos está maior do que nunca, suscitando dúvidas sobre a política do Partido Comunista, esta legitimidade é particularmente necessária.

Glorificar o passadoHá quem aponte para ainda um outro objectivo do Governo: glorificar o passado da China. "Através do estudo do confucionismo, as pessoas aperceber-se-ão da glória e brilhantismo da tradição cultural chinesa", defende Zhang Huizhi, presidente da Associação Confucionista Chinesa, ao CSM. "Muita cultura ocidental está a invadir a China neste momento, por isso, desenvolver o confucionismo ajuda as pessoas a ganhar autoconfiança na sua própria cultura."
Ao mesmo tempo que aposta na investigação académica sobre o filósofo, o Governo "está também a incutir os resultados dos estudos nas vidas do cidadão comum", acrescenta Zhang. Mas isto é simplesmente "um regresso à normalidade. Podemos mudar o regime de um país", afirma. "Mas não pudemos mudar as suas fundações culturais."
Um livro com respostas de Confúcio a questões actuais vendeu em 2007 4 milhões de cópias, mais do que Harry Potter

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