O arco-íris nocturno

"Os Ventos e Outros Contos" é a revelação em português da norteamericana Eudora Welty (1909-2001), escritora "sulista" (nasceu em Jackson, capital do Mississippi, e ali viveu praticamente toda a vida, na mesma casa de família) que está actualmente, e merecidamente, em franca reavalição crítica.Também fotógrafa (e são dela as imagens reproduzidas na capa e na contracapa desta edição), publicou álbuns de fotografias, ensaios, uma autobiografia, romances (um deles, "The Optimist's Daughter, premiado com o Pulitzer em 1973), novelas e contos. A presente colectânea, editada pela Antígona e traduzida e prefaciada por Diana Almeida, acolhe oito contos extraídos de quatro livros (publicados, respectivamente, em 1941, 1943, 1955 e 1963). Pretende "dar uma visão de conjunto da ficção curta da autora", mas deixa de fora a representação de "The Golden Apples", um volume de contos de 1949 que, segundo a tradutora, "merece uma futura tradução no seu conjunto".Os dois primeiros contos, os mais antigos e os mais devedores do realismo "social" e da "crítica de costumes", são os menos interessantes do volume. Os restantes, marcados por um comovente e compassivo lirismo, são muito bons."Circe" revisita o episódio homérico da feiticeira que tinha o condão de metamorfosear em porcos e em outros animais os viajantes que aportavam à sua ilha. Mas o mito é aqui recontado do ponto de vista (feminista?) da deusa, opondo ao pragmatismo heróico do "ingrato" e egoísta Ulisses (a "erva da cautela" que o protege) a divina fragilidade de Circe, o seu abandono, a sua doméstica e eterna solidão: " -Bemvindos! -disse eu... as palavras mais perigosas do mundo." Sendo uma revisão ideológica do episódio da "Odisseia", o conto de Welty é também pura poesia narrativa.Também em "A Rede Larga" há uma espécie de recondução ao sentido, por assim dizer, eterno do quotidiano, da interioridade, das mulheres "a cantar sob as árvores as mais antigas e longas baladas do mundo", da ideia de casa (e um íntimo gosto pela antropomorfização destas é por mais do que uma vez evidente, como por exemplo no final do conto que dá título ao volume: "Toda a fachada descaía, cedia na luz suave, como o rosto de uma velha adormecida na igreja."). Depois de uma noite dissipada com um amigo, o jovem William regressa a casa e descobre que a sua jovem e grávida mulher, Hazel, "não estava mais para o aturar depois daquela e que se ia afogar no rio". William congrega os vizinhos e partem todos, levando a "rede larga" para dragar o rio em busca de Hazel. Regressam ao fim do dia, de mãos vazias, mas, "ao chegar a casa", William vê, "curvado sobre o telhado, [...] algo que ele nunca vira, segundo se lembrava, um arco-íris de noite". E entrando em casa "ouviu chamarem o seu nome" e "sorriu, como se mesmo nos seus sonhos mais loucos não tivesse ousado esperar ouvir chamar o seu nome em casa. A voz vinha do quarto." Este contos de Welty tendem para uma concentrada clareza estrutural, marcada por uma espécie de movimento ternário (explicitado, aliás, na divisão em três sequências numeradas no conto "A Rede Larga"): a um momento expositivo inicial, segue-se o desenvolvimento narrativo (o tempo forte, aqui) e a conclusão.Percebe-se que fizemos um percurso, um caminho, uma viagem, e que regressamos com algo na bagagem, com algo para contar. O conto "Sem Lugar Para Ti, Meu Amor" exemplifica este movimento. Um homem e uma mulher conhecem-se em Nova Orleães num domingo de Verão, àquelas "horas da tarde que parecem Fora do Tempo". Metem-se num carro e vão passear para o sul ("Não sabia que havia mais sul do que 'isto'", diz ela).Vagueiam por estradas secundárias, caminhos sem saída, conversam pouco, observam a paisagem, procuram nela um sentido para aquele (des)encontro circunstancial, dançam num bar remoto e regressam.Ele deixa-a à porta do hotel e recordase, pela primeira vez em muitos anos, "de quando era jovem e impetuoso, um estudante em Nova Iorque, e o guincho, o horror, a fumarada ímpia do metro evocavam para si a cadência melodiosa e as expectativas do amor".Dava um perfeito "road movie" ou um filme de Antonioni. Também a paisagem, a natural e a construída, a sua íntima conexão com o "interior" das personagens, é aqui protagonista.E a capacidade de nos fazer visualizar essa conexão é um dos melhores atributos da escrita de Eudora Welty.Digamos que há nela um esforço lírico de reencantamento do mundo, de religação ao mistério das coisas elementares.Assim acontece em "Os Ventos", história da travessia de uma noite de tempestade que metaforiza a passagem da protagonista da infância à adolescência e na qual a força do lirismo e a leitura da agitação da natureza, do "pulsar dos relâmpagos", à luz dos devaneios e medos da personagem são mais memoráveis: "Todas as crianças saíam a saltar e a correr. Ela ia com eles, mastigando pés de mastúrcios e chupando o mel das flores das boas-noites, preparada para todos os figos e todas as romãs que aparecessem." E a manhã chega e ela "pela primeira vez na vida pensou: poderão as mesmas maravilhas nunca voltar de novo?"

Sugerir correcção
Comentar