Flávia Gusmão tem uma missão impossível

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Quando Flávia Gusmão chegou a Guimarães para participar nas audições abertas pelo Teatro Oficina, Marcos Barbosa passou a ter um texto e uma actriz para o fazer - a actriz errada, que era o que estava certo.

"Amor", do brasileiro André Sant'Anna, "é uma coisa muito masculina", do tipo que tinha de ser um homem a dizer, ou então ela. "De repente eu tinha a Flávia e tinha o texto, o que era uma grande contradição. Atirámo-nos a esta missão impossível de fazer um texto brasileiro, sem adaptações ao português de Portugal, e nisso ela fez um verdadeiro trabalho de actriz: pegou no texto como se pega num texto do Shakespeare que obriga sempre, mesmo que esteja traduzido, a aprender uma língua inteiramente nova", explica Marcos Barbosa.

É uma língua inteiramente nova, esse português do Brasil de que André Sant'Anna se apodera em "Amor" para mostrar que o mundo inteiro se transforma num inferno quando a miúda do lado deixa de estar do nosso lado: "É mais da perda do amor que se trata aqui, e da dor que vem depois, da maneira como até as melhores memórias do golo do Pelé no Mundial da Suécia e a canção do Roberto Carlos se transformam em pesadelo, na tortura de recuperar o amor perdido".

O mundo inteiro passa a ser um peso enorme, um peso morto, enfim (o tipo de "day-after" de que toda a gente pode dizer "been there, done that"), mas André Sant'Anna fala disso numa língua viva, "uma língua cheia de novidade" - o tipo de língua que estava mesmo a pedir para ser teatro, diz o director da Oficina.

A dor de cotovelo de André Sant'Anna passou a ser a dor de cotovelo de Flávia Gusmão - e ela fez esse monólogo "sem o transformar numa exibição do trabalho de um actor", colocando-se "completamente ao serviço daquele texto, no desespero de fazer uma coisa impossível, porque aquele texto não é mesmo dela, não pode mesmo ser dela, mas vai ser dela".

Era impossível, mas afinal fez-se: teve estreia anteontem, em Guimarães, e fica em cena até domingo, com Flávia Gusmão sozinha no palco a fingir que aquele texto lhe pertence. É assumido (toda o programa da encenação se reduz a esse jogo de apropriação de um objecto cada vez menos estranho): ela começa por dizer o texto numa língua que não é a dela e acaba a dizê-lo nesta coisa (que parecia morta, mas afinal está viva) que falamos todos os dias.

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