O corpo é de ouro, mas o coração é bahá'i
A religião que professa desde os 16 anos pede que seja excelente. Foi influenciado por João Ganço, o treinador que o ajudou a ser campeão olímpico. Ainda recebe parabéns pela medalha de Pequim, mas o objectivo é saltar mais alto. Uma "mão divina" pode explicar "um centímetro a mais".
A Fedross Imani não trouxe o saltério, instrumento de cordas com que o rei David acompanhava os Salmos, mas veio Catherine Fiero com a sua harpa. Ela toca e canta: "We are all waves of one sea/we are all leaves of one tree/we are all flowers of one garden." Os fiéis escutam-na em silêncio, sob o olhar melancólico de 'Abdu'l Bahá, filho de Bahá'u'lláh, o Profeta dos bahá'is, cujo retrato ocupa lugar central numa pequena sala de cortinas azuis e heras cor de laranja.
É domingo à tarde, e Fedross está particularmente orgulhoso. Não só porque o palestrante da celebração de hoje, no Centro Bahá'i em Lisboa, é o seu filho Navid, mas porque na audiência está Nelson Évora, o atleta que personifica um dos valores máximos desta religião: a excelência.
O atleta medalha de ouro do triplo salto nos Jogos Olímpicos de Pequim é a estrela do dia, ainda que a sede da comunidade ostente no portão de entrada uma outra estrela. Tem nove pontas e representa a "unidade na diversidade" que inspirou "Cathy": o sabeanismo (os sabeus ainda hoje vivem no Iémen, Iraque, Paquistão e Afeganistão), o hinduísmo, o judaísmo, o zoroastrismo, o budismo, o cristianismo, o babismo e o bahá'ismo.
Depois de distribuir beijos, abraços e sorrisos, Nelson Évora sentou-se na segunda fila, entre a mulher e o filho do seu treinador, João Ganço. Navid, professor de artes marciais, dissertou sobre "a influência da educação no carácter do ser humano", e o "menino de ouro" foi várias vezes citado como um bom exemplo. O que se prepara "para atingir a perfeição".
Nelson ouviu-o com atenção e deu o seu testemunho: "O importante é estar sempre em movimento e trabalhar muito, porque a excelência é o lado físico e o lado espiritual." Sentada a pouca distância, a romena Iona Gheorghe lançou um piropo, que fez o atleta soltar o riso e roer ainda mais as unhas, e declarou, com esfuziante alegria: "Eu cheguei aqui há dois anos vinda de um país que foi uma ditadura. Era ortodoxa, mas senti sempre um vazio. Só a fé bahá'i me deixou completa."
Várias cabeças acenaram em concordância. Uma delas, a da harpista Catherine, que a Orquestra Nacional de São Carlos dispensou. "Eu vim de Nova Iorque, e sinto-me feliz desde que há 30 anos aceitei Bahá'u'lláh como mensageiro de Deus", dirá ao P2 a antiga cristã metodista, no final de uma hora de debate de ideias e duas orações. "We are all stars in the sky/ we are all one in God's eye", emociona-se ao recitar o seu livro de cânticos. "We are angels of fire and snow/we see the light and away we go."
A descoberta aos 16 anos
Os fiéis estão num exíguo hall (em breve o edifício será demolido para construir um maior) a partilhar bolinhos, queijos e sumos - lanche com que tradicionalmente terminam os encontros - e já Nelson Évora e João Ganço subiram à biblioteca para contarem como chegaram à "verdade".
"Eu era muito novo, tinha uns nove ou dez anos", revela o jovem, num misto de serenidade e nervosismo. "Costumava frequentar a casa do professor, em Odivelas, para brincar com o filho [David Ganço]. Lembro-me de ir às aulas de crianças sem saber para que serviam, mas depois percebi que o objectivo era transmitir valores. Éramos ensinados a não mentir e tínhamos de passar a teoria à prática. Eu e o David começávamos por mentir e depois víamos o resultado dessa mentira."
Ao contrário do que possa parecer, a "viagem espiritual" de Nelson, 24 anos, filho de uma costa-marfinense e de um cabo-verdiano, não começou na casa do vizinho João Ganço, antigo recordista do salto em altura. "A minha mãe foi sempre a mais religiosa da família", diz. "É católica mas não praticante. Acredita em Deus e sempre me ensinou a acreditar em Deus. Na sua maneira religiosa de estar e ser, deu-me os valores que me ajudarem a tornar-me bahá'i. Ela não seguiu o meu caminho, mas respeita o meu."
O momento decisivo aconteceu aos 16 anos, numa "escola de Verão em Monchique", mais uma vez na companhia do amigo David Ganço. "Eu era jovem, mas os meus ideais, a minha forma de vida, já eram bahá'is. Só faltava declarar-me e assim fiz." Encontrar respostas não é ter certezas, avisa Nelson. "Nada fica definido para o resto da vida. Tudo é questionável. Por exemplo, e só agora falo disto, há pouco tempo, uma amiga morreu de repente, num acidente, e voltaram-me as perguntas. Porquê?"
Perdoar Udowu Phillips
Será que Nelson duvidou da existência de Deus quando o seu pai adoeceu gravemente antes dos Jogos de Pequim? "O meu pai adoeceu por um motivo", afirma, sem precisar. "Quando há um motivo, não há perguntas a fazer. Coloquei mais perguntas, quando a minha amiga morreu, do nada. Ela era uma pessoa que procurava a excelência. E aconteceu-lhe aquilo. Ainda não consigo aceitar a morte."
Para outras adversidades, porém, já encontrou defesas. Quando o britânico Udowu Phillips reagiu muito mal ao segundo lugar (17,62m), o português que já era campeão do mundo desvalorizou os insultos. "A culpa é dele porque fez mal o exercício. Eu entrei em prova, sabia que estava bem. A primeira coisa que fiz, mesmo sabendo o que ele dissera de mim, foi estender-lhe a mão e falar com ele. Não guardo ressentimentos."
Há um episódio que Nelson Évora recorda, na sua primeira competição internacional, o campeonato do mundo 2003/04, em Budapeste, quando no meio do corredor uma atleta se atravessou à sua frente. "Eu tinha apostado tudo naquele salto e não consegui saltar. Desconcentrei-me e isso desmoralizou-me. Podia ter protestado. Não o fiz. Não me arrependo. Essa atitude enriqueceu-me como ser humano e desportivamente."
Nunca fez nada de errado? "Claro que fiz! Às vezes temos de experimentar as coisas más para saber onde os erros nos levam. Nem sempre chegamos lá quando nos dizem 'Não vás por aí'. Se faço mal, peço perdão sem dificuldade. Sei que todos erramos, que tenho defeitos e os outros também."
E quando ganha, o Nelson que saltou 17,67m sente que a fé o ajuda? "Eu e o professor trabalhámos muito, e eu só tinha de estar o mais concentrado possível. O que aconteceu depois, na prova, são coisas que me ultrapassam. Porquê um centímetro a mais ou a menos? Há coisas físicas, é certo, mas aqui atribuo uma mão divina. Para alguns, talvez seja sorte. Eu vejo mais além."
"Quero chegar mais longe, sem dúvida!", frisa Nelson. "Vou ter de estar muito equilibrado a todos os níveis. Se atingir os meus objectivos, e mesmo se não os atingir, essa procura servirá de exemplo de vida, para mim, e para os que acompanharem o meu percurso até lá. As pessoas ainda estão a pensar na medalha olímpica, mas eu, um dia depois, já estava a pensar noutra coisa. Noutra etapa, noutra prova."
A PIDE e Bach
João Ganço insiste no que já antes dissera noutras entrevistas: "Não foi só a fé bahá'i que deu a vitória ao Nelson. Foi um conjunto de factores e um deles foi a fé. Estamos há muito tempo juntos e sentimos o que temos e o que podemos fazer."
Sobre o seu percurso religioso, o treinador desvenda: "Eu era católico, mas tinha muitas dúvidas. Depois do meu casamento [mera formalidade pela igreja], eu e a minha mulher decidimos investigar várias religiões. Fomos ter com tudo o que era seita. Budistas, muçulmanos, o Mr. Moon e até as Testemunhas de Jeová. Era uma necessidade pessoal e espiritual."
"Quando pegava na Bíblia e começava a ler, interrogava-me. Havia coisas que não entendia. Também me questionava sobre a razão de ser de tantas religiões com tantos crentes. Onde estava a verdade? Foi a fé bahá'i que deu resposta às minhas dúvidas. Quando os outros textos religiosos foram revelados, a mentalidade era outra. Precisamos de outras orientações, mais avançadas. A época de Bahá'u'lláh [1817-1892] é a mais recente."
João Ganço demorou cinco anos a tornar-se bahá'i. "Há pessoas que chegaram lá logo pelo coração. Eu precisei de investigar. A minha mulher, os meus filhos e até a minha sogra são bahá'is. Alguns dos meus atletas, não só o Nelson, são bahá'is. Não pressionámos ninguém. Foram sentindo a atmosfera, sentiram-se bem e foram aderindo."
Nelson é o seu orgulho: "O primeiro passo não fui eu que o dei, foram os pais dele, que são católicos e são excelentes. A educação base foi da família. Depois, sentiu a influência bahá'i. Hoje, ele é mais conhecido pelo seu lado humano do que pela medalha. E eu fico contentíssimo, porque, um dia, ele deixará de ser atleta [estuda Marketing e Publicidade] mas continuará a ser uma pessoa."
Orgulho na fé que segue há 50 anos é também o que sente Mário Mota Marques, um dos nove membros eleitos da Assembleia Bahá'i de Lisboa. Sempre foi um "estudioso das religiões", apesar de a sua família não ser religiosa. Começou por ler o Bhagavad Gita, dos hindus. Aos 16 anos, foi conduzido ao centro bahá'i por um amigo que continua a ser agnóstico.
O amigo vive em Nova Iorque e é músico. Sempre se corresponderam. Uma das suas cartas falava de Bach, mas a PIDE, que frequentemente batia à porta de Mário Marques de madrugada (esta religião foi perseguida até ao 25 de Abril de 1974), implicou porque leu bahá'i. "Entravam e vasculhavam tudo", recorda o responsável, que também não se esquece de outra visita da polícia política a uma sala onde crianças tinham actividades lúdicas. "Os agentes chegaram, olharam para o papel de cenário com desenhos coloridos e perguntaram se eram planos para ataques a quartéis."
Os maus tempos passaram. Hoje, a fé bahá'i está reconhecida oficialmente e tem as suas próprias aulas de religião e moral nas escolas públicas, e um programa na RTP2.