Cem anos de Manoel de Oliveira: "Não existem cinco cineastas tão livres assim"
Frédéric Bonnaud, ao telefone a partir de Paris, garante que nem sequer estava a ser irónico quando escreveu isso. “É uma graça, mas é real. Serge Daney, um grande crítico francês, costumava dizer, quando encontrava Oliveira, “eis o maior cineasta do mundo”, e Oliveira ria-se. A questão é que Daney acreditava mesmo nisso. E eu também.”
Foi o que levou o PÚBLICO a contactar críticos, exegetas e programadores da obra de Oliveira nos Estados Unidos, Espanha, Reino Unido e Portugal: o que é que encontram de particular no cinema do realizador português, o que é que faz dele, senão o maior, um dos maiores cineastas do mundo? É preciso avisar que o Oliveira deles não tem nada a ver com o senso comum – as descrições sobre as quais se metem de acordo são coisas como “ultracontemporâneo”, “lúdico”, “aventureiro” – mas também são espectadores incomuns, isto é, viram (e, nalguns casos, mais do que uma vez) a totalidade, ou quase, dos filmes de Oliveira.
“É muito fácil explicar por que é que ele é o maior cineasta do mundo”, diz Bonnaud. “O cinema, mesmo quando é um grande cinema feito pelos maiores cineastas, obedece a um certo número de regras que são intocáveis. O que é fascinante em Oliveira é que ele não respeita regra nenhuma. É alguém que opera quase como se não tivesse havido cinema antes dele – é preciso inventar ou reinventar tudo. É como um primitivo italiano que tem de inventar a pintura porque ela não existe antes dele ou como Jean Dubuffet ou Picasso, que não se contentam com os códigos da pintura, mas que a querem reinventar o tempo todo.”
“Manoel de Oliveira é a mais bela anomalia do mundo”, escreveu Bonnaud em 2000, num texto para um catálogo do Festival de Turim sobre o realizador, e era, evidentemente, um elogio. Aí, o crítico francês demonstra como Oliveira não faz nada como ninguém.
“Não existem cinco cineastas que sejam tão livres assim”, diz Miguel Marías, ex-director da Cinemateca Espanhola, figura tutelar da crítica em Espanha (e irmão do escritor Javier Marías). “A única certeza que se pode ter é que cada filme seu será uma surpresa: nunca é convencional, é sempre atrevido”, escreve, por mail.
Sim, Oliveira faz cem anos, mas para lá de tudo aquilo que é imediatamente impressionante nessa longevidade, o mais admirável é o que fez com ela, o “desprendimento e a liberdade que esse trajecto lhe dá”, como assinala o realizador João Mário Grilo, uma das pessoas que em Portugal mais consistentemente têm escrito sobre a obra dele. “O Oliveira tem essa coisa de não ser um clássico – é um cineasta com cem anos, mas não é um clássico. Está permanentemente a criar um efeito-surpresa, é capaz de fazer um filme mínimo a seguir a um filme máximo. Aliás, costuma fazer isso.”
À frente do cinema actualO leitor já percebeu: Oliveira é um caso à parte no cinema. Mas essa dissidência, fundadora de tantos equívocos e da divisão que existe sobre a sua obra, não é programática (no sentido de deliberada) ou puramente excêntrica, nem existe para contrariar as plateias (como, por vezes, os portugueses parecem pensar do seu cinema). As razões para isso derivam do facto de ter começado a filmar numa altura em que o cinema estava no começo, antes de muitas das inovações que viriam a transformá-lo (isso confere-lhe uma inteireza: “é como no cinema de John Ford, o mais importante são os valores que se desprendem do filme”, assinala Grilo), do seu invulgar percurso (as paragens “forçadas”, durante a ditadura; e o crescente ritmo criativo das últimas duas décadas).
João Mário Grilo nota, por exemplo, que um filme como Amor de Perdição (1978), objecto de escândalo à época, surgiu num contexto pós-Revolução, e era radicalmente diferente do cinema militante que estava a ser feito à altura. “De repente, o filme parece totalmente deslocado dessa ‘moda’. Ele apresenta uma certa retoma dos sentimentos num momento em que isso parece totalmente fora da ordem do dia. A grande questão do filme é se se pode amar, ainda, assim – a tal ideia do amor de perdição.”
Jonathan Rosenbaum, decano da crítica americana, diz que Oliveira “está à frente de muito do cinema que é feito hoje”.
Grilo, novamente: “É muito mais fácil, daqui por 20 anos, as pessoas enfardarem-se com o Bergman do que com o Oliveira. Bergman é alguém muito mais comprometido com o seu público”, porque os seus filmes, genericamente falando, lidam com “temas existenciais” que correspondem às preocupações da sua geração.
“Oliveira nunca está a trabalhar para um público”, distingue Grilo, e esta afirmação não deveria ser objecto de indignação – ninguém se escandaliza que Van Gogh não tenha pintado para um público (o que é inseparável da sua grandeza).
“Uau, de onde vem isto?”O primeiro filme de Oliveira que o britânico Jonathan Romney viu foi Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990). “Não sabia como classificá-lo. Não sabia se pretendia ser kitsch, se era satírico, ou até que ponto jogava com as convenções do cinema. Os filmes dele confundem as expectativas.” O artigo que Romney assina na revista Sight & Sound deste mês, a propósito do centenário de Oliveira, é, no fundo, a recensão de um óvni – o texto é pródigo em adjectivos como “estranho”, “escorregadio”, excêntrico”, “obscuro”, “bizarro”. O cinema de Oliveira, diz Romney ao telefone, “é um género em si mesmo”.
Richard Peña, programador do New York Film Festival e um dos grandes divulgadores de Oliveira nos Estados Unidos – foi ele que organizou a primeira retrospectiva americana, “Manoel de Oliveira é a mais bela anomalia do mundo”, escreveu Bonnaud em 2000, no catálogo do Festival de Turim sobre o realizador, e era, evidentemente, um elogio em Chicago, em meados da década de 80 – reconstitui a primeira impressão que os filmes dele lhe causaram. “Apesar de ser um filme europeu, o efeito foi de estranheza. Os filmes estrangeiros em geral são muito diferentes do cinema americano, mas o Oliveira parecia vir de outro lugar e de outro tempo, quase. É como se a história do cinema tivesse tomado outro rumo. Os seus filmes parecem mostrar-nos o que é que o cinema seria se tivesse escolhido a via do teatro em vez da literatura.”
Randal Johnson, professor de Literatura Luso-Brasileira na Universidade da Califórnia (UCLA) e autor do único livro em inglês sobre Oliveira, publicado em 2007, conta: “Nós abrimos uma retrospectiva aqui na universidade com Viagem ao Princípio do Mundo e a reacção das pessoas foi: ‘Uau, de onde é que isto vem?’ Elas saíram dali com vontade de ver mais filmes dele.”
Oliveira é um autor praticamente confidencial nos Estados Unidos, Reino Unido e Espanha, um realizador com seguidores nos circuitos cinéfilos e minorias exíguas (Rosenbaum nota a existência de um culto recente de “filmes exigentes” na Internet, nos blogues) – excepto em França, onde, como assinala Bonnaud, o facto de se ter associado a actores conhecidos como Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou John Malkovich, lhe permitiu “tocar um público mais amplo”.
Miguel Marías nota que ele é, hoje, um cineasta mais divulgado do que há 20 anos, ou seja, a probabilidade de um crítico espanhol ter contactado com a sua obra é maior, mas isso significa que “juntamente com os cinéfilos e críticos que o admiram, agora há os que viram algum filme e o detestam”. “Oliveira ainda está a ser descoberto”, diz Romney. “E vai continuar a ser descoberto.” Não é só no Reino Unido – em Portugal também. “Não sei com quem compará-lo. No cinema não há ninguém. Na literatura, há o Tolstoi, que também tem uma produção inesgotável. Mas Tolstoi não é tão divertido”, afirma Romney.
E não é humor britânico.