Todo o cinéfilo desconfia da famigerada "relevância sociológica" (ou "política", ou nalguns casos "cultural"). Quando, a propósito de um filme, se destaca mais a intensidade com que ele reflecte certos assuntos que estão na ordem do dia e a quantidade de "discursos" que sobre eles o filme (tornado "transparente") permite engatilhar. "A Turma" corre esse risco de se dar a ver como mostruário, "self service" temático de menu "urgente": a educação, a organização da escola, o multiculturalismo, a integração e a inserção, enfim, uma agenda facilmente confundível com as colunas de opinião na maioria dos jornais e revistas. Mas corre o risco de maneira, diríamos, consciente, assimilando-o como parte do seu funcionamento (a rodagem, como veremos, associou a "experiência cinematográfica" à "experiência social"), e sendo capaz de encontrar um filme no meio da agenda, de impor um ponto de vista que já não é exactamente do mesmo tipo.
Laurent Cantet fez-se conhecer por dois belos filmes, "Recursos Humanos" e "O Emprego do Tempo", sobre a "luta de classes" e a organização laboral contemporâneas, embrulhadas numa angústia melodramática. Para "A Turma" partiu do livro de um professor de um liceu parisiense, François Bégaudeau, que relatava a sua experiência como professor de Francês. Foi essa experiência que decidiu reproduzir em "A Turma". O filme é uma ficção mas tem pressupostos cravados no real, até, como dissemos, no seu modo de feitura. Cantet pegou em Bégaudeau (que interpreta o seu próprio papel) e encerraram-se num liceu de Paris, "entre les murs" (título original do filme), com os alunos.
Durante a rodagem, todos, adultos e adolescentes, viveram personagens criadas na fronteira entre o que estava determinado e o que cada um trouxe da sua experiência pessoal. Sem dúvida que isso explica muito do poder de "A Turma": um fortíssimo efeito de real, uma convicção profunda, uma absoluta credibilidade de personagens e situações. Aquela sala de aula tem, sobre o espectador, o efeito de um campo magnético, que o atrai, o prende, e o implica muito para além de questões de reconhecimento ou de identificação. Culturalmente, a turma do professor é a alegre misturada que imaginamos em muitos liceus por essa Europa fora: filhos de imigrantes, do Magrebe, de África, da China, das Antilhas (e, conspicuamente denunciado por uma t-shirt encarnada, um representante da lusodescendência). Este "cocktail", acirrado pelos vários sentimentos de pertença em confronto, é um dos temas do filme, exponenciado por naquela aula se tratar da língua francesa e da cultura francesa, e portanto do ensino de um elemento (supostamente) padronizador de toda aquela diversidade.
Mas a escola, "a turma", é também o espaço da adolescência. A "idade do armário", o desafio da autoridade, a necessidade de afirmação frequentemente um pouco estúpida. A habilidade maior do filme de Cantet está em não traçar uma distinção clara entre o que se justifica "sociologicamente" e o que não tem outra explicação que não passe pela psicologia adolescente. No debate que se seguiu à apresentação do filme no DocLisboa, na semana passada, alguém na assistência mencionou o clima de "guerra" constante que marca a relação, numa escola contemporânea, entre professores e adolescentes. "A Turma" filma muito bem essa guerra, capta muito bem o "teen power" (que é uma coisa recente de que os adolescentes se viram investidos por uma cultura, televisiva, publicitária, totalmente virada para eles, e pelo fácil acesso a todo o tipo de informação, mesmo que "inútil") e a espécie de variação sobre a luta de classes que subjaz ao relacionamento entre professores e alunos. Apesar do que diz Cantet (que falou da preocupação por ter uma câmara "equitativa"), é o ponto de vista dos adultos que sobressai, e de maneira bastante ferida - ainda no princípio, um professor com um ataque de frustração fornece a primeira cena em que sentimos "A Turma" a funcionar para além do seu estrito pressuposto. Mas essa frustração, mais resignada, mas também mais disseminada, criando uma peculiar atmosfera de desilusão e abandono, volta no fim, numa conclusão que tem uma validade "poética" tanto como uma qualidade comentadora pessimista: "A Turma" é um filme sobre uma derrota.