O homem que descobriu a mulher mais velha do mundo
Diz que Portugal é um caso intrigante pelo número de pessoas com "extrema longevidade". Filipe Prista Lucas provou que Maria de Jesus, uma portuguesa de 115 anos, pode ter lugar no Guinness
a Aos 31 anos, Filipe Prista Lucas, jurista, tem uma maneira invulgar de ocupar os tempos livres: pedir certidões de baptismo com mais de um século, investigar censos com letra quase ilegível, procurar notícias nos jornais que dão conta de que alguém está a celebrar mais de um século de vida (ou de que alguém morreu com essa idade). Foi ele quem reuniu as provas que levaram a que Maria de Jesus, uma portuguesa de 115 anos, esteja hoje no Guinness World of Records. A idosa da pequena localidade do Corujo, perto de Tomar, a quem nas redondezas chamam carinhosamente "Ti Velhota", é considerada a pessoa mais velha do mundo. É um "caso" especial para o jurista, que reconhece que este seu hobby tem algo de trabalho de detective. Mas há outros.
Prista Lucas trabalha há anos com o Gerontology Research Group (GRG), uma associação sedeada em Los Angeles, nos Estados Unidos, com a qual colaboram cientistas de diferentes áreas que se interessam pelas questões relacionadas com a longevidade. E integra uma equipa, liderada pelo médico Stephen Coles, que ajuda a alimentar a face mais visível desta associação: um ranking mundial de supercentenários (leia-se pessoas com mais de 110 anos) que está sempre a ser actualizado.
O seu trabalho não se esgota nas conservatórias, nos arquivos das paróquias, nos telefonemas para lares e juntas de freguesia em busca de mais alguma informação sobre uma qualquer pista que leu num artigo de jornal - "só pelo gozo", sem qualquer remuneração, com alguma despesa até. Tem também conhecido pessoalmente muitas pessoas que viveram mais de um século e que têm passado pela lista do GRG. E diz que essa parte é fantástica. "Lembro-me da senhora Clara dos Santos, que morava no Rato (em Lisboa), talvez o caso mais impressionante em termos de lucidez que conheci", começa por contar.
"Quando fui ter com ela - tinha ela 110 anos e meio -, estava no jardim, sentada numa cadeira, a fazer pegas de crochet." Contou o dia do regicídio como se tivesse acontecido na véspera. "Disse-me que estava a trabalhar num atelier de costura quando mataram o rei e que a mãe foi a correr buscá-la porque teve medo que houvesse uma revolução."
Clara da Conceição Lopes dos Santos, nascida em Papízios, Carregal do Sal, a 26 Março de 1894, a "senhora fascinante" que marcou Prista Lucas, tinha 14 anos quando em 1908 o Rei D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, em Lisboa. Morreu com 112 anos em Outubro de 2006.
Inventar idades
"Até hoje validei sete supercentenários portugueses e vou a caminho do oitavo", continua Prista Lucas. "Validar" é daquelas palavras que se repetirão ao longo da conversa com o advogado, que trabalha na Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) e que "desde os 11 ou 12 anos" se interessa por genealogia.
Diz que nessa altura, adolescente ainda, teve curiosidade em estudar a família. Por nenhuma razão especial para além desta: "Olho para uma fotografia de um trisavô e vejo que sou parecido com ele. E acho curioso. Tenho um tique particular e descobri que um avô também tinha... Não sei se descobri mais acerca de mim, mas é engraçado saber de onde venho." Uma coisa é certa: não descobriu nenhum antepassado supercentenário.
Não faz árvores genealógicas por encomenda e diz que nunca teve interesse em "investigar" pessoas estranhas. Até um dia, há seis anos: "Comecei a pesquisar na Internet e encontrei a lista do GRG. Uns dias antes, uma senhora tinha feito 112 anos em Portugal e reparei que não estava no ranking. Mandei um mail a dar-lhes essa informação. E responderam: 'Por que é que não nos ajuda a validar esse caso?'"
Depois de alguma insistência do GRG, acabou por pôr-se em campo. E pouco depois Catarina Carreiro, nascida a 9 Janeiro de 1891, tornava-se na primeira portuguesa a entrar no ranking.
"Mal coloquei o nome de Catarina Carreiro na lista recebi um mail de uma jornalista que me disse: 'Conheço uma senhora em Vila Nova de Gaia que é mais velha.' Era a Maria do Couto Maia. Facilmente encontrei essa senhora também." E a lista ficou com duas portuguesas. "Mais ou menos na mesma altura, saiu no jornal que Maria de Jesus tinha feito 110 anos, o que a tornava elegível para entrar."
Para "validar" um supercentenário há que cumprir "a regra dos três documentos" que, sendo emitidos em datas distintas, confirmem a idade da pessoa. "É uma regra internacional que tem de ser adaptada aos registos que existem em cada país. Em Portugal, é muito fácil, porque temos o registo civil desde 1911 e para trás do registo civil temos os registos paroquiais completos até aos séculos XVII ou XVI - nascimentos, casamentos e óbitos."
Nos Estados Unidos, por exemplo, é mais difícil. "Não há registos civis generalizados até ao início do século XX, logo temos de ir aos Censos. A senhora americana que faleceu agora [e que até 26 de Novembro passado era a mais idosa do ranking do GRG], Edna Parker, foi validada com base na sua idade tal como foi registada nos Censos de 1900, 1910 e 1920."
Mas frequentemente as coisas não batem certo. "Era comum as pessoas inventarem idades. Pelas mais diversas razões." Por exemplo, no início do século XX podia não parecer bem que uma mulher se casasse com um homem mais novo. E declarar uma idade diferente da real disfarçava o embaraço.
Em Portugal, Prista Lucas já "investigou" oito pessoas, a que se juntam muitas outras nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, onde os censos estão online e o advogado pode investigar sentado à frente do computador. Maria de Jesus fez parte do primeiro grupo de supercentenários que validou. "Primeiro contactei com a família a pedir alguns dados pessoais" - essa parte é simples, nunca nenhuma família mostrou desconfiança ou falta de cooperação. "Depois, bastou pedir a certidão de baptismo, de 1893, a certidão de casamento de 1919 - onde se diz de facto que em 1919 Maria de Jesus casou com 26 anos - e o assento de nascimento de uma filha, de 1924, que comprova que naquela data nasceu a filha de Maria de Jesus, que tinha então 31 anos."
Já a visitou algumas vezes e conversa frequentemente com a filha da supercentenária. Numa dessas visitas, o jurista levou a avó a conhecer Maria de Jesus - diz que haver uma lista como a do GRG pode parecer pouco útil, mas para alguém de 95 anos é significativo saber que há quem viva muito mais.
De qualquer modo, sublinha, a utilidade do GRG está longe de se resumir ao ranking no qual o Guinness World of Records está sempre de olhos postos. "O GRG tem uma base de dados de supercentenários que é cada vez mais completa e que disponibiliza para estudos científicos. Se alguém quiser fazer análises de sangue ou exames médicos a um grupo de supercentenários, por exemplo, no âmbito de uma pesquisa, pode dirigir-se à associação." Ainda há dois anos, diz, houve uma instituição do Porto a fazer análises ao sangue de centenários portugueses.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) havia, em 2001, em Portugal, 589 pessoas com cem ou mais anos. O INE não desagrega os dados para cima dessa faixa etária, por isso é impossível saber com rigor quantas pessoas encaixam no conceito de supercentenário.
Prista Lucas conhece três actualmente: Maria de Jesus, 115, a número 1; Augusto Moreira de Oliveira, 112, que vive em Vila Nova de Gaia e está na 29.ª posição no ranking mundial; e António Fernandes de Castro, 110 anos, residente em Barcelos. "O senhor de Barcelos está ainda por validar." Mas se a sua idade for confirmada, como o advogado acredita que irá ser, ocupará a 60.ª posição na lista do GRG na qual estão inscritos, actualmente, 89 nomes (79 mulheres e 10 homens). Será o oitavo supercentenário português validado.
O caso português
"A associação calcula que, em cada momento, existam no mundo entre 300 a 400 supercentenários; portanto o trabalho desta rede cobre cerca de um terço" das pessoas com 110 ou mais anos. Nos EUA, Canadá, Japão e na generalidade dos países da Europa Ocidental faz-se este tipo de levantamento com facilidade e algum rigor. Não se passa da mesma forma noutros locais. No Brasil, por exemplo, há uma mulher que diz ter 128 anos, mas o GRG não tem nenhum colaborador no país que possa tentar confirmá-lo.
Dos 89 mais velhos do ranking, 32 são norte-americanos, 25 japoneses e dois portugueses. Portugal, nota Prista Lucas, é um caso curioso. "De há três ou quatro anos para cá temos sempre duas, três, quatro pessoas na lista - mais do que Espanha, que tem quatro vezes a nossa população. Mas o que causa mais perplexidade neste meio é o facto de haver no país casos de extrema longevidade. Em três anos colocámos duas pessoas na lista das 25 pessoas mais velhas da história."
Prista Lucas não é especialista em gerontologia. Mas avança hipóteses de explicação: "O clima, os hábitos alimentares, a história política e social, nunca fomos palco de nenhum grande conflito."
Maria de Jesus, que tinha 17 anos quando em 1910 a República foi proclamada, 46 quando começou a I Guerra Mundial e 81 quando foi a revolução de Abril, respondeu durante anos a fio às perguntas dos vizinhos e forasteiros curiosos sobre o segredo para viver tanto. Contava que não apreciava carne, que nunca fumou nem bebeu café e que todos os dias, ao pequeno-almoço, come "sopas de pão no leite". Prista Lucas confessa: "Também eu gostava de chegar a supercentenário."
1.ª posição no ranking
Maria de Jesus, nascida no Olival, Ourém, a 10 Setembro
de 1893 - 115 anos
29.ª posiçãoAugusto Moreira de Oliveira, nascido em Guetim, Espinho,
a 6 de Outubro de 1896,
residente em Grijó, Vila Nova
de Gaia - 112 anos
60.ª posição* António Fernandes de Castro, nascido em Durrães, Barcelos,
a 6 de Janeiro de 1898 - 110 anos
* por validar
E-mail para notificação de novos casos: fprista@hotmail.com