O futuro do passado

Quem vê capas raramente consegue ver nelas o coração dos livros que contêm. A capa de "As Vozes do Rio Pamano", de Jaume Cabré, autor catalão nascido em Barcelona em 1947, reproduz (como em outras edições do livro, aliás) uma fotografia de um grupo de crianças de uma escola primária de uma aldeia dos Pirinéus catalães tirada em 1940. Olhar para esta fotografia é ter começado já a ler o livro. Não porque a data e o local em que a imagem foi feita remetam (e é o caso) para o cenário e para o tempo da acção do romance. Mas porque o romance poderia ser lido como uma espécie de "memória descritiva" (e narrativa) da fotografia. Sob o silêncio a preto e branco da imagem, as vozes submersas daqueles rostos interpelam-nos. Se estivermos atentos, se tivermos imaginação, poderemos ouvi-las. Foi o que fez Jaume Cabré. Com um pequeno desvio: no seu romance, os cemitérios tomam, como motivo simbólico e como "ponto de apoio" para a alavanca que faz mover a ficção, o lugar das fotografias. Silenciosos como elas, também eles são retratos de grupo, histórias em pedra da comunidade humana. E as suas vozes subterrâneas aguardam.

A certa altura deste livro, quase ainda no início, um artesão de pedras tumulares não isento, como o coveiro de "Hamlet", de certa ironia meditativa e melancólica, faz a seguinte observação num cemitério: "Muita guerra e muita raiva, mas acabam todos por vir aqui parar, uns ao lado dos outros. [...] O meu pai dizia que era como aparecer na mesma foto, uma vez tirada já não nos conseguimos apagar." E umas centenas de páginas adiante, quase no final do livro, outra personagem anota: "Os cemitérios das aldeias pequeninas fizeram-me sempre lembrar as fotos de família: toda a gente se conhece e está quietinha, uns ao lado dos outros para sempre, cada um a olhar para o seu sonho. E com os ódios transtornados com tanta quietude." Por isso, cada uma das sete partes deste extenso livro (cerca de 650 páginas) termina reproduzindo uma pedra tumular: um nome e duas datas unidas e separadas por um tracinho; por vezes uma inscrição fúnebre que pretende congelar uma vida numa legenda. Mas a paz dos cemitérios, como a estranha quietude das velhas fotografias, é ilusória.

Orwell lembrou que quem controla o passado controla o futuro e, controlando o presente, controla-se o passado. É este o verdadeiro tema do romance de Cabré: o poder da memória e o poder sobre a memória. Tendo como palco os últimos sessenta anos da história da Catalunha e de Espanha, metonimicamente retratadas numa aldeia dos Pirinéus. Uma sinopse de "As Vozes do Rio Pamano" poderia ser a seguinte. Entrado o século XXI, Tina, uma professora primária dada à fotografia, percorre a zona montanhosa de Pallars, na província de Lleida, Catalunha (onde a repressão franquista após a Guerra Civil de 1936-1939 e a resistência ao franquismo foram mais duradouras e brutais), documentando-se para uma exposição sobre as escolas da região. Numa delas, prestes a ser demolida, descobre os cadernos de um professor, Oriol, que ali ensinara e morrera quase sessenta anos antes e que contam uma história completamente diferente daquela que fora oficialmente consagrada na toponímia e no cemitério da aldeia. Tido por herói franquista, Oriol foi afinal, secretamente, um herói da resistência armada ao franquismo. Tina dedicar-se-á então a tentar repor a "verdade histórica", tarefa que se revelará problemática e que nos mostrará como os crimes, os ódios, as cumplicidades e as injustiças duram mais que a vida e que as pedras tumulares, e que conciliar a memória e o perdão não é virtude humana.

Com uma estrutura coral complexa e não-linear, com incessantes avanços e recuos no tempo da narração que não dão ao leitor tempo para bocejar, com as várias vozes, personagens e episódios interceptando-se uns aos outros, por vezes numa mesma frase (António Lobo Antunes poderia ser aqui uma analogia familiar), "As Vozes do Rio Pamano" não parece ter, no tempo da leitura, a extensão que tem, graças à invejável mestria de ofício de Jaume Cabré.

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