El Guincho num paraíso tropical aqui ao lado

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É meio de Abril e na loja de discos mais influente de Nova Iorque, a Other Music, no coração de Manhattan, o álbum de que se fala é "Alegranza!", estreia de El Guincho, projecto solitário de um jovem músico espanhol, Pablo Diaz-Reixa, de 24 anos. Nos expositores, em destaque, não está o disco, mas há recortes elogiosos de publicações como a "Village Voice" ou a "New Yorker".

Quando nos dirigimos ao balcão e perguntamos pelo disco, sorriem-nos. "Está esgotado. Só hoje, já tivemos mais de 20 pessoas a perguntar por ele", o que em tempo de crise do formato CD não deixa de ser significativo. Olha-se à volta, e pelo tipo de clientela, percebe-se que é a loja onde se vai quando se procuram discos específicos que não se encontram nas grandes superfícies, ou então aqueles objectos prenunciadores de tendências que ainda não o são exactamente.

Recuemos um ano. Pablo Diaz completa um disco em condições artesanais, tentando, de seguida, sem sucesso, que as editoras espanholas se interessem pelo seu trabalho. Depois de muito porfiar, no final de 2007, consegue que Félix Ruiz, sem experiência de indústria mas com vontade de iniciar uma pequena editora, cúmplice das tardes nos cafés do bairro Grácia, em Barcelona, onde habita, lance o álbum no mercado espanhol.

A Espanha que consome pop e rock anglo-saxónico, flamenco ou a música ligeira das discotecas de pior fama, o chamado bakalou, não lhe liga. A música de El Guincho nada tem a ver com aquelas coordenadas, esculpindo pedaços de sons em diversas camadas, misturadas com percussões e ângulos festivos, tudo de uma linearidade inorgânica. São cânticos dançantes constituídos por sedimentos de som, combinação de microrganismos resgatados à pop africana, a ladainhas tribalistas, ao calipso das Antilhas, ao dub jamaicano, ao tropicalismo brasileiro ou ao rock lúdico dos anos 60, numa toada que resulta hipnótica, soalheira.

A Espanha não lhe presta atenção, mas na Internet começa o falatório. De blogue em blogue, trocam-se faixas do disco. Já em Março deste ano, o influente jornal americano "Washington Post" publica uma peça laudatória, logo seguido da "Pitchfork", um dos mais influentes sítios de música no ciberespaço. Não surpreende que, em Abril, em Nova Iorque, na Other Music, o disco esteja esgotado. Existe curiosidade, mas o facto de pertencer a uma micro editora, que não está preparada para tantas solicitações, também justifica o sucedido.

Hoje, meia dúzia de meses depois, El Guincho já percorreu o mundo em concertos, encontrando-se agora em digressão pelos EUA. Em Espanha, os media falam dele como sendo o êxito mais rápido e surpreendente de um jovem músico espanhol fora de portas. Ao mesmo tempo, o álbum "Alegranza!" prepara-se para ser relançado em todo o mundo, na 2ª feira, através da XL Recordings, a estrutura editorial dos The White Stripes, M.I.A., Vampire Weekend ou Radiohead.

Sim, é mais um conto de fadas viral da Internet, mas não só.

É também mais um exemplo de como na era onde tudo parece já ter sido enunciado e digerido, quem aposta na singularidade, de forma completamente descomplexada, arrisca-se a ser bem recebido. Claro que não vale a pena romantizar. El Guincho é também produto de um momento particular, em que música bastarda, com influências exóticas, parece estar na ordem do dia.

Em Nova Iorque, mais concretamente em Brooklyn, não se tem feito outra coisa este ano, com os High Places, Yeasayer ou Vampire Weekend. O mesmo acontece em São Francisco com os The Dodos ou na Nova Zelândia com os Ruby Suns. Todos criadores de um som celebratório, com influências exóticas que não costumavam combinar com rock alternativo. Mas Guincho não tem afinidades apenas com a Nova Iorque mais mundana. A pop globalizada de M.I.A., Buraka Som Sistema ou Diplo, também se sente por aqui.

Pablo Diaz-Reixa vive em Barcelona há seis anos, mas é natural das Canárias. "Os naturais das Canárias, na minha idade, quando acabavam o colégio, tinham duas opções: ou iam para Madrid estudar administração e direcção de empresas, ou para Barcelona estudar algo mais invulgar. Eu, como 10 por cento dos esquisitos da ilha, fui para Barcelona estudar comunicação visual", disse ao "El País".

Depois de algum tempo na cidade percebeu que não queria dedicar-se a rodar videoclips, nem anúncios de sapatilhas, nem a limitar-se a fazer música para publicidade ou filmes - a propósito, há música dele no filme de Woody Allen, "Vicky Cristina Barcelona", rodado em Barcelona. Desejava, simplesmente, criar a sua própria música. Primeiro esteve na banda Coconot - que prepara um novo disco - onde tocava bateria, cantava e manuseava um sampler. Mais tarde, recorrendo a um velho portátil, começou a criar um disco a solo.

Nessa altura, com falta de dinheiro, não tinha ligação à Internet em casa, acabando as tardes metido em cafés com Wi-Fi, organizando os seus temas muito elaborados, que parecem ser a negação total das leis da produção ou da composição musical.

Com influências, que vão de "My Life In The Bush Of Ghosts", de Brian Eno e David Byrne, até ao tropicalismo brasileiro ou ao psicadelismo, acabou a construir um disco de ritmos solares. Depois das referências elogiosas da imprensa americana, o telefone não mais parou de tocar. Ainda hoje Pablo tem dificuldade em perceber o que aconteceu. Mas não tem nada que perceber: conjugação de capacidade, música que faz sentido hoje (original, mas pertencente a várias famílias estéticas), propagação viral através Net, interesse da imprensa de referência e sorte.

Pássaro raro

Como aconteceu em Portugal, com um caso de contornos semelhantes, os Buraka Som Sistema, também a Espanha se interroga como é que um projecto de conceito tão peculiar, sem ambições, acabou nas páginas das publicações de todo o mundo.

Para os espanhóis que, tal como Portugal, nunca tiveram grande tradição de exportar cultura pop, o feito ainda está a ser digerido. Há o caso dos Sunday Drivers, com mercado em França, ou os Ojos de Brujo, conhecidos nos circuitos das "músicas do mundo", mas El Guincho é outra coisa. "A música africana está muito presente nas Canárias", tenta justificar ele. "No fundo, ali, somos todos africanos, mas custa-nos admiti-lo. A Espanha está presente em tudo, mas de maneira exagerada. O natural é o africano."

Ou seja, El Guincho não encaixa na imagem que a Espanha tem de si própria. Sim, a sua música são palmeiras, camisas garridas para surfistas, velhos restaurantes mexicanos, alegria esfusiante, coisas que poderiam rimar com Espanha, mas a forma excêntrica como combina tudo tem mais a ver com Brooklyn, não surpreendendo que já tenha andado em digressão com os nova-iorquinos Vampire Weekend e Atlas Sound. "Alegranza!" é o álbum de alguém saudavelmente deslocado, que se sente africano, que fala e canta em castelhano, que veste como um europeu, que respira música latina e quer celebrar universalmente, não recusando nada, assimilando tudo à volta de forma saudável.

"As Canárias estão no meio do mundo e no meio do nada. Não estão muito longe do deserto do Sara. São longe de tudo. Pertencem a Espanha, mas estamos a três horas e meia de avião. É longe." Nesse sentido, o disco é uma obra insular. Aliás, Pablo, diz que a sua fantasia foi criar um disco que incorporasse sons de diferentes ilhas, colados segundo técnicas do hip hop.

Quando se fala da música de Pablo uma rajada de nomes surgem associados: Panda Bear e os Animal Collective pelo ritualismo psicadélico; Tom Zé e Caetano Veloso pelo tropicalismo; Esquivel e Martin Denny pelos paraísos artificiais; os Beach Boys pelo sol da Califórnia. Mas o seu herói é J Dilla, alquimista americano do hip-hop falecido há dois anos, que lhe mostrou o que poderia fazer concertando diferentes fontes sonoras.

"Com ele aprendi a criar utopias em forma de som." Di-lo El Guincho, nome de pássaro raro, proveniente de Alegranza, ilha situada no Oceânico Atlântico, próximo da província de Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canárias. "Quando comecei a dar entrevistas aos jornalistas espanhóis percebi que poucos conheciam esse pássaro e essa ilha." Agora já conhecem.

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