Balada da sobrevivência

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Nan Goldin está hora e meia atrasada e não é seguro que queira fazer a entrevista, apesar de estar combinada. Não é temperamento de vedeta (Goldin é acessível e afectuosa), é uma fragilidade à flor da pele que se detecta à distância e que requer atenções redobradas, como as pessoas que não sabem cuidar de si próprias.

O salto alto de uma mulher prende-se entre duas pedras de calçada, e Nan Goldin remexe na mala. É uma grande "photo opportunity", mas não é nisso que Goldin está a pensar quando retira a máquina fotográfica da mala; é na mulher-anjo que a fotógrafa do Ípsilon tem no braço direito, entre o ombro e o cotovelo. Goldin quer tatuar-se em Lisboa.

A fotógrafa americana de 55 anos veio para a abertura da exposição colectiva "Listen, Darling... The World is Yours" na Ellipse Foundation, em Alcoitão, que inclui obras suas, e faz parte do júri da competição internacional do DocLisboa, que termina domingo, e que mostrou "I'll Be Your Mirror" (1996), filme autobiográfico de Goldin que narra o que conhecemos das suas fotografias: o esplendor e queda de uma geração que viveu excessivamente.

Começou a fotografar na década de 70. Entre Boston, onde estudou, e o East Side nova-iorquino, onde se fixou em 1978, fez o retrato de grupo, permanentemente actualizado, do "underground", como quem faz um álbum de família. Travestis, pares que desafiavam categorizações sexuais, a boémia artística, toda uma comunidade que, nos anos 70 e 80, tinha encontrado um espaço onde as pessoas podiam ser o que queriam ser.

Goldin não era uma "outsider", documentando uma "cena"; era uma participante activa que fotografava os amigos e que, ao fazê-lo, estava onde nenhum fotógrafo tinha estado antes: nos seus quartos, nas suas camas, no seu leito de morte.

A fotografia de Goldin teve os seus precedentes -Diane Arbus e o seu bestiário humano, Peter Hujar, Larry Clark e Andy Warhol (de certa forma, é como de Goldin continuasse o projecto de Warhol) -, mas a sua influência sobre a cultura pop é incalculável.

Wolfgang Tillmans, "Tarnation", de Jonathan Caouette, Tracey Emin, MySpace (espaço onde uma geração faz o jogo da identidade, se auto-define e se expõe) -é difícil imaginar tudo isto se antes não tivesse havido Nan Goldin.

O Museu de Serralves, no Porto, dedicou-lhe uma retrospectiva em 2002, que incluía a projecção de diapositivos "The Ballad of Sexual Dependency", a sua obra mais emblemática, dos anos 80. Vê-la, hoje, ainda é uma revelação. Estamos a sentar-nos à mesa de uma esplanada duvidosa e Nan Goldin diz que não consegue divulgar o seu trabalho mais recente por causa de um contrato que a prende a uma editora.

Nan Goldin - A editora quer um milhão e meio de libras para anular esse contrato.

Suponho que mais cedo ou mais tarde vou ter de tornar isto público.

Mas neste momento tenho receio de dizer seja o que for porque podem processar-me. Eles disseram-me, e passo a citar: "Processe-nos, adoramos levar os artistas à falência." Para eles, é uma diversão. Têm um piso inteiro cheio de advogados no edifício deles, o melhor departamento legal que se pode imaginar. E eu assinei um contracto filistino com o diabo. Não sabia o que estava a assinar na altura. Suponho que não o li com o cuidado devido.

Sinto-me encurralada. Os livros são uma das componentes essenciais do meu trabalho. Só um número limitado de pessoas é que vê as exposições.

E os museus e galerias querem sempre o mesmo corpo de trabalho, mais antigo?

Não, eles mudam. Fiz uma instalação de grande escala em 2004, em Paris, na capela do Hospital de La Salpêtrière ["Soeurs, Saintes et Sybilles"]. Era uma projecção em três ecrãs, na cúpula, com 40 minutos de duração e 18 pistas de som. Foi visto por 20 mil pessoas e umas 300 desmaiaram. Nunca tinha feito 300 pessoas desmaiarem. Estou muito orgulhosa disso.

O DocLisboa exibiu um filme do holandês Johan Van Der Keuken, "The Long Holiday", que é um diário visual dos seus últimos dias de vida, depois de saber que tem um cancro na próstata. O filme é narrado pelo realizador que, a certa altura, diz: "Tenho de continuar a filmar-me. Se não conseguir criar imagens, é porque estou morto." Soa a qualquer coisa que está muito próximo do que você faz.

Os meus amigos mais próximos ficam preocupados se não fotografo, porque é mau sinal. Sem a minha fotografia, acho que não estaria viva neste momento

Fotografa todos os dias?

Já não. Antes, sim. Fotografo bastante, mas não todos os dias. Porque quero fazer livros. Tenho cinco livros [preparados], dois pela [editora] Random House e três pela Steidl. Eles até já fizeram as provas, mas não os posso publicar. Esta espécie de fatalidade bloqueia-me, tira-me a vontade de trabalhar. Quer dizer, não é bem a vontade - nunca trabalhei porque queria, mas porque tinha de trabalhar. Já dei aulas em Harvard, em Yale, e em todo o mundo, e digo sempre às pessoas: se não têm de ser artistas, não sejam. Não precisam de ser. A arte tornou-se um grande negócio: o ano passado, na América, havia mais pessoas inscritas em cursos de arte do que em cursos de gestão. Ou talvez tenha sido há dois anos, não sei quando é que as estatísticas saíram.

Quando comecei, não sabíamos o que era a [revista] "Artforum". Sentávamo-nos nos carros dos professores e bebíamos o dia todo. Bem, não o dia todo, mas bebíamos... Estudei em Boston. Não falávamos do mundo da arte, falávamos de criar arte. Não esperávamos enriquecer. O mundo da arte no final dos anos 70 não tinha nada a ver com dinheiro. E só cinco por cento dos que estudaram é que se tornaram artistas porque, na altura, ninguém ficava rico com a arte. Todos os empregos que tive depois, como servir em bares durante anos, foi para poder sustentar o meu trabalho artístico.

E já tinha consciência de que o que estava a fazer era arte? No livro "I'll Be Your Mirror", Luc Sante recorda que quando você começou a mostrar os primeiros diapositivos, toda a gente ficou espantada. Escreve ele: "Numa altura em que todaa gente clamava fazer ‘arte', apesar de as provas sustentadas dessa actividade serem quase sempre escassas, isto [as fotografias de Nan] era a valer.E tinha sido feito à nossa frente, quando estávamos demasiado lixados para conseguir abotoar o casaco, por alguém que, manifestamente, estava tão lixado quanto nós." A Nan estava ali, simplesmente, a tirar fotografias, sem que alguém concebesse que estava a fazer arte.

Acho que eu também não sabia. Estava apenas a fotografar os meus amigos. Eu via-me a mim própria como a escola pós-racional: primeiro criava a obra e mais tarde tentava perceber o que é que ela significava. Ainda funciono assim. Trabalho com o estômago, não com a cabeça. Quando as pessoas perguntam "qual é o seu próximo projecto?", nunca faço ideia. Não trabalho de projecto em projecto.

Na altura, estava a fotografar os meus amigos. Depois comecei a juntar as fotografias em projecções de diapositivos, e quase toda a assistência era composta pelas pessoas que apareciam nas imagens. Se elas não gostassem de se ver, eu retirava a fotografia.

Voltando ao filme holandês...

Ele morreu?

Sim.

Ed van der Elsken, o fotógrafo holandês, também fez um vídeo da sua morte ["Bye", 1990].

Neste caso particular, apesar de ser um filme constantemente assombrado pela morte, pode dizer-se que é uma celebração da vida. Já as suas fotografias, especialmente as dos anos 70 e 80, apesar de terem mantido um carácter espontâneo -as pessoas retratadas estão quase excessivamente vivas -, em última análise, elas lidam com a morte.

Porquê? Não antes de a sida nos atingir. A partir daí, sim, lidam com a morte. Mas não eram uma premonição da morte.

Quando as tirou, não. Mas vendo-as hoje, sabemos que as pessoas estão mortas, e isso condiciona tudo.

Mas toda a gente vai morrer, infelizmente. Excepto eu. Você pode ter a mesma impressão, mas está errada (risos).

Essas fotografias não são sobre morte. Viu "The Ballad of Sexual Dependency"? Quem não viu essa projecção de diapositivos não conhece realmente a minha obra. Muitas pessoas vêm falar comigo sobre o meu trabalho, mas acho que, se não viram isso, não viram realmente o meu trabalho. Mas estou a fazer coisas novas e as pessoas só querem falar desse período, o que me exaspera um pouco.

A projecção de diapositivos acaba com campas gémeas, uma coisa que comecei uns 10 anos antes da Sophie Calle fazer isso -campas de marido e mulher, de mãe e pai, coisas desse género, em todo o mundo. Comecei a tirar essas fotografias nos anos 70. E não era uma premonição da morte dos meus amigos. É sobre casais e como os casais julgam que podem ficar juntos, mesmo para além da morte. Todos nós temos algum medo da morte, e nenhum de nós, provavelmente, quer ficar sozinho. Muita da ironia das letras [das canções] com as imagens é mostrar como temos uma falsa noção das relações amorosas. Quando, na verdade, é muito difícil e duro, pelo menos foi para mim... Não me parece que os homens e as mulheres sejam verdadeiramente compatíveis. Já não achava na altura.

O que quer dizer com isso? Quando fotografa Valérie e Bruno...

Valérie e Bruno romperam, Aureole e Joana romperam, Simon e Jessica romperam, Clemens e Jens romperam. Acho que não há um único par aí que não tenha acabado (sorri).

O que significa esse sorriso?

A conclusão é óbvia. É muito raro as pessoas conseguirem ficar juntas durante muito tempo. Os meus pais estão casados há 68 anos, o meu pai tem 95 anos, mas eles pertencem a uma geração em que as pessoas não se divorciavam. Sendo judeus, também é muito invulgar divorciarem-se. Apesar de muitas das minhas tias e tios, e primos, se terem divorciado.

Agora que o divórcio se tornou tão comum, e nenhuma dessas pessoas [nas fotografias] sequer casou, as relações não duram mais do que uns anos.

E quando o romance e a sexualidade se esvaem, muita gente não se consegue ajustar à ambivalência. Como se, ao questionar a relação, isso significasse que já não amam a outra pessoa. Mas a ambivalência é natural.

Alguém disse que a sua obra é como grande música rock'n'roll. E, ao olhar as suas fotografias, damos connosco a pensar na Patti Smith. A exposição dela na Fondation Cartier, em Paris, este ano, estava cheia de fantasmas, era uma evocação das pessoas que ela amou e perdeu ao longo dos anos.

Bem, ela ainda está viva. De certa forma, sinto que estou viva para contar a história de muitas pessoas que morreram mas não tiveram o devido reconhecimento quando eram vivas, como Peter Hujar, que considero um dos maiores fotógrafos do século XX.

Alguém escreveu: Peter Hujar devia ter sido tão famoso como Mapplethorpe e Mapplethorpe devia ter sido tão conhecido quanto Hujar. Quanto mais olhamos as fotografias de Hujar, mais vemos. São muito singelas e profundas.

Toda a gente no funeral achava que era o melhor amigo dele, mas ninguém se conhecia entre si. Não sabemos quantos melhores amigos tinha, mas ele não era famoso na altura. Consegui que uma grande galeria começasse a mostrar a sua obra e a partir daí ele tornou-se bastante conhecido.

Mas, se fosse vivo, ele não estaria a trabalhar com esta galeria. Por isso sinto-me culpada. Sei que ele está danado comigo (risos).

Sente-se uma sobrevivente?

Sim. E sofro de culpa de sobrevivência, bastante. Um médico disse-me: "Você sofre de culpa de sobrevivência." Quando o meu teste deu negativo, senti-me terrivelmente. Senti-me culpada. Fiz as mesmas coisas que os meus amigos, por que havia de estar viva?

O seu trabalho é a resposta a essa pergunta.

Sim, mas agora não posso mostrar o meu trabalho. Não posso fazer livros.

Você conhece "The Devil's Playground", mas muita gente não. Falam da "Ballad" e da "Ballad" e da "Ballad", dos anos 70 e 80 -estamos em 2000 e tal e nunca deixei de trabalhar. Sou uma artista bastante prolífica, demasiado prolífica para o mercado de arte.

Não faço 12 fotografias por ano que eles podem vender por milhões, faço milhares de fotografias. E sou punida por ser prolífica, pelo mundo da arte.

Porque é suposto sermos raros. Mas não acho que a fotografia deva ser uma actividade rara. Acho que é uma actividade democrática, ou como queira chamar-lhe. Uma actividade socialista.

Costuma dizer que nunca fotografa alguém que não ame. Isso quer dizer que já tem intimidade com a pessoa antes de a fotografar, ou que é através da fotografia que se torna próxima dela? Escreveu um texto sobre Cookie Mueller, quase um ano após a morte dela, no qual explica que se aproximou dela através das fotografias que lhe tirou.

Sim, eu idolatrava-a ainda antes de a conhecer. Aconteceu o mesmo com duas "drag queens" no trabalho dos anos 70. Segui-as na rua com uma câmara Super-8 e ao fim de uns meses estava a viver com elas. Estava obcecada com elas antes de as fotografar.

Normalmente, a relação vem primeiro e depois as fotografias, mas por vezes é o contrário. O que não as torna menos íntimas ou menos reais. Não sei o que sinto por alguém -e isto continua a ser verdade, ainda hoje -até fotografar essa pessoa, e ver os diapositivos.

Suponho que quando olho para o diapositivo não estou lá, envolvida com a pessoa, por isso torna-se mais objectivo. É aí que sei o que sinto pela pessoa. Por isso, se fotografo alguém pensando que quero estar perto dela e não encontro isso nas fotografias, deixo de a fotografar.

Foi no Japão que comecei a fotografar estranhos pela primeira vez e isso deu origem a um projecto e a um livro que fiz com o [fotógrafo japonês Nobuyoshi] Araki, chamado "Tokyo Love" [1994]. Tornei-me amiga dessas pessoas e ainda as vejo.

Pode dizer-se que o seu trabalho passa por exibir o tipo de fotografias -prosaicas, íntimas -que o resto de nós esconderia. Tem fotografias que guarda só para si?

 Sim. As minhas paisagens eram isso. Houve pessoas que me disseram: "Toda a gente tem as fotografias que você mostra guardadas a sete chaves."

E eu mantinha as minhas paisagens em segredo. Quando as mostrei pela primeira vez, disseram-me que pareciam ter sido feitas por alguém de outro planeta. Eram fotografias tiradas por uma pessoa para quem a paisagem, a natureza, é um mistério total.

Cresci em cidades e quando olhava para uma paisagem, via-a como um postal, não conseguia quebrar o vidro.

Mas consegui quebrar o vidro e sentir estas paisagens em mim, fui capaz de criar uma relação com elas. Um dos novos livros é isso -só paisagens.

Nunca acreditei em Deus, cresci ateia. Mas encontrei uma espécie de vida espiritual em coisas que são maiores do que eu. Como o mar, o deserto, o céu.

Fotografar paisagens é uma progressão natural para alguém que durante muito tempo só fotografou pessoas?

 Não sei se é uma progressão ou uma regressão. Não vejo as coisas assim. Não sei se é uma coisa normal ou se é só minha. De qualquer forma, durante alguns anos tive uma relação com um egípcio e por causa disso estava sempre no deserto. Essas [fotografias] continuam inéditas.

O livro "The Devil's Playground" termina com uma imagem de uma lápide num cemitério de cães e gatos em Lisboa. A fotografia data de 1998. Lembra-se de a tirar?

Claro. Eu não costumava gostar de guias de viagens, mas agora existem coisas como o "Rough Guide". Achava que as pessoas que liam guias de viagens eram turistas, e eu não sou turista. Normalmente, quando viajava, seguia as pessoas que me pareciam interessantes na rua e descobria os sítios da noite e o "underground". Era assim que eu explorava os novos lugares. Mas os "Rough Guides" são óptimos, e eu encontro coisas ao lê-los que os próprios locais desconhecem. Li que existia esse cemitério de animais e fiquei interessada. Tiro imensas fotografias ao meu gato. Interesso-me imenso por animais neste momento. Acho que desisti das pessoas, de várias formas. Acho que muitas das minhas paisagens têm a ver com perda e solidão.

Seja como for, na altura, pareceu-me que a forma como as pessoas enterram os seus animais e o amor e total aceitação que tinham para com essas criaturas com as quais viveram tanto tempo é menos ambivalente, talvez, do que o que sentem por outras pessoas. E é um amor mais incondicional. Para mim, essa lápide é sobre isso.

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