A depressão portuguesa por Tiago Guedes e Frederico Serra

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O que quiseram, desta vez - depois de "Coisa Ruim" (2006), a longa de estreia, próxima do fantástico e do terror -, foi fazer um filme sobre emoções. Essas emoções que ficam presas dentro de cada personagem, entaladas, a puxá-las cada vez mais para dentro de si próprias e a afastá-las cada vez mais umas das outras. "Foi um filme muito difícil de montar porque tínhamos cenas muito boas, momentos fortes, que acabaram por sair porque pareciam ter julgamentos morais, gritavam no filme, pareciam ilhas a dizer alguma coisa muito concreta, uma mensagem. E o filme não é sobre isso. É muito mais baço, é sobre uma emoção que não sabemos definir bem".

Realismo vs. realidade

Começamos sem saída, enfiados num buraco, sufocados. Na obra onde Paulo (Filipe Duarte) trabalha houve uma derrocada, ele denuncia a situação e perde o emprego.

Em casa, a mulher, Lúcia (Isabel Abreu), continua a trabalhar e a tratar dos filhos, numa penitência sem fim, enquanto Paulo mergulha numa inércia sem palavras.

Há ainda Bela (Lavínia Moreira), a irmã de Paulo, enfermeira que trata de um doente terminal (Gonçalo Waddington), em conflito, também terminal, com a mãe (Fernanda Lapa).

Bela vive com o pai (Luís Filipe Rocha), encerrado num universo de trauma ultramarino feito de ódios e frustrações, e com uma relação difícil com o filho Paulo.

Tudo isto a preto-e-branco - e sem intenção de fazer neo-realismo. "A ideia do preto-e-branco", explica Frederico, "surgiu durante o processo de preparação do filme, numa altura em que vimos muita televisão e percebemos que fazia muito sentido distanciar bem isto da realidade televisiva". Tiago: "Há um universo que se vai criando ali à volta, e nessa perspectiva a palavra realismo até nos agrada bastante e é diferente de realidade - essa realidade que nos entra todos os dias pela televisão, os telejornais, as telenovelas. Esse é um retrato do qual nos quisemos distanciar". Quiseram "ir à procura de uma verdade emocional, sem estar a fazer retratos sociais ou julgamentos de valor".

A dúvida atravessou-lhes o espírito, inevitavelmente: irá o preto-e-branco afastar as pessoas? Mas a partir de certa altura "o filme já não fazia sentido sem ser a preto-e-branco". E foi assim que ficou, até porque "este não é na sua génese um filme de grande público, refém das grandes audiências", embora queiram, obviamente, que ele seja visto. "Tenho pena se o preto-e-branco afastar alguém, mas o que traz ao filme compensa isso... quem lá chegar vai perceber", diz Tiago.

Este é, admitem os dois, um filme inesperado para quem, em "Coisa Ruim", entrara pelo universo do fantástico, naquele que alguns viram mesmo como "o primeiro filme de terror português". Em "Entre os Dedos" não há forças malignas, nem Diabo, nem crenças num outro mundo. É só a vida tal como ela é. Mantém-se, de um filme para o outro, "uma necessidade muito grande de emocionar as pessoas, de as fazer sentir alguma coisa", afirma Tiago. E mantém-se a questão familiar, a família disfuncional, como centro da história.
Esse é um tema de Rodrigo Guedes de Carvalho, não só nos argumentos para cinema, mas também nos romances. Mas, a certa altura, as coisas misturam-se. Diz Tiago sobre a colaboração com o irmão: "No 'Coisa Ruim' ele propôs-se escrever um filme de terror, fê-lo sozinho e depois trabalhámos os pormenores. Este filme partiu de um desafio lançado por nós, ele escreveu o guião e depois trabalhámos todos em conjunto. De repente é difícil perceber as fronteiras, onde é que ele está, onde nós estamos. Até porque ele trabalha connosco numa lógica de confiança total".

Mas desta vez a forma de Tiago e Frederico fazerem cinema foi também diferente. "Era o que esta história pedia. Queríamos fazer um filme de actores, dar-lhes liberdade e andarmos um pouco a captar os momentos que nascem ali. Só isso é muito diferente de 'Coisa Ruim', que foi todo pensado do primeiro ao último enquadramento".

Personagens atmosféricas

A câmara estava ali, mas "preparada para enquadrar os actores sem interferir com as acções deles". Nunca lhes era pedido que repetissem uma cena, os mesmos passos, os mesmos gestos. "Eles faziam o que sentiam que deviam fazer. A verdade emocional era mais importante que tudo o resto". Nos momentos emocionalmente mais fortes, a câmara afasta-se, fica a espreitar por portas entreabertas. "Queremos ser pouco intrusivos nos momentos emocionais. É uma espécie de pudor. A força já lá está, não precisamos de estar em cima deles a ver".

Mas se há momentos em que a câmara se afasta, noutros cola-se à pele das personagens. "Tínhamos muitos 'close-ups', mas não tínhamos a consciência de que os íamos usar quase na totalidade. Depois, na montagem, foi uma opção. O filme é isto, são estas pessoas, e nós temos que estar neles, mesmo nesses momentos dos silêncios, quando aparentemente não se está a passar nada".

O resultado são personagens mais atmosféricas, menos nítidas do que as do filme anterior. "Menos nítidas? Talvez...", responde Rodrigo Guedes de Carvalho, numa breve entrevista por email. "O que me parece é que são mais espectros, mais fantasmagóricas, curiosamente, do que na história dos 'fantasmas' do 'Coisa Ruim'". Reconhece que a montagem "deu uma grande volta ao argumento, que a rodagem já havia iniciado". Mas, sublinha: "A montagem final respeita o que eu chamaria o núcleo-coração do argumento. Nem os realizadores desmontariam em cacos a minha história, nem eu assinaria algo em que não me revisse".

E, apesar de toda a liberdade que lhes foi dada, os actores "mantiveram as personagens" dentro do que o argumentista imaginara. "Reconheço-as, a todas. Só posso ficar contente, porque me parece indicar que elas estavam bem construídas de início. Mas é perfeitamente natural ao trabalhar com actores que se respeita e em quem se confia, e não meras marionetas, que se lhes dê margem para ajustarem gesto, expressões, falas".

Mesmo nos silêncios, na tal respiração que os realizadores procuraram, Rodrigo reconhece a sua história. "Tudo isso estava lá. Sou muito técnico a escrever para cinema, gosto pouco da palhaçada de um rascunho mal amanhado para depois os realizadores brincarem no plateau. Mas, como é óbvio, cabe aos realizadores produzirem a sua própria respiração. Ou seja, se escrevo 'Lucia sai do autocarro e parece suspensa, de olhar perdido no meio da multidão de fim de tarde', os realizadores decidirão se fica suspensa dez segundos ou um minuto, e se cobrem a cena com uma câmara fixa ou uma rotação à volta dela, etc. Ou... se cortam a cena!".
 
Houve cenas que foram, de facto, cortadas, sobretudo aquelas que os realizadores sentiram que poderiam parecer julgamentos morais em relação a algumas coisas. E mesmo aquilo que é evidente no filme - o facto de as mulheres serem personagens muito mais fortes que os homens - não é "uma mensagem". No entanto, os dois reconhecem que, apesar de não ter sido um ponto de partida, é "um resultado": enquanto "as mulheres tentam levar as coisas para a frente, os homens estacionam".
 
"Entre os dedos" - que, dizem, "não é um filme negro, de desgraça", e que até deixa uma esperança no fim - é sobre isto. "A falta de tempo, a falta de dinheiro, a falta de tudo, porque de repente fomos atropelados por uma maneira de viver que está a provocar uma apatia generalizada". Pessoas que se sentam à mesma mesa e não falam, silêncios que se vão transformando em ódios, ódios que explodem em murros. "As dificuldades económicas são apenas um exemplo de algo que nos faz não termos tempo para alimentar e analisar os nossos sentimentos em relação aos outros. E depois, um dia, a vida apanha-nos".

O filme é a história desse dia em que a vida nos apanha - e nós, de repente, já não temos forças para continuar a correr.

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