Primeira identidade de "Fome", de Steve McQueen: é um filme que conta uma história.
A história dos últimos meses de vida de Bobby Sands, membro do IRA, que morreu em 1981, depois de 66 dias de greve de fome na prisão de Maze, Irlanda do Norte.
Segunda identidade de "Fome", de Steve McQueen: é um filme, realizado por um artista plástico, que está para lá dessa história. Dito de outro modo: lida com questões e temas intemporais e que, por isso, pertencem também ao presente. É difícil não pensar em Abu Grahib (embora o projecto se tenha iniciado antes da ocupação do Iraque pelos EUA) ou nos gestos tão resolutos quanto absurdos dos suicidas islâmicos.
"Fome" é um filme, também, sobre o bem e o mal, sobre relação entre o indivíduo e a sociedade (ou o Estado): repare-se na violência que estala, que se ouve no seu interior. Sobre a linguagem e o som: no diálogo entre um padre e o activista Bobby Sands ou no momento em que este parece perder a audição. Sobre o espaço e as suas texturas: das paredes, das feridas, do chão.
Oferece-se, por isso, como uma experiência - por vezes, mais do que a memória - ao corpo, à pele e aos sentidos, entre a narrativa e abstracção. Dirão que se trata, afinal, de um filme realizado por um artista plástico. É verdade, e ainda por cima reconhecido, talentoso. Mas este é o Corpo a última resistência O artista plástico Steve McQueen fez um fi lme que conta a morte, por greve de fome, do activista do IRA Bobby Sands. Mas fez mais do que isso: o fi lme oferece-se como experiência ao corpo, à pele, aos sentidos. "Fome" leva-nos (a todos) com ele. José Marmeleira mesmo artista plástico que ganhou a Câmara de Ouro no último Festival de Cannes; e com "Fome" alcançou um consenso (na crítica da arte e do cinema) que outros, seduzidos, pela grande sala escura falharam (talvez não Douglas Gordon, mas decerto Larry Clark, Julian Schnabel, Cindy Sherman). Então, quem é Steve McQueen? O que é "Fome"?
Estamos todos neste filme
"Um grande filme. Uma obra total", diz-nos João Tabarra, "sobre um tema que trabalho há anos e que é a condição humana. Onde o torturador e o torturado se confundem, e que mostra o acto do corpo como forma última de resistência. Estamos todos neste filme". Para o artista português, um dos aspectos mais significativos da primeira obra cinematográfica de McQueen é, exactamente, o facto da significação ética e filosófica das imagens não ser limitada pelo contexto escolhido (a greve contra o governo de Thatcher que recusava o estatuto de prisioneiros políticos aos membros do IRA). "Ultrapassa-o para nos relembrar o mundo e a barbárie no mundo. E constrói, tem tempo, sobretudo na cena da conversa sobre o paradoxo do suicídio. Um tempo aliás diferente daquele que nos querem impor, embora também seja verdade que o encontro noutros filmes".
João Tabarra descobriu o trabalho de Steve McQueen em meados dos anos 90, quando amigos de Londres lhe chamaram a atenção para obra do britânico. Tudo por causa de "Deadpan", filme onde este recria uma famosa cena de "Steamboat Bill Jr", de Buster Keaton: a fachada casa cai em cima da personagem principal sem a atingir. Desde então tem acompanhado o seu trabalho e lido grande parte dos textos sobre ele publicados. Só uma coisa o deixa incomodado, com "um mau sabor na boca": as entrevistas mais recentes do realizador, em particular uma ao "The Guardian" em Outubro. "Sempre apreciei os temas por ele abordados e os meios que usa, mas alguns dos seus depoimentos puxaram o tapete sob os meus pés. Não compreendo a dificuldade que revela em dizer se se trata ou não de um filme político ou de arte. Quais são afinal as suas convicções? Eu sei o que vi como espectador, mas ele parece não ter a certeza do que fez ou porque me convocou".
Na mesma entrevista nem tudo merece a desconfiança de Tabarra - "há uma passagem em que ele relata a filmagem do espancamento [real] dos presos como um momento que o levou a questionar o que fazia e que inclusive o fez sair da sala. E isso é muito profundo e interessante. Posso, humildemente, afirmar que entendo totalmente o que sentiu...ao filmá-la". Ainda assim, e como "alternativa" Tabarra sugere "Je Vous Salue Sarajevo, de Jean-Luc Godard", um vídeo de dois minutos, realizado em 1993, que mostra uma simples e terrível fotografia da guerra para ensaiar uma reflexão sobre o cinema, a Europa, a imagem fotográfica, a arte, a vida, a barbárie e o homem. Quanto a McQueen fica o benefício da dúvida: "Fico à espera dos próximos capítulos".
A ficção e o documento
Comissário e director do Museu, Pedro Lapa acompanha a obra de McQueen há mais de uma década, tendo participado, decisivamente, na organização da primeira apresentação pública da obra do artista britânico em Portugal: "Life/Live" no Centro Cultural de Belém, em 1997, que reuniu também trabalhos de Dougas Gordon, John Latham, entre outros nomes da arte da Grã-Bretanha. "Conheci o seu trabalho em Londres, em 1996, tinha ele realizado até aí apenas três peças. A quarta apresentava-a na galeria Anthony Reynolds e era 'Just above my head'. Lembro-me que nessa altura estava a preparar com Hans-Ulrich Obrist essa exposição e a decisão foi imediata. Aliás, ele disse-me que o Steve McQueen inevitavelmente um dia teria de fazer cinema, e estava certo".
Para Pedro Lapa, "Fome" é "um filme que constrói uma tensão entre os enquadramentos fechados da imagem e a arquitectura da prisão, quer através da enfatização que ambos emprestam um ao outro, com movimentos mecânicos e geométricos prolongados, quer pelo conflito que os movimentos da câmara também travam com esse espaço". No meio, acrescenta, estão "as personagens, sob estado de excepção e na espiral de violência de um conflito remoto, vítimas do castigo produzido pela violência e de uma justiça que se coloca acima do direito". É por essas personagens (sobretudo Bobby Sands e o padre Dominic Moran, quando este tenta convencer o primeiro a desistir da greve de fome) que, segundo Lapa, "passam a memória de muitos diálogos, como o de 'Antígona'", que aqui é "testemunho do terror secreto enquanto fundamento da ordem social e não apenas reclamação dos direitos humanos com que a democracia a lê"; refira-se que a conversa entre o religioso e o mártir político, filmada num único "take" de 20 minutos, é um dos momentos centrais de "Fome".
Finalmente, as cenas finais do corpo de Bobby, quando este caminha para a morte, merecem do director do Museu do Chiado uma leitura que toca uma problemática central dos limites da imagem: "Steve McQueen aborda o problema da representação e da interdição da representação: pelo sofrimento extremo e a impossibilidade de o transmitir por um dado meio artístico; e pelo interdito de proporcionar uma representação de algo demasiado monstruoso. E aqui estamos diante de Adorno sobre a possibilidade da poesia depois de Auschwitz. Muita arte moderna baralhou ambas as condicionantes e o artista procura oscilar entre os limites destas situações, mas só pode fazer como o filho de Bobby Sands, correr até a floresta escurecer muito e voltar."
Quanto às diferenças entre "Fome" e a restante produção de McQueen, identifica aspectos que permanecem, como "os enquadramentos fechados, as oscilações rítmicas entre o enquadrar e desenquadrar, os deslocamentos de câmara, a dimensão performativa e a relação próxima entre os processos formais e a sua alegorização numa narrativa". De novo, apenas, o desaparecimento do dispositivo da instalação e a presença de elementos como personagens e narrativa (ou seja, o cinema) Mas, sobretudo, um novo entendimento da relação (que já vem desde 2001) entre ficção e realidade ou entre ficção cinematográfica e documentário. "Ele ficciona uma narrativa através de dados documentais precisos para contar a história e sobre ela construir inteligibilidades. Se noutras obras tudo era filmado a partir da realidade e a construção e encadeamento das imagens produzia uma alegoria, em 'Fome' o processo é inverso. A ficção interpreta o documento".
Talvez seja na actualização dessa relação, entre o real e ficção, no seio da qual se encontra a narrativa, que "Fome" deva ser visto como cinema. Um cinema onde estamos todos.