1. Nos degraus com Arminda
Nas traseiras do palácio presidencial cheira a mato, mar e urina. Isto é Maputo. O Índico é já ali em baixo. Cá em cima é baldio com erva daninha. Mauro abranda, espreita em volta.
— Um dos loucos com quem trabalho costuma estar aqui.Calha que hoje não.
Manhã de sol, quarta-feira. Mauro trabalha muitas manhãs assim, manhãs-tardes-noites. Vai andando por Maputo ao encontro dos seus loucos. Há o das traseiras da presidência. O que anda nu na Feira Popular. O que todos os dias se mascara com o próprio cabelo, por exemplo de Batman. Quando lhe perguntam para quem trabalha, Mauro Pinto diz antes de mais que é “free lancer”. Fotógrafo sem patrão, 34 anos, exposições em alguns lugares além de Moçambique — África do Sul, Brasil, França. A 1 de Dezembro estará em Paris, para o ano em Milão. Este ano mostrou fotografias em conjunto com Ricardo Rangel, um dos nomes míticos da fotografia moçambicana. Há exactamente meio século entre eles. Rangel tem 84 anos.
A estrada curva e desce para a Baixa. Palmeiras, rapazes na marginal de camisa ao vento, as praias de Catembe no outro lado da baía, o muro onde se apanha o “ferry”.
— Aqui tem outro louco que escreve nos muros.
Estes loucos são aqueles que já ninguém vê. Podem estar na frente, mas são sempre as traseiras. Fazem parte do que Mauro chama Os Restos do Mundo, um dos seus projectos em curso.
— Agora descobri uma maluca hiper-inteligente que está ali à frente do banco BCI/Fomento.
Antes de lá chegar, avenida 25 de Setembro fora, passa-se o Maputo Shopping Center, uma recente massa de vidro e mosaico que parece bloquear o céu.
— Trabalhei com um louco aqui antes de finalizarem o edifício.Numa das suas fotografias do “shopping” (ver capa do P2) alguém vende algo no chão, junto à cerca de zinco. E nesse contraste vai toda a economia do país.
No centro da Baixa o carro começa às voltas para arrumar entre o Continental, o Scala e os Correios, até se meter numa perpendicular estreita.
— Ela vive nessa entrada aí.
Abrandando diante de uns degraus, Mauro inclina-se sobre o volante a sorrir. Uma mulher está sentada entre caixas de papelão, alguidares, cestos e sacos e nada parece acontecer na sua cara. Mas quando reconhece o condutor levanta a mão numa alegria, como se tivesse chegado quem ela espera, com todo o seu enxoval de restos.
E é linda de uma forma infantil, lenço turquesa na cabeça, camisa às flores brancas, colo coberto por um pano cheio de Tweeties, aquele pássaro amarelo dos desenhos animados que diz, com um defeito na fala, “I thought I saw a pussy cat”.
Mauro diz-lhe que já vem, que vai só estacionar, e atravessa a 25 de Setembro outra vez, contornando os Correios.
— A casa dela é ali. Vive ali. Faz tudo ali. Eu gosto muito dela. Tenho que ir comprar-lhe pão.
Na Fortaleza, perto do porto, há um cartaz da World Press Photo. A torre do Millenium BIM esmaga o centenário Bazar Central. Mauro estaciona o carro por trás dos Correios, aproveita para ir ver a sua caixa-postal, e entra no Continental a ver o que pode levar à amiga, sumos, pão, leite. Que idade tem ela?
— 40. Estou ainda a entrar, a deixá-la ganhar confiança. De volta, a pé é mais rápido que de carro.
Lá está a amiga, ganhando a manhã só de ver Mauro. Nem amarrotada nem suja. Um resto de verniz nas unhas. Pulseiras. Brincos. Mas como? Nos degraus sujos de uma velha loja de turismo com cartazes a dizer “Lisbon 7 hills free”, a Torre de Belém recortada e um anúncio “Old Spice, masculine freshness”, tudo desmaiado e cheio de pó, como é possível parecer uma princesa acabada de chegar?
— Eu vivia só o meu mundo, agora sou um pouco completa.Isto é ela a falar. O seu nome é Arminda.
— Já compraram a loja — explica.
Quer dizer que em breve terá de sair daqui, para não atrapalhar o negócio.
— Aqui na cidade as casas estão caras, 2500 meticais.80 euros.
— Aprendi muito aqui. Estou aqui desde Janeiro.
Esta quarta-feira é 8 de Outubro. Os eleitores de Maputo vão votar para um novo governo da cidade dentro de um mês e tal, a 19 de Novembro. A data do jornal que o leitor agora tem na mão.
Mauro disse que Arminda tem um dom da palavra, e tem mesmo.— Eu estava uma pessoa, agora sou outra. Já sou mais moçambicana que eu mesma. Usam o governo para me atingir, para me tirar tudo, mas aqui eu já sou livre. Ninguém me incomoda porque sou pobrezita. Também tive acidente. Parti os braços. Foi uma agressão.
Quem?
— São pessoas que nem dá para pronunciar o nome.
Arminda fala agarrada aos joelhos, desviando os olhos para a esquerda e para a direita, parando de repente.
— Não me deixo levar. Não deixo de ser eu. Eu vivo segundo o desejo do meu coração. É como se fosse Jesus a andar em cima das águas. Aceito esse anonimato de maluca, de não ter família, mas o desejo do meu coração me faz ser eu.
E à noite, quando a Baixa são putas, droga, vultos, faróis de carros varrendo no escuro?
— À noite eu recebo visitas muito esquisitas. Pessoas invisíveis. Às vezes são polícias.
E de dia? Como faz para se lavar, lavar a roupa?
— Vou à pensão, mas é complicação.
Não a querem lá.
Na sua outra vida, na Matola, a sul de Maputo, teve três filhos.
— Duas meninas e um rapaz. Não sei qual é o paradeiro. Marquei audiência para falar com o Presidente da República e não fui aceite. A polícia diz que não tem palavra para resolver o meu assunto. Milouca. Mi-louca.
E ri para Mauro. Se ele tivesse vindo sozinho era melhor. Quando estão sozinhos ela diz que ele é o namorado dela.
— Volta quando?
2. A árvore de Bitula
Mauro acompanha as suas pessoas. Além de Os Restos do Mundo, tem um projecto chamado Portos de Convergência e outro relacionado com Sida. Estes são os trabalhos a preto-e-branco, com a sua Canon EOS2 analógica. Estarão prontos quando estiverem. O tempo é o tempo de quem é fotografado. Mauro espera.
— Não pedi financiamento. Assim não tenho compromisso com financiadores. O meu compromisso é com as pessoas. Entender esta sociedade e a mim mesmo. Com o dinheiro de outros trabalhos, reportagens, encomendas, vou comprando película a preto-e-branco. Talvez no fim, para a impressão das fotos, possa pedir um patrocínio para uma exposição, para um livro.
Em relação ao projecto relacionado com Sida — que afecta 14 por cento da população em Moçambique —, Mauro nem sequer está certo de que vá fazer uma exposição ou um livro. O que faz é visitar Deolinda, que tem 27 anos, umas três vezes por semana, dependendo do estado dela.
— Ela é albina e seropositiva. A própria mãe não gosta dela por ser albina. Então ela não consegue contar à própria mãe que está infectada. E uma das irmãs também está infectada. Ela alugou uma casa e vive com os filhos. O marido abandonou-a quando ela pediu para ele fazer o teste. Ela diz que nunca dormiu com ninguém a não ser ele. E eu tenho quase a certeza disso.
Agora o carro sobe a 24 de Julho, vai a caminho da Mafalala, o bairro onde morava o poeta José Craveirinha. Este é um dos caminhos habituais de Mauro.
Pelo meio há o Mercado Estrela Vermelha, onde por exemplo se vendem os vidros que se roubam às casas, e em geral tudo. Quando se é roubado em Maputo, este é um dos lugares para vir comprar o que foi nosso.
— Que tal este farol? — apregoa um mulato, e o pregão é mato. Muito farol arrancado a muito carro.
Resume Mauro:
— Eu tenho um farol partido, e deixei assim, porque se coloco vão-me tirar.
Avança devagar entre as bancas, coloridas por chapéus de sol como um mercado de brincar. É meio-dia, escalda.
Em Maputo, muitos bairros dividem-se entre a parte de caniço e a parte de cimento, para distinguir a parte construída da parte improvisada. Craveirinha morava na Mafalala-cimento.
— Esta é a casa dele — aponta Mauro — ainda lá estão os filhos.E o carro segue pela Mafalala-caniço. Chão de terra, pó, lama. Casa de zinco, madeira e bocados de cimento. Murais contra a malária, campanhas de vacinação e os omnipresentes anúncios de telemóvel. Cores muito vivas nos passeios que são pilhas de fruta ou legumes, amarelo-verde-vermelho. Pés descalços, trouxa à cabeça, mochilas na costas dos meninos.
O carro volta ao asfalto no bairro de Xamanculo. Destaca-se a Igreja Mundial do Poder de Deus. E de novo terra batida.
— A Mafalala é um mundo com muita gente da Ilha de Moçambique muçulmana. Aqui no Xamanculo é mais cristão.
E Cristo convive com os espíritos em geral.
Mauro pára o carro junto a uma árvore impossível de tão emaranhada, com troncos como lianas e gigante como um mamute.
É uma espécie de rotunda do bairro, com ruas em todas as direcções. E por baixo da árvore, todo um estendal de remédios tradicionais, raízes, troncos, folhas, pós em boiões que já foram de comida para bebés.
— Tem remédio de crianças, para crescer bem, e remédio de barriga, de perna — começa a vendedora.
É uma mulher com trancinhas e capulana que às vezes parece uma rapariga e às vezes parece um diabo velho. Quando vê o caderno de notas deixa de descrever os remédios e começa a pedir dinheiro. Mauro pede-lhe que diga o que são os remédios antes de querer vender os remédios.
— Se quer que eu diga tem que pagar.
— Mas como é que vamos pagar se não sabemos o que é?O diálogo repete-se até ao “status quo”. A curandeira só vai falar depois de receber parte do dinheiro que pediu.
— Este cacto é para parar as hemorragias. Estes ramos são para esfregar com água e crescer cabelo.
O pagamento não dá nem para meia dúzia de explicações.Onde aprendeu ela?
— Em casa, com o meu pai. Ele era curandeiro. Iá.
Chama-se Bitula. Diz que tem 25 anos. As adolescentes por trás dela riem-se. Uma é filha dela. Ela diz então que tem 50 anos. As adolescentes continuam a rir-se. Bitula põe um chapéu e senta-se debaixo da árvore à espera que os de fora desistam.
3. A cidade inerte
Mauro nasceu em Maputo. Estudou fotografia por correspondência na África do Sul. Começou a fotografar em 1994.
— Mas profissionalmente, só em 2000.
A primeira câmara que teve foi uma Canon F1.
Tem dois filhos, de cinco e sete anos. Não se imagina fora de Maputo.— Acho que vou morrer aqui.
Como muita gente em Maputo, não compreende porque é que Eneas Comiche não será candidato a mais um mandato para a câmara de Maputo. Nas eleições de 19 de Novembro, a Frelimo apresentará outro candidato, quando as pessoas parecem contentes com este, visto como um histórico que não precisa da política porque é rico, e portanto não é corrupto.
— Comiche é o presidente que não devíamos ter perdido. O que fez?
— Esgotos, que não tínhamos, estradas, vários mercados construídos, prédios, muita coisa. Nós só queríamos que o Comiche continuasse a governar a cidade. Cumpriu com quase tudo o que prometeu. Ele ainda tinha mais um mandato. Foi praticamente destituído pela Frelimo, não pelo povo. O povo chora mas o partido é que decide. Isto é Maputo, 33 anos depois da independência.
Num café da Eduardo Mondlane, Mauro abre o seu portátil e mostra fotografias. Os filhos. A cidade. Alguns dos seus loucos, como aquele que se disfarça todos os dias com o próprio cabelo.
— Ele guarda carros em frente ao Bazar Central.
No dia seguinte confirma-se. Lá estará o homem sem uma perna e com penteado de Batman, entre o Bazar Central e a Casa Elefante, onde ainda se vendem capulanas apontando com um pau para o tecido lá no alto. Por acaso, no instante em que ele aparece, a polícia corre atrás de um homem, alguém grita ladrão, o homem acaba nos braços de vários polícias fardados, que acabam a dar-lhe estalos na cabeça e a empurrá-lo, enquanto ele grita, com as mãos na cabeça. É hora de almoço, a Baixa está cheia, mas não se faz uma roda. Maputo está inerte.
Além do homem sem perna e com penteados, há vários homens nus no ecrã de Mauro, porque há vários homens nus pelas ruas de Maputo.
— Já ninguém olha — diz Mauro.
Mas numa das fotografias vemos como uma mulher olhou. Há uma mulher semi-despida a agarrar um dos homens semi-nus.
— Ele estava na Feira Popular e ela ficou excitada com ele.
Ele nem por isso.
Além de Mauro, mais ninguém parecia estar a ver.