"Comprei este caderno para que, de certo modo, a experiência do tempo possa ser recuperada. (...) E também por uma insaciável curiosidade intelectual: de ter e desenvolver o que vem ao meu encontro, o que me desperta e eu transformo na escrita." Caderno 1 12.11.1974
A Estalagem da Raposa é uma daquelas casas de Sintra que de fora parecem estar bem assentes na vila, e por dentro afinal estão suspensas, com o horizonte a rodar nas janelas, castelo-paláciomar-verde, e som só de pássaros no telhado da cozinha.
Aqui morreu, a 3 de Março, Maria Gabriela Llansol, autora de uma das mais radicais metamorfoses da escrita contemporânea, obra de espantar, incessante.
Será o próximo grande mito literário português, já previu Eduardo Lourenço.
Hoje, dia em que Llansol faria 77 anos, Hélia Correia, Gonçalo M. Tavares e José Tolentino Mendonça vão ler textos na Biblioteca de Sintra. Durante a sessão, às 18h, serão lançados dois estudos llansolianos de João Barrento e Maria Etelvina Santos, o par que há meses dedica dias e noites a arrumar, digitalizar, transcrever e tornar disponível um espólio com mais de cem cadernos manuscritos inéditos, desde a longa temporada na Bélgica, de 1965 a 1985, até aos dias da doença, em 2008.
Contando a vida de Maria Gabriela Llansol em moradas: Lisboa, Lovaina, Jodoigne, Herbais, Colares, Estalagem da Raposa.
Quem chega a Sintra de comboio e desce em direcção à Volta do Duche, vê aquela torre de conto de fadas que é a antiga câmara, e à direita uma fiada de casinhas com alpendres e buganvílias fúcsia. A Estalagem da Raposa é uma delas.
Hoje já não funciona como estalagem. Está dividida em vários apartamentos. O de Maria Gabriela Llansol fica no primeiro andar e desde o átrio não parece um prédio comum. Há cadeiras com almofadas de croché nos patamares e todas as portas, sacadas e rodapés são de um azulpetróleo que faz pensar em casas de Verão.
Esse azul também existe por toda a casa de Llansol. E, sendo isto a adaptação de uma estalagem, a primeira surpresa quando se entra é parecer mesmo uma casa, com corredor, duas divisões de cada lado, em frente a cozinha.
O chão é de tábua corrida, as paredes foram recentemente pintadas de branco, a luz atravessa os quartos. Esta é a primeira sensação silêncio e claridade.
E logo à esquerda, em molduras muito antigas, reproduções daquelas flamengas pintadas por Hans Memling, de colo austero e toucado.
O visitante ainda não pousou o casaco e já está dentro dos livros de Llansol, um mundo em que figuras históricas e anónimas, criadores e criaturas, objectos, pedras, plantas, animais se cruzam, estão vivos, falam uns com os outros. O que todos têm em comum é Maria Gabriela. Ela toma-os e escreve com eles.
À direita, de onde a luz vem, fica o escritório. É a única divisão onde tudo se mantém como estava, a começar pela secretária com uma obsoleta Olivetti eléctrica tão usada que já tem papelinhos colados no "azert", onde as letras desapareceram. Há bonecas com vestidos de princesa e loiça de brincar, os livros mais importantes muito lidos e, como em todas as divisões seguintes, plantas e centenas de objectos, a meio caminho entre um gabinete de curiosidades e uma loja de velharias.
"Acho que uma certa felicidade é necessária à minha escrita; a felicidade tem a ver com o entendimento e o entendimento é uma das fontes do meu texto." Caderno 9 15.07.1980
João Barrento ( JB) e Etelvina Santos (ES) vêm a esta casa desde que Maria Gabriela para aqui se mudou. Estavam entre os mais próximos quando ela perdeu o seu companheiro de sempre, Augusto Joaquim, em 2003, e depois quando ela própria adoeceu. O último livro que Llansol publicou, "Os Cantores de Leitura", foi já ditado a Etelvina, que agora mostra um pequeno armário ao pé da secretária.
ES - Na última versão dos "Cantores...", eu passava a limpo e a Maria Gabriela ia lendo e decidindo. Nessa fase, ela queria sempre companhia. E tinha consciência do que estava guardado e nós não conhecíamos. Então um dia disse-me: "Vai ali ao corredor e vê o que está na parte de baixo da estante". Fui, comecei a tirar e eram 20, 30, 40, um mar de cadernos no chão do corredor! Todos tinham datas. Tirámos os copos deste armário e fomos pondo aqui os cadernos.
Foi a primeira "arca", quanto Barrento e Etelvina descobriram a dimensão do que estava inédito.
ES - Estes meses parecem anos, não é João? E era uma tal proliferação de objectos que não sabíamos o que guardar.
E por onde começar?
Etelvina agarra a bússola que afinal é um afia-lápis, e repousa num tabuleiro ao lado da fotografia da mãe de Llansol, de carneiros de loiça, de conchas. Barrento traz o caderno que actualmente transcreve.
JB - Cá está o sítio onde ela diz que os cadernos são livros em bruto, e escreve, a partir de Espinosa: "A beleza da forma e da cor...
ES - ... é a santidade das coisas."
JB - "Neste livro deponho a base de meus textos. É este o impulso criador."
ES - Noutro caderno, diz: "Escrevo. A experiência vem depois". Ela acordava às cinco da manhã, sentava-se e escrevia na cama. Há páginas que são difíceis de perceber porque ela escrevia no escuro. E tanto podia escrever uma hora como duas ou três.
JB - Imagens que lhe surgiam, ou sonhos. A escrita é muito rápida. E depois a experiência é já uma elaboração. O livro da sabedoria chinesa, o I Ching, está junto à secretária, ao lado de São João da Cruz e de Espinosa.
JB - Ela sempre teve aqui estes três livros. Espinosa era a grande referência, e antes foi São João da Cruz.
Barrento abre o I Ching e lê na etiqueta que foi comprado na Librairie des Sciences Ocultes, em Bruxelas. Llansol anotou-o todo a lápis por dentro e forrou-o à mão, com o postal de um falcoeiro medieval, uma das suas figuras importantes o primeiro diário que publicou chama-se justamente "Um Falcão no Punho".
Por baixo da janela estão as bonecas, pousadas em cadeiras, com o seu tabuleiro de chá para seres minúsculos.
ES - É o cantinho dela e da Hélia [Correia]. Sentavam-se aqui as duas a conversar. As conversas que a Maria Gabriela tinha com cada um de nós eram muito diferentes.
JB - Ela percebia a natureza da pessoa. Depois, aqui não há objecto que não tenha sido transformado. Alimentam livros inteiros. Vamos reconhecendo: Cá está o pássaro do Lalique! Olha a jarra azul!
Literalmente uma jarra azul, junto à secretária. Tem sido uma revelação contínua como tudo é material e não metáfora.
Barrento pousa as mãos num armário envidraçado, repleto de livros.
JB - Nunca o abrimos até hoje. É o armário dos autores dela.
Ao acaso do olhar: Hölderlin, Musil, Poe, Nietzsche, Santa Teresa d'Ávila, Teresa de Lisieux, Baudelaire, Rimbaud, Ibn Arabi, Santo Agostinho, Proust, Virginia Woolf, Kierkegaard...
JB - Que aparece no Finita como o Mestre da Culpa. Há vários mestres nos livros dela. Espinosa é o Mestre da Generosidade. ...
Emily Brontë, Jane Austen, um galito de loiça em cima de Kierkegaard, um gato em cima de Rilke.
JB - Quase tudo em francês. Uma parte vem já da Bélgica.
ES - Livros sobre Bach, biografias... Ela gostava de biografias.
JB - E de diários. O que cita mais do Musil são diários. O Bach ocupa-a muito tempo. Ela anda uns 15 anos com Lisboa-Leipzig. O livro de Maria Gabriela em que Bach e Pessoa se encontram. Etelvina aponta um grande bicho de loiça por cima do armário.
ES - E este carneiro sempre ali a olhar para nós! É das Caldas, já tem um corninho partido.
JB - Vem d'"O Livro das Comunidades", onde São João da Cruz é metido num forno e sai de lá carneiro. Ela dizia que não era escritora de invenção. Era uma escritora de transformação de imagens que lhe chegavam, quase em alucinação. Por isso é que ela não é romancista. Entretanto Etelvina pegou numa pequena gazela.
ES - "A erva verde e a patinha recolhida..." É mesmo isto!
JB - Da descrição do objecto nasce a escrita, que é a passagem para a dobra, para o outro lado. Até em "Amigo e Amiga", ela vai pela rua e a partir daí desencadeia-se o processo da escrita. Não para contar uma história, nunca. Há pensamento sobre o que se vê e um trabalho de linguagem para fixar as iluminações que lhe vêm constantemente.
ES - Ela dizia que gostava de escrever um livro em bruto.
JB - "Les bêtes, les brutes". Existe uma interferência do francês nela. E nos primeiros cadernos escrevia em francês.
Etelvina pega numa lamparina.
ES - Também é muito importante para ela.
JB - Todos os objectos que têm a ver com a luz, com a iluminação da leitura. A vela, o clarão.
ES - E uma lamparina de azeite nunca se apaga, como ela diz em "Um Beijo Dado Mais Tarde".
Nas paredes vêem-se peneiras e loiças.
ES - Ela ia às feiras, comprava cestos.
"É bom estar só com o branco que estou a vestir. Sei que o texto faz o desespero de alguns que o vêem. Não é ficção, é o que está por detrás a imagem, não é poesia sem ser filosofia, não é domável sem ser arrogância. O que é então? Será também o que não é. É uma espécie de nudez própria, impossível de vestir tal os animais e a natureza." Caderno 46 28.03.1997
Da divisão seguinte vê-se o mar ao fundo, em dias claros. É uma sala com mesa de trabalho e vitrinas para os objectos mais preciosos. Mas antes era o quarto de Maria Gabriela. O chão estava cheio de plantas e pilhas de livros. Havia uma cama com a cabeceira encostada à parede que agora tem uma grande pintura de Ilda David', da série "Nuvens".
ES - A Ilda doou-o para aqui. Como o Pedro Proença, a Fernanda Fragateiro, o Rui Chafes, o Manuel Sampayo, todos eles cederam trabalhos.
Etelvina pega num menino de loiça a ler para um carneirinho, que pode ser o Menino-Literatura, uma das figuras de Llansol.
Convive, nas vitrinas, com anéis de vidro, azulejos antigos, a pedra-de-jade dada por Hélia Correia por causa de Jade, um cão que Llansol teve e também está nos livros.
E esta pequena santinha de madeira, já a perder a tinta, sem braços?
ES - Chamamos-lhe a Senhora Decepada. Aparece no "Parasceve".
Há vários objectos azuis. No caderno que agora está a transcrever, João Barrento descobriu uma frase de Amigo e Amiga, o livro de Llansol após a morte de Augusto Joaquim, que é uma evolução a partir do negro.
JB - Vai ganhando transparência e acaba no azul, cor de júbilo e transformação. É um trabalho de luto feito pela escrita. Há a ideia de que a escrita anula a morte. Como Espinosa diz, sofremos e experimentamos que somos eternos. A alegria impõe-se porque a morte não tem substância.
João Barrento mostra a dedicatória acrescentada ao alto numa página: "Ao Augusto Joaquim, o outro da minha eternidade".
É um caderno pautado, quase de tamanho A4. Há outros mais pequenos, quadriculados, lisos, de diferentes espessuras, geralmente de capa dura.
JB - Para o ano, esperamos ter o primeiro livro destes cadernos. Cada livro incluirá mais de um caderno, dois, três, dependendo da dimensão.
"Um livro é uma assembleia de vozes, um banquete de muitos convivas . Nestes cadernos eu deponho escritos à primeira mão de madrugada a base de meus textos. (...) Nota preliminar: Eu não escrevo com sexo algum. Escrevo com todos inteligência com bondade, quero que seja a minha paisagem." Caderno 66 19.09.2003
A cozinha é uma espécie de galeria com janelas a toda a volta, onde se imaginam grandes pães-de-ló a serem batidos em tijelas de barro. Tem armários e mesas de madeira verde-esmeralda com tampos de pedra cheios de potes, chaleiras, cerâmicas, frascos. E as plantas trepam até às traves do tecto.
Maria Gabriela e Augusto Joaquim exilaram-se para ele escapar à tropa, e regressaram com 20 anos de Bélgica, incluindo estas plantas.
ES - Partiram de lá numa camioneta, num dia de Inverno, e há a imagem de um disco de vinil que caiu e ficou espetado na neve.
JB - Estamos com a ideia de um filme da Cláudia Tomás sobre este universo, e essa podia ser uma boa imagem para começar.
Numa das bancas há máquinas de café, uma almotolia para deitar azeite, saquinhos de chá de nêveda vindos de Mourilhe, a aldeia do Padre Fontes, onde uma vez esteve reunido o pequeno grupo que debatia com Llansol a sua obra.
ES - Ela cozinhava. Gostava muito de coisas biológicas. Tinha sempre sopa, comia sopa ao pequeno-almoço.
Como se faz no campo. Barrento reforça:
JB - Neste caderno, ela chama a si própria uma camponesa da escrita.
ES - Depois, havia uma loja em Campolide que vendia roupas usadas e a Maria Gabriela ia lá e transfigurava-as. Não gostava de roupas novas.
E tudo pode ser matéria física para escrever.
JB - O mesmo objecto mudado de lugar gera nova escrita. Foi o que ela fez com os milhares de objectos que herdou, desde a Rua de Domingos Sequeira [à Estrela, em Lisboa, onde Llansol cresceu]. A própria madeira fala, a madeira da Sant'Ana que perpassa "Um Beijo Dado Mais Tarde". É um uso da língua que se contrapõe à impostura da língua. Maria Gabriela vê isso na imagem de Sant'Ana a ensinar Nossa Senhora a ler.
Uma estátua do século XVIII que Llansol herdou da avó e agora está numa vitrina. Por baixo, vê-se um velho dicionário meio desfeito.
JB - É o dicionário que abre o Parasceve.
ES - Apareceu dentro de um saco de plástico assim, sem as primeiras páginas. E um dia, ao dar cera a um móvel, encontrei as páginas que faltavam caídas atrás de uma gaveta.
A janela da despensa dá para um verde a perder de vista. Continuando a rodar no sentido do relógio, segue-se o que era o quarto de Augusto Joaquim, e agora tem duas mesas de trabalho para investigadores, estantes novas, um belo louceiro antigo.
JB - Ela diz que uma casa não pode ser estática, tem que audaciar-se em pensamento. O objecto é inerte até se tornar vivo. É a lei dela da metamorfose.
Até esta estatueta kitsh de uma preta com um relógio incrustado na saia.
ES - Quando a vi, comecei a rir. Afinal existia mesmo a "preta do relógio na barriga" que está nos "Cantores de Leitura".
Augusto Joaquim, um homem despojado, que nunca teve muitas coisas, dizem Barrento e Etelvina, começou cedo a usar computador, mas Llansol nunca deixou de escrever à máquina.
E, antes de mais, à mão.
"_______a primeira imagem do diário não é, para mim, o repouso na vida quotidiana, mas uma constelação de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras." Caderno sem número (último) 12.05.2007
Os cadernos estão guardados na divisão seguinte. Era um pequeno quarto de arrumos que Barrento e Etelvina forraram com estantes. Dezenas de dossiers de arquivo com toda a correspondência e todas as fotografias, e dezenas de cadernos manuscritos.
JB - Há um primeiro núcleo numerado e datado com 76 cadernos. E depois há mais 73 cadernos de formato diverso, recuando até aos anos 60.
Só as fotografias cobrem mais de cem anos. Tudo o que era papel estava num caos. Durante três meses, João Barrento e Etelvina só limparam e arrumaram.
Agora, ele abre o seu portátil para mostrar o sistema de catalogação que permite ver cada caderno página a página.
JB - Vamos começar com uma edição digital dos cadernos 1 a 76, acompanhados de quatro índices: onomástico, lugares, figuras e temas. Isso permite a consulta na edição manuscrita. Depois vamos fazer uma transcrição parcial dos cadernos, por ordem cronológica, uma série que se chamará Livro de Horas e sairá na Assírio & Alvim. Mas, entretanto, os investigadores poderão trabalhar on-line os manuscritos.
Em 2010, está prevista uma exposição internacional no Centro Cultural de Belém.
Para estruturar tudo isto, Barrento e Etelvina criaram a Associação Espaço Llansol, que assinou um protocolo com a Câmara de Sintra. O apoio dá para pagar renda, água, luz e telefone, e em troca a associação compromete-se a animar actividades na biblioteca local.
A evocação de hoje será a primeira dessas sessões.
Fica por resolver o problema do fundo para continuar a tratar o espólio. Em 2008, a Gulbenkian deu um apoio específico para digitalização, mas agora não o renovou.
JB - A digitalização dos 76 cadernos numerados está quase completa. São 17 mil páginas, nesta primeira fase. Com os restantes cadernos irá para 25 mil.
Cada caderno demora dois a três dias a ser digitalizado. Alguns têm muitos papéis soltos dentro, que também são catalogados.
Barrento e Etelvina passam aqui dois dias por semana, ela vinda de Cascais, ele vindo de Lisboa, e depois trabalham em casa. Etelvina, que se doutorou com uma tese sobre Llansol, deixou mesmo de dar aulas na Universidade para se dedicar a isto. Está à espera de saber se terá uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Quer desenvolver um projecto para estudar Fernando Pessoa na obra de Llansol e conjugá-lo com o espólio. Barrento, que nos últimos tempos suspendeu as suas traduções de Musil e Benjamin por causa dos trabalhos llansolianos, chama a isto o espírito da "causa amante".
Foram eles que se habituaram a decifrar a letra de Maria Gabriela. E, desde Outubro, têm tido ajudas ao sábado: Cristiana V. Rodrigues, Albertina Pena, Daniela J. Oliveira e Helena Vieira, editora da Mariposa Azual, onde, a partir de agora, vão sair os livros sobre Maria Gabriela a começar pelos dois lançados hoje.
No seu caderno 46, Llansol anotou: "E neste instante de reflexão intensa aos pés da alma que batia quando eu saía nua da banheira, Catarina, no seu fato de rapaz incógnito, os cabelos louros florindo nos ombros igualmente nus, menos espantada do que Melissa a gata creme perguntou: Posso entrar?"
JB - O mais natural é que Catarina corresponda a uma figura real. Uma Catarina que entra em pé de igualdade com a gata, e todas nuas, como a natureza e os animais. Tudo nasce do banho. Sem metáfora.