Miguel Gomes: Salteador da fantasia perdida

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A região da Beira Serra é um vórtice, parece ter sobre as pessoas o mesmo efeito que o canto da sereia. Sabemos que estamos a chegar quando a estrada é floresta. Inclinado sobre os bancos da frente do velho Renault 5 SL para chegar ao cinzeiro, Miguel Gomes transfigura-se, como se algures tivesse franqueado uma alfândega encantatória. É uma agitação pequena, infantil, no fim de uma viagem pacata; tirando o cheiro a pinhal, dir-se-ia que Miguel Gomes pressente coisas que mais ninguém vê.

"Esta é a minha terra", diz o realizador de 36 anos criado nas Avenidas Novas. A "wonderland" de Miguel fica a três horas de Lisboa. Mas o que quer que a Beira Serra faz, faz a mais pessoas. São três da manhã e um grupo que combina gente da terra, técnicos de cinema e amigos de Miguel Gomes canta karaoke - vale tudo, das Doce ao pimba - numa praça vazia (tanta lâmpada estroboscópica viravoltante para nada). Um francês de calças justas pretas, t-shirt Arctic Monkeys ("Who the fuck are Arctic Monkeys") juntava-se a eles se ao menos soubesse as letras. Não sabe, por isso limita-se a dançar de frente para o grupo, sorriso na cara que tanto pode ser de bonomia como de puro contentamento. No dia seguinte, grava uma compilação inteirinha, de Rute Marlene a Marante, para o seu iMac.

Laurent Rigoulet esteve em Cannes, mas não foi aí que teve o seu "coup de foudre" ao ver "Aquele Querido Mês de Agosto" (reacções da imprensa francesa à segunda longa-metragem de Miguel Gomes, que passou na Quinzena dos Realizadores: "O filme mais estranho de uma Quinzena radical", escreveu o "Libération", e era um elogio; "Uma grande lufada de ar fresco acaba de atravessar o festival", anunciou o "Monde"; a revista "Cahiers du Cinéma" falou de "milagre"). Foi em Marselha, no Festival Internacional do Documentário, em Julho, que Rigoulet viu o filme. Quando Miguel Gomes lhe disse que tencionava mostrar "Aquele Querido Mês de Agosto" à população da zona onde tinha filmado, Rigoulet achou que isso dava uma reportagem para a "Télérama" (600 mil assinantes, fora o resto). O realizador não achou que ele falava a sério - e nós também não: porque é que uma "TV Guia" haveria de estar interessada numa reportagem sobre o filme de um jovem cineasta português que tem por pano de fundo os bailes de Verão de uma região montanhosa portuguesa? "TV Guia", sim, mas de costela intelectual, esclarece Rigoulet. Só em França.

Ele há coisas que só em Portugal: o Verão no interior, quando os emigrantes regressam, e há festa nas aldeias, saltos de pontes para o rio, caça ao javali, a "noite dos colhões", incêndios, paixões em fúria. "Aquele Querido Mês de Agosto" tinha de ser um filme excessivo porque é sobre Agosto, e Agosto é assim, pelo menos na região de Arganil, onde Miguel Gomes rodou. Deitamo-nos depois das quatro da manhã e acordamos antes das 11h, uma brigada de bombos à porta mas é o mesmo que dizer à beira dos ouvidos. Bum! Bum! Buuuum! Quando lhes dá para bater à desgarrada, uma mão descoberta pode acabar uma mão ferida. Todo o tempo na Beira Serra será convulsivo, ou não será. Não se anda 11 meses a fazer "countdown" até Agosto para nada.

"Cada aldeinha, cada pequena terra tem os seus três dias de festa. E organizam-se em termos de calendário para não coincidirem uns com os outros", resume Luís Urbano, produtor de "Aquele Querido Mês de Agosto".

O Renault 5 SL passa pelo meio de Dreia, uma povoação de beira de estrada com meia dúzia de casas. Galhardetes às cores a enfeitar a rua, palco montado ao lado da igreja. Miguel explica que em terras assim, onde a festa é na estrada, muitas vezes as pessoas têm de parar de dançar para deixar passar os carros.

Beira, faroeste português

Em Cannes, o realizador afirmou que esta era a região portuguesa que, para ele, mais se assemelha ao faroeste. É uma região que conhece bem, porque tem uma casa de família aqui. "Faz parte de mim, como Lisboa, mesmo que eu esteja mais tempo em Lisboa. Era um sítio onde eu passava férias em pequeno, nunca vivi lá. Havia, talvez, um lado de território fantástico. Fazia uma coisa que era proibida, tentava acertar em pássaros com uma pressão de ar - aliás, é uma coisa que aparece em ''A Cara Que Mereces'' [anterior longa de Gomes, de 2004]...".

Quando Miguel Gomes imaginou um melodrama sobre um trio amoroso constituído por elementos de uma banda de baile, soube logo onde filmá-lo. A narrativa seria pontuada - condensada, mesmo - numa série de canções interpretadas ao vivo, em palco. Esse imaginário da música ligeira, tangente ao pimba, era qualquer coisa que ele conhecia dos bailes de Verão na região de Arganil e o realizador chegou a ir para lá fazer "repérage" em vídeo antes da escrita do guião. Abriram-se "castings" em busca de actores não-profissionais (Sónia Bandeira, a jovem protagonista, foi a primeira rapariga a aparecer, respondendo a um anúncio; Fábio Oliveira, que interpreta o seu primo, foi encontrado num liceu de Oliveira do Hospital) mas pouco antes da rodagem, no Verão de 2006, ainda faltavam actores - entre eles, e para fechar o triângulo, o da personagem do pai dela. "Já nessa altura eu achava que devia ser o meu director de produção, Joaquim de Carvalho, porque tinha visto coisas na cara dele, na postura dele, que tinham a ver com a personagem. Mas ele achava que eu queria abortar o filme e estava a tentar arranjar uma justificação com ele", ri-se Miguel Gomes.

A par disso, alguns apoios financeiros esperados falharam. "Percebeu-se que era impossível, com o orçamento que havia, fazer tudo o que tínhamos previsto. Lembro-me que na versão final existiam mil e tal figurantes previstos... Fiquei um pouco deprimido, durante dois dias, e depois tive uma reunião com os meus produtores, que me disseram que a única solução era adiar o filme para o próximo ano, e ver se conseguiam arranjar mais dinheiro. Ora, a minha experiência diz-me que, no cinema, quanto mais tempo passa, não se ganha dinheiro, perde-se."

Um acidente

Estava-se em Julho de 2006, as festas de Agosto começavam dentro de duas semanas, e o realizador propôs ir para a Beira com uma equipa pequena - cinco, para além dele: assistente de realização, director de fotografia, director de som, assistente de imagem e um elemento da produção - e uma câmara de 16 mm, disponível para filmar o que a realidade oferecia, "nomeadamente os concertos, as festas". Podemos completar: e a mitologia local (como a história do homem que matou a mulher com um machado), as "personagens" (Paulo Moleiro, senhor Agostinho...), o folclore, a paisagem, o castiço (sem contemplações) e o cáustico (sem pudores)...

O argumento que Gomes tinha escrito a meias com Mariana Ricardo, sua colaboradora desde a primeira hora (como actriz ou compositora musical), fora posto de lado, a rodagem não estava prevista em qualquer guião. "Durante seis semanas fiz aquilo que algumas pessoas dizem que é um documentário..."

Luís Urbano, o produtor, define esse material como "uma espécie de diário de Agosto, ou uma ''repérage'' filmada", Miguel Gomes diz que terá sido a sua "rodagem mais feliz". "Não sabia exactamente para onde é que aquilo ia. Acho que nunca fiz nada de tão instintivo, tão pouco preparado, como neste filme."

Terminada a rodagem, o realizador pediu a Mariana Ricardo, co-argumentista, para estar presente na montagem desse material e pediu ao montador, Telmo Churro, para participar na reescrita do argumento. O trio amoroso seria recuperado - pai, filha, primo - e todo o seu contexto - ambiente de baile popular, melodrama sob o sol de Verão - mas este era já outro filme, nascido das suas próprias circunstâncias. Um acidente, diz o realizador. Tão feliz que ninguém perde tempo a pensar no que poderia ter sido.

"Aquele Querido Mês de Agosto" é um filme em duas partes ou um filme em movimento - nele vê-se como a realidade gera a ficção. Apesar de podermos cortar o filme ao meio, hora e 15 para um lado (a que, para facilitar, chamaríamos documental), hora e 15 para o outro (a que chamaríamos ficção), nunca sabemos o que estamos a ver. Gomes nem sequer gosta especialmente de documentário, não é a sua família, a sua guerra. Podemos, sim, contar com ele para fazer do real irreal. "Não há uma espécie de pureza do real, até porque não acredito nisso. Cada vez mais tenho vontade de filmar o real, mesmo que às vezes o real apareça transfigurado." Nada garante que a primeira parte de "Aquele Querido Mês de Agosto" não seja tão artificiosa quanto a segunda.

Antes de nos introduzir personagens, o filme introduz as pessoas que as vão interpretar. Vemos Sónia na torre de vigia antes de ser Tânia algures num palco de baile, vemos Fábio no hóquei antes de ser um filho de emigrantes, vemos Manuel Soares, gestor de condomínios... "Esse transporte de uma coisa para a outra tem a ver com o desejo que existe nas pessoas de serem outras. Esse movimento existe sempre na vida: as pessoas querem ser actores de si mesmas, querem fazer personagens que não são elas. Nesse sentido, a segunda parte também é um documentário sobre como é que aquelas pessoas fazem aquelas personagens", explica.

Trabalhar com actores não-profissionais tem os seus imponderáveis: a protagonista quis desistir à beira da segunda rodagem, fez o filme contrariada e cortou toda e qualquer ligação uma vez terminada a filmagem. "Estás a trabalhar com vontades indómitas", diz Luís Urbano, "não têm a disciplina dos actores. Por outro lado, dão-te coisas que os actores não dão. Dão-te verdade."

"O Miguel gostava muito que a gente improvisasse, só dizia: ''Sê o mais natural, sê tu''", explica Manuel Soares, 47 anos. Manuel é um dos actores que o realizador só decidiu escolher quando olhou para o material que tinha da primeira rodagem. Miguel Gomes filmara-o em 2006, numa procissão, e convidou-o para um "casting" em Maio de 2007. Como quase toda a gente que está na Beira em Agosto, Manuel não vive na Beira. "As minhas viagens de Lisboa para aqui, era a minha filha no banco de trás a ler o guião e a fazer as outras personagens."

Miguel Gomes queria que se vissem as pessoas e não só as personagens. Parte do trabalho ao nível de direcção de actores foi definir "em que percentagens se dava a ver a personagem que vinha do argumento ou a pessoa que o estava a fazer", explica. "Supostamente, a representação tem de apagar as marcas pessoais. Mas, mesmo no cinema clássico, o que eu gosto é do John Wayne e do Robert Mitchum, tipos que eram sempre iguais ao longo dos filmes que faziam, que não engordavam 30 quilos - diziam as frases deles e tinham sempre o mesmo ar e estava tudo certo."

Todos empatados

Aproxima-se a hora do jantar entre a equipa do filme e o presidente da Câmara de Arganil: mesa grande numa casa particular na Benfeita, sob os auspícios de um quadro-gravura com a Santíssima Trindade do Estado Novo, Salazar-Carmona-Craveiro Lopes, e dois vivas: "Viva Portugal" e "Viva o Estado Novo"; o projeccionista ouve dizer que Rui Poças, director de fotografia, esteve no Irão e pergunta: "Esteve como militar ou como civil?"

Carlos, que tem uma aparição momentânea no filme, está a pedir a Luís Urbano "cinco minutos para ir beber uma serradura", uma bebida alcoólica que só existe numa aldeia próxima, Luadas, e mesmo sem isso, a projecção, em plena praça, já vai começar atrasada. Praça à pinha, rapazes com crista e brinco à Cristiano Ronaldo, raparigas agarradas ao telemóvel, homens agarrados ao bar. Tatuagens nos dois braços, t-shirt "Beer, babes & football", Armando Nunes, estrela local do karaoke, baterista da banda Estrelas do Alva em "Aquele Querido Mês de Agosto" está a ver-se pela quinta vez no filme. "A primeira não gostei de me ver. É pior que a gente ver-se ao espelho."

O senhor Agostinho e a mulher, na fila da frente, riem a bom rir de se ver no ecrã, encolhendo-se muito, a populaça gargalha com o par burlesco. O septuagenário Agostinho foi o único "actor" que falou antes da projecção, qualquer coisa como: "Com coisas tristes não se vive; com coisas alegres vai-se vivendo."

Há também uma equipa de filmagem que aparece pontualmente em "Aquele Querido Mês de Agosto" e que, por acaso, é mesmo a equipa de filmagem de "Aquele Querido Mês de Agosto", realizador incluído. "Se eu pedia a pessoas de lá para fazerem coisas que eu estava a impor, também achei justo que as próprias pessoas do cinema fizessem personagens", explica Miguel Gomes, até porque o cinema "era um bicho grande que a gente levava para ali".

Não é um filme de "uns tipos que vêm de fora, de Lisboa, ver o povo", avisa. "Há duas visões predominantes do povo. Uma que é romântica, esquerdista, que vê ali uma poética do trabalho; e a visão da televisão, que é a visão do poder, sobre as classes mais populares, que servem como bobos da corte para as pessoas se rirem confortavelmente sentadas a ver televisão nas cidades. Tentei não romantizar nada e, por outro lado, olhá-los sem sobranceria. Se calhar também é por isso que acabamos todos por fazer personagens. Para estarmos todos ao mesmo nível, todos empatados."

Diz Armando Nunes: "Aquilo que o filme mostra é realmente aquilo que se passa principalmente em Agosto. São os emigrantes que vêm, as paixonetas que se arranjam. E depois, pronto, passa."

Manuel Soares evoca o plano inicial de "Aquele Querido Mês de Agosto", em que uma raposa espreita um galinheiro. "As primeiras imagens dizem tudo: um olhar de raposa matreira. Para mim, essa imagem é a astúcia do Miguel a ver estas gentes. Resume o filme todo. E isso, muita gente aqui não viu."

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