Jennifer Lynch, de 40 anos, fala com o ritmo invulgar do pai, David Lynch. Ambos têm vozes ásperas. A diferença é que enquanto o pai pode ter já atingido o cume da sua carreira, a da filha está a arrancar - e não escapa às comparações, que lhe são desfavoráveis. Mas são poucos os cineastas que poderiam ter lidado bem com o desastre do filme de estreia, como aconteceu com Jennifer, em 1993, com "Boxing Helena" - antes disso, em 1990, tinha escrito "O Diário Secreto de Laura Palmer", livro associado à série Twin Peaks, que foi um sucesso.
Mas ela é uma sobrevivente. Aos 19 anos um acidente de automóvel deixou-lhe danos horríveis nas costas que poderiam ter acabado com a sua vida. Foi submetida a três intervenções cirúrgicas e desenvolveu dependência de analgésicos, que usava para aliviar as dores. Ultrapassou isso. Aqui está ela, e dizer que está cheia de vida é pouco. "Vigilância", que agora está nas salas, é um "thriller" sobre um "serial killer", com Bill Pullman e a subestimada Julia Ormond. Interpretam dois detectives na pista de um assassino... Mas dizer mais é estragar o possível divertimento.
Fala como o seu pai...
Sim, eu sei. O que é estranho é que o meu pai também se senta assim [senta-se direita]. Há uma fotografia de nós assim num sofá. É uma excelente fotografia de família.
É uma maldição ou uma bênção ser filha de David Lynch?
Enquanto cineastas, esperam mais de nós. Sofia Coppola não tem hipótese senão fazer bons filmes, de outra forma está lixada. Não é um mistério a razão por que Nicolas Cage [sobrinho de Francis Coppola] mudou de nome. Mas na vida real o meu pai é um grande homem. Superfixe, superdivertido, calmo, não há nada de errado com ele.
É verdade que "Eraserhead" (David Lynch, 1977) foi inspirado pelo seu nascimento?
Sim. Aconteceu algo de especial quando fiz 40 anos, este ano. Estávamos a falar sobre "Eraserhead" e lembrei-me do meu pai a queixar-se de ter uma mulher e uma filha e de como isso não é vida de artista. É por isso que em "Eraserhead" há um bebé doente, e que pesadelo que é; e o pobre tipo não consegue ter sexo...
Nas semanas anteriores ao meu aniversário o meu pai tinha estado a reunir filmes, de mim quando era bebé e com a minha mãe [os pais separaram-se quando ela tinha seis anos] e com ele, em 8 mm e 16 mm, depois transferiu-os para vídeo e montou tudo. Juntou-lhe a música que ouvia quando se apaixonou pela minha mãe e era a minha música preferida quando era criança e tudo isto com "Viva a Jenno! Feliz aniversário! Amo-te!", e ele ficou ali a soluçar e eu fiquei ali a soluçar com a minha filha.
Quais são as suas memórias de "Eraserhead"?
Levou sete anos a acabar. Houve tantos problemas com o finaciamento, que nunca sabíamos quando íamos filmar. Vivíamos no local de rodagem e a equipa técnica era a minha nova família. Quando finalmente foi acabado eu disse: "Pai, decididamente, isto não é um filme para crianças", e ele disse que desejava que esse tivesse sido a frase promocional.
É o seu filme preferido?
É um dos meus preferidos, "O Homem Elefante" e "Veludo Azul" são os meus preferidos. "O Homem Elefante" revela o lado poeta que há no meu pai e "Veludo Azul" o "voyeur", o inocente e o criminoso que existem nele. Adoro essa dualidade.
Há quanto tempo é que conhece Bill Pullman, intérprete do seu filme e intérprete de filmes do seu pai?
Desde os meus 20 anos. Conheci-o depois de ter escrito "Boxing Helena" e ele era para ter protagonizado o filme, juntamente com Madonna. As coisas deram para o torto quando [o compositor] Andrew Lloyd Webber disse a Madonna que ela não podia fazer de Evita se entrasse em "Boxing Helena". Ela escreveu-me uma carta linda, telefonou-me a chorar e também pagou tudo o que já tínhamos gasto. Foi admirável, ela sabia que éramos uma pequena produção. Estranhamente, a partir daí o filme começou a ficar maior do que era e os produtores quiseram outra estrela [Kim Basinger, que se afastou depois do projecto, dando origem a um conflito judicial; o papel acabou por ir parar a Sherilyn Fenn, de Twin Peaks].
Eu queria fazer um pequeno filme com Madonna e contar a minha pequena história de encantar. Mas quando isso falhou, o meu coração nunca esqueceu Bill enquanto actor. Ele ainda tem tanto para explorar e tanto ainda com que nos deliciar. Quando o meu pai acabou de escrever "Estrada Perdida", disse: "Não conheço actores, não conheço actrizes". Falei-lhe no Bill. O Bill é da família, os nossos filhos andam na mesma escola e vivemos todos em Los Feliz, zona residencial de Los Angeles.
O que quer dizer o crédito de produtor executivo que o seu pai tem no filme?
O que quer dizer, para começar, é que ele leu o argumento, mas o que realmente quer dizer é que eu não estaria aqui hoje, de pé, se o meu pai não me tivesse ajudado a pagar a cirurgia à coluna vertebral. Como é que dizemos obrigado? Decidi que queria fazer isso independentemente daquilo que pudessem pensar. Ele disse: "Eu nem sequer estou perto da rodagem, tu escreveste o argumento". Mas quando lhe mostrei o filme disse-lhe: "Vamos combinar uma coisa. Se não gostares tiras o nome dos créditos". Ele já tirou o nome dos créditos de muitos filmes onde foi produtor executivo quando não gostou deles. Quando se acenderam as luzes depois da projecção ele disse: "Eu quero o meu nome em letras maiores". E eu disse: "A sério, pai? Esse é um grande elogio!"
Porque é que chamou ao filme "Vigilância"?
Pareceu-me apropriado. É um filme sobre pessoas que usam câmaras de vigilância para se observarem umas às outras. Mesmo os que estão a ser observados sabem que estão a ser observados. É também um filme sobre como as pessoas mudam as suas histórias com base no que vêem e naquilo que presumem sobre os outros.
Lynchiano é uma palavra que aplica ao seu filme...
Sim, eu sei. Ha ha ha.
Quando estava a crescer, o seu pai era lynchiano?
A primeira coisa que ele adorava fazer quando eu era bebé era pendurar uma carteira de fósforos num cordel, dobrar os fósforos em todas as direcções e pendurar aquilo muito perto da minha cara e observar como eu reagia. Fazemos brinquedos daquilo que arranjamos, mas lynchiano era uma coisa normal para mim. Num ano, para o aniversário da minha mãe, ele não lhe tinha feito um presente e ela estava quase a chegar a casa. Então pegámos em baldes e fomos para a rua e levámos terra para a sala de jantar. Enchemos a mesa de jantar de terra - não estou a brincar -, amassámos tudo e fizemos buracos. Ele fez pequenas figurinhas de barro, e meteu-as nos buracos e essa criação ficou lá durante anos. A minha mãe chegou a casa e disse: "Adoro!". E isso era normal para mim, como "vamos fazer-lhe qualquer coisa". Nunca me ocorreu que as outras pessoas não fizessem isto umas pelas outras.
As pessoas dizem que você e o seu pai gostam da escuridão.
Nós vivemos juntos uma vida muito feliz.