O "Magalhães da Ulisseia"
Li ontem nos jornais que tinha morrido, com mais de 90 anos, Joaquim Figueiredo Magalhães, conhecido em Lisboa pelo "Magalhães da Ulisseia", que foi um homem extraordinário e um grande editor. Com ele desapareceu uma parte importante da minha vida. Comecei a trabalhar numa revista dele, o Almanaque, e no Almanaque, embora sem escrever nada de notável, ou sequer de apresentável, percebi que, de uma maneira ou de outra, nunca mais deixaria o jornalismo. O Almanaque era um inexplicável acidente no Portugal salazarista. Cem páginas de papel pesado, capas de Sebastião Rodrigues, cartoons de João Abel Manta e uma redacção com José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, José Cutileiro, Augusto Abelaira e, depois, suponho mas não juro, Baptista Bastos. Detestei imediatamente Abelaira, por alcunha "A Velha", que fabricava com método e, presumo, com gosto, contos sentimentais, no estilo da Marie Claire do tempo. Via felizmente pouco Baptista-Bastos. E fiquei assombrado com Luís Monteiro (filho de um ministro e, a seguir, embaixador de Salazar, Armindo Monteiro), que tinha um Alfa Romeo - coisa inconcebível para um literato de 1960 - e um palácio em Loures e que me levava ao Belcanto e ao Rex, nessa altura sítios venerandos. Ao princípio, Cardoso Pires quase não me falava. Mas, já não me lembro como nem porquê, acabámos pelas tascas do Carmo, do Bairro Alto e da Baixa (onde, de resto, se comia muito bem) a discutir interminavelmente os méritos de romances vários, de que hoje ninguém se lembra ou sabe que existiram.
O Almanaque execrava intelectuais. No fundo, a prosa, o gosto e a espécie de mulheres que atribuía ao típico intelectual do neo-realismo. O romance de Luís Monteiro Angústia para o Jantar e a Cartilha do Marialva de Cardoso Pires faziam a apologia do aristocrata comprometido na acção por exigência estética ou moral e simultaneamente imune à vulgaridade da plebe - na essência o "homem frio", "a personagem gratuitamente acrescentada ao quadro" de Vaillant no Drôle de Jeu. Entretanto, na Ulisseia, o dr. Magalhães publicava o próprio Vaillant, Hemingway e o que "lá fora" se lera ou ia lendo, em esplêndidas traduções (de Jorge de Sena, por exemplo) e, principalmente, sustentava a ruinosa aventura do Almanaque. Sem ele e sem o lugar livre e alegre que ele criou na cultura portuguesa, o regime paroquial e bronco de Salazar teria sido para muita gente muito mais pesado.