“Estas instruções são mais adequadas a um micro-ondas”, diz-nos Rosa Montero

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“Se já não te restam mais lágrimas, não chores, ri”. Esta frase da avó do escritor Amos Oz, Shlomit Levin, é a epígrafe que a espanhola Rosa Montero escolheu para colocar no seu romance “Instruções para Salvar o Mundo” (ed. Porto Editora). É um romance urbano que fala de coisas “graves e grandes”, mas é contado “com humor a partir do quotidiano e do pequeno”. O título já dá uma ideia do tom. “Salvar o mundo é uma coisa muito, muito grande, estas instruções são mais adequadas a um micro-ondas”, afirma a autora, que esteve em Lisboa a promover o livro.

É a história de uma longa noite, tão longa que se prolonga por meses, em que acompanhamos as vidas de Matías (taxista viúvo, não supera a morte da mulher), Daniel (médico desiludido, passa horas no universo virtual do Second Life), Cérebro (uma cientista que noite após noite se alcooliza num bar) e Fatma (prostituta da Serra Leoa, raptada pelos guerrilheiros da Frente Revolucionária Unida quando era criança, é agora refém de um proxeneta nos subúrbios de Madrid). Há ainda uma lagartixa, Bigga, que Fatma crê ser o seu espírito protector, e um “serial-killer”, o assassino da felicidade, que compõe sorrisos nas vítimas.

“Instruções para Salvar o Mundo” é uma fábula da modernidade - o aquecimento global, o terrorismo, assassínios em série, a violência urbana, a máfia, o tráfico de mulheres, os mundos virtuais e a migração. A autora quis fazer “um relato da sensação caótica, confusa e sem sentido em que vivemos”. E ao fazer esse “retrato instantâneo da realidade” quis dizer ao leitor: “Olha, este é um mundo que pode parecer angustiante mas fica tranquilo, relaxa-te, não é caso para tanto. Respira, respira. A vida apesar de tudo pode ser vivida e o mundo, apesar de tudo, pode ser habitável. Podes ser razoavelmente feliz.”

Montero gostava que “Instruções para Salvar o Mundo” funcionasse para os leitores como os sacos de plástico que dão no serviço de urgências de um hospital a quem chega com um ataque de pânico. “Pega, fica tranquilo, não é caso para tanto. Respira aqui, acalma-te”

O taxista e os fantasmas

Montero não se cansa de repetir que os escritores não escolhem os romances, são os romances que escolhem os escritores. Aconteceu-lhe com esta história, cuja origem, há dez anos, foi uma madrugada em que regressava a casa de táxi pelas auto-estradas dos subúrbios de Madrid.

O taxista que a transportava tinha 40 anos, era muito calado ("coisa rara") mas quando um carro à frente cometeu uma infracção grave ele comentou com a cliente: “Estão bêbados. Sei do que falo. Casei-me com a minha namorada de infância, não tivemos filhos, éramos muito unidos, ela ficou doente e morreu três meses depois. Fiquei louco. Embebedavame todos os dias até perder os sentidos. Estive assim ano e meio. Um dia disse a mim mesmo que aquilo não podia continuar e deixei de beber. Não voltei a provar uma gota de álcool, já fez um ano”. Disse isto, calou-se e deixou a escritora em casa.

“Foi impressionante”, conta Rosa Montero. “Alguém que se abre num momento, que nos deixa tocar no seu coração e que é capaz de fazer, em poucas palavras, com sensatez e humildade, um relato épico. Porque se trata da história de uma dor devastadora e da superação dessa dor. Fiquei comovida.”

Assim que saiu do carro, sentiu que aquela história algum dia ia acabar dentro de um livro.

Sabia que esse romance ia ser a história de um taxista mas não sabia nada mais. Depois de a ideia andar às voltas na sua cabeça, apareceu-lhe outra personagem, Daniel, que contrasta com o taxista Matías. Mais tarde, surgiram as mulheres, Cérebro e Fatma.

Matías é o sobrevivente, “aquele que é capaz de ultrapassar a obscura noite da alma, como diria São João da Cruz, e de voltar a ver a luz”. Daniel é aquele que, sem razão aparente, não encontra motivos para viver e que representa a tentação do fracasso. “Quem é que nunca sentiu isso? A tentação de se deixar ir, de se dar à melancolia, de não lutar, de se render à passividade”, pergunta a escritora. “Nas sociedades pobres, paupérrimas, não há depressão porque as pessoas estão demasiado ocupadas em sobreviver. Mas quando se tem o básico assegurado, há muitas pessoas que não encontram o sentido da vida. Porque a vida não tem sentido. Essa é a questão.”

As personagens surgiram-lhe do nada, como nos sonhos. “Da mesma maneira que não se escolhem os sonhos que sonhamos à noite, não escolhemos as personagens, nem sabemos de onde vêm. Escreve-se a partir do inconsciente e este é muito mais sábio do que o consciente. Não sabemos a que fantasmas estamos a dar forma.”

Um escritor aspira sempre “à maior universalidade possível” e quanto mais deixa sair o seu inconsciente, mais essas imagens são colectivas. “No fundo, todos somos iguais. Quanto mais fiel um escritor é a si mesmo, a esse inconsciente, a esse imaginário profundo, mais fiel é à sua época e à sociedade. Esses fantasmas, esses mitos e arquétipos básicos são comuns a todos.”

O dia e a noite

“Instruções para Salvar o Mundo” começa num entardecer, decorre de noite durante meses e termina numa manhã. “É uma história de sobrevivência, começa com uma grande dor que faz com que um homem fique louco e depois de atravessar uma longa noite, esse homem volta a ver a luz outra vez e supera a sua dor.”

A escritora, noctívaga, acredita que de dia a vida é mais maquilhada, mais artificial e convencional. “Somos mais mentirosos na vida diurna porque aceitamos mais as convenções. Na vida nocturna parece que a realidade se despe, acreditamos que de noite tudo é possível. Entre as sombras pode ocorrer qualquer coisa, a magia, a felicidade, a desgraça. A noite promete aventuras e desventuras.”

Pela primeira vez num dos seus romances é dito especificamente que a acção do livro se passa em Madrid. Mas Montero explica que não é bem Madrid, é uma cidade imaginada. “Aqueles arredores, aquelas autoestradas, existem mas ao mesmo tempo são imaginados”.

E também neste livro aparece uma voz de narrador que a autora gostava de ser capaz de usar mais vezes. “É um narrador livre, esse narrador é Deus, é o narrador mais Deus que fiz em toda a minha vida! E a Deus permite- se tudo, como por exemplo, a determinada altura, desatar a contarnos o futuro das personagens. Mas é um narrador que vê a realidade com compaixão e ao mesmo tempo com sentido de humor”, continua. “É um olhar divino, um olhar sábio que eu gostava de ser capaz de ter ao olhar para a minha vida. Se em frente às nossas dores, ao nosso medo da morte, fôssemos capazes de ver a nossa própria morte em comparação com todas as mortes dos seres humanos seria um alívio, não é? Tínhamos outra perspectiva. Teríamos uma visão sábia, madura, que não sou capaz de aplicar na minha vida mas que gostaria de conseguir. Descobri isto com este livro.”

Poder-se-á dizer que “Instruções para Salvar o Mundo” é uma fábula moral? “Certamente, mas não fiz por isso. Não escrevo para ensinar nada, escrevo para aprender, para descobrir coisas e tentar dar um pouco de luz às trevas. Claro que salvar o mundo, ninguém o salva!”. Avisa: “Se aparecer alguém a dizer que vai salvar o mundo, fujamos, porque os salvadores do mundo são todos carniceiros e assassinos. O que se pode fazer é salvar o nosso pequeno mundo. E como se salva esse mundo? Sendo boa pessoa. E o que é ser boa pessoa? Viver com os outros.”

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