A obra maldita de Boris Pasternak

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Nesse livro inigualável que é "A Era dos Extremos", o historiador Eric Hobsbawm escreve que nos anos 50 a cultura na URSS era estéril. A excepção residia na poesia, "a arte mais capaz de ser praticada em privado" (não faltam motivos políticos para sustentar esta frase), e aquela que, continua Hobsbawm, manteve a grande tradição russa literária após a Revolução de 1917. Entre os poetas que o historiador destaca está Boris Pasternak (Moscovo, 1890 - Peredelkino, 1960).

De facto, Pasternak foi um poeta (e também tradutor), com obra publicada desde 1922 (estreou-se com "My Sister Life"), que teve a ousadia, diria o escritor Vladimir Nabokov, de experimentar o romance. Fê-lo a partir de finais da década de 40, depois de ler os clássicos russos do século XIX, e em 1955 completou o manuscrito de "Doutor Jivago", um romance devedor da prosa oitocentista.

Num momento em que a editora Sextante se prepara para editar a obra, numa tradução inédita a partir do russo, feita por António Pescada, e quando passam 50 anos sobre a atribuição do Nobel da Literatura a Pasternak, afigura-se propício evocar as controvérsias geradas por um livro que para uns é obra-prima e para outros é lixo melodramático.

Comecemos por esta última divergência, cujos protagonistas são Nabokov e o escritor e crítico literário Edmund Wilson. Existiram vários motivos para a quebra de amizade entre os dois (a gota-de-água terá sido outro autor russo, Pushkin, e a tradução de "Eugene Onegin", feita por Nabokov e cirurgicamente criticada por Wilson). Um anterior ponto de discórdia foi o valor literário de "Doutor Jivago".

Nabokov até gostava da poesia de Pasternak, mas não lhe perdoou a incursão no romance. Enquanto Wilson colocava a obra nos anais da História literária mundial - escreveu na "New Yorker" (15 de Novembro de 1958) que acreditava que "Doutor Jivago" iria ser "um dos grandes acontecimentos na história literária e moral da Humanidade", definindo o livro como "um acto de fé na arte e no espírito humano" - Nabokov caracterizava- a como "pirosa, melodramática, falsa e inepta". Dono de uma caderneta de ódios de estimação literários (Faulkner, Bellow, Hemingway, Mann, entre outros), Nabokov definiu a sua sentença sobre o livro numa conversa com jornalistas: "Doutor Jivago' é uma coisa lamentável, desastrada, vulgar e melodramática, com lugares-comuns, advogados voluptuosos, raparigas inverosímeis, bandidos românticos e coincidências banais."

A verdade é que estava praticamente sozinho nesta leitura. Publicado pela primeira vez em Itália, em 1957, o romance foi rapidamente traduzido em inglês e em francês. E o excelente acolhimento da obra incomodou sobremaneira o regime soviético (e já agora, Nabokov). Em "Personal Impressions", o filósofo Isaiah Berlin, um dos primeiros amigos de Pasternak a ler o manuscrito, considerou "Doutor Jivago" a obra de "um génio". "Parece-me transmitir toda a dimensão da experiência humana, e criar um mundo, mesmo que esse mundo só contenha um único habitante genuíno, numa linguagem de inigualável força imaginativa."

E Italo Calvino, num texto datado de 1958 e compilado em "Porquê Ler os Clássicos?", escreveu: "A veia do filosofar apaixonado continua a brotar por todo o livro, mas a vastidão do mundo que aí se move é tal que pode aguentar com tudo isto e mais ainda."

No mesmo ano em que Calvino escreveu estas palavras, Pasternak foi agraciado com o Nobel da Literatura. Na URSS e fora dela, muitos julgaram que a publicação de "Doutor Jivago" tinha determinado a escolha da Academia Sueca. Mas não foi bem assim. Esta história em torno no Nobel já teve várias versões, que foram tanto mais propaladas porquanto no historial do Nobel da Literatura constam apenas duas rejeições: a de Pasternak e a da Jean-Paul Sartre, em 1964, ainda que por motivos díspares.

Em 2003, porém, na edição inglesa do "Pravda" (18 de Dezembro), um dos filhos do autor lançou alguma luz sobre o assunto, recordando as suas memórias dos acontecimentos de 1958 e apontando alguns dos efeitos mais nefastos na vida do pai. As consequências da decisão da Academia Sueca sobreviveram, aliás, à morte de Pasternak e só desapareceram em finais da década de 80. Até essa altura a atribuição do Nobel ao escritor russo era assunto banido na ex-URSS.

O incómodo e a fúria

Ao contrário do que o meio intelectual soviético propagandeou, Pasternak não recebeu o prémio por causa de "Doutor Jivago" (embora o próprio autor tenha tentado desculpar-se da atenção que lhe era dada pelo Ocidente, apontando como motivo a publicação do livro, em Itália). O seu nome já constava da lista de prováveis nomeados da Academia Sueca desde o fim da II Guerra e em causa estava a sua obra poética. De 1946 a 1950, esteve sempre na "short-list" de candidatos. E voltou a ser colocado em 1957, ano em que o laureado foi Albert Camus, que, aliás, elogiou Pasternak no seu discurso na cerimónia de entrega do prémio.

Os rumores de que Pasternak poderia vir mesmo a ganhar o Nobel causavam grande incómodo no interior da União de Escritores Soviéticos. E quando foi anunciado o vencedor de 1958 - "pelo seu importante feito tanto na lírica poética contemporânea como na área da grande tradição épica russa" - o incómodo transformou- se em fúria.

Um ano antes, refira-se, Pasternak tinha enviado o manuscrito de "Doutor Jivago", o seu único romance (se exceptuarmos o romance em verso "Spektorsky", de 1926), para Itália, uma vez que as autoridades soviéticas entenderam que o seu conteúdo não estava conforme as regras do realismo socialista.

Após ter recebido o telegrama do Comité do Nobel, em finais de Outubro, Pasternak respondeu, também por telegrama: "Agradecido, contente, orgulhoso, confuso." À sua casa em Peredelkino chegaram missivas com saudações; muitos jornalistas postaram-se à sua porta. Zinaida Nikolaevna, a mulher do escritor, pensava já no vestido que usaria na cerimónia em Estocolmo. E Pasternak julgou (por pouco tempo) que a opressão que sofrera após a publicação de "Doutor Jivago" no exterior poderia desvanecer-se com esta distinção, que, pensava, era um reconhecimento para toda a literatura russa.

Um dia depois de ter recebido o telegrama da Suécia, começou a aperceber- se dos efeitos do Nobel com a visita de um membro do departamento cultural do Comité Central do Partido Comunista, que lhe ordenou a recusa imediata do prémio, sob a ameaça de uma perseguição sem precedentes nos media.

Nesta primeira abordagem, o escritor recusou cumprir a ordem, explicando que já tinha respondido ao Comité do Nobel e que a rejeição poderia ser interpretada como falta de educação. Argumentos que, como seria de esperar, não tinham qualquer significado para o partido liderado por Nikita Khrushchev.

Conta o filho que, nesses dias, o pai tentou cumprir a sua rotina diária - traduzia, então, "Mary Stuart", obra dramática de Schiller -, embora evitasse olhar para os jornais. Estava empenhado em não se deixar quebrar. E foi isso que quis provar à União de Escritores Soviéticos, enviando uma carta aos seus pares que foi lida durante uma reunião destinada a discutir o assunto Nobel - encontro que, note-se, quase ditou a sentença de morte de Pasternak ("uma bala na cabeça desse traidor!", terá gritado uma "famosa escritora" durante a acalorada discussão).

A carta desapareceu dos arquivos da União, mas o filho de Pasternak recordou para o "Pravda" alguns dos items principais do texto, no qual o autor acaba por dar razão aos contestarários que julgaram que o Nobel era o reconhecimento mundial de "Doutor Jivago". Sublinhando que teve o cuidado de enviar o manuscrito para um editor comunista italiano (Feltrinelli), Pasternak escreve que aguardava uma "versão censurada" do livro a ser publicada por uma editora moscovita. "Concordei em corrigir todas as partes inaceitáveis." Contudo, prossegue, não imaginou que o prémio lhe tivesse sido atribuído por causa do romance, mas sim por toda a sua obra poética. "O meu nome esteve várias vezes na lista de nomeados quando este livro ainda sem sequer existia." Por isso, garante, nada nem ninguém poderá demovêlo da intenção de aceitar o Nobel, cujo valor pecuniário irá, na sua totalidade, para o Comité de Protecção da Paz.

Pasternak não deixa, porém, de atacar os membros e as políticas da União de Escritores Soviéticos, provocando a ira de muitos autores: "Sei que, por causa da pressão pública, o meu lugar na União de Escritores poderá ser colocado em causa. Não espero a vossa justiça. Podem matarme, enviar-me para o exílio, fazer tudo o que quiserem. Eu perdoo-vos. Mas não se apressem. Isto não vos dará nem felicidade nem glória. E lembrem-se que, dentro de alguns anos, terão de me reabilitar. É uma prática que vocês já conhecem."

A ira da União dos Escritores Soviéticos e, já antes, a supressão de "Doutor Jivago", expuseram a associação ao ridículo e ao desprezo internacional. Sobretudo porque o romance não era interpretado como uma obra política.
Em "Complete Collected Essays", o escritor e crítico literário inglês V. S. Pritchett frisa que quem espera ler em "Doutor Jivago" um libelo contrarevolucionário e anti-soviético ficará desiludido. Apesar de reflectir os efeitos da Revolução de 1905, da I Guerra Mundial, da Revolução de 1917 e da II Guerra Mundial, "Doutor Jivago" não é um romance político - é "inútil", define Pritchett, enquanto interpretação do que está certo e errado na história dos primeiros 50 anos do século XX.

Narrada em retrospectiva por um médico e poeta ideologicamente não comprometido, Yuri Jivago, a obra conta uma história de amor tão ou mais trágica e conturbada do que as revoluções e contra-revoluções que lhe servem de pano de fundo.

O sacrifício

A atitude corajosa e destemida que permitiu a Pasternak aguentar também uma campanha insultuosa na imprensa desmoronou-se a 29 de Outubro. Nesse dia, Pasternak telefonou a Olga Ivinskaya, a sua musa e amante durante 14 anos, a grande inspiração para a criação de Lara, a mulher por quem Jivago se apaixona durante a I Guerra Mundial e com a qual irá viver um amor conturbado e com um final infeliz.

Em 1949, Olga tinha sido vítima da repressão estalinista por causa de Pasternak - sem uma razão palpável para o segregarem, atiraram Olga para uma prisão (estava grávida e abortou) e, pouco depois, para um campo de prisioneiros políticos, onde ficou quatro anos.

Quando soube da notícia do Nobel, Olga foi a primeira a persuadir Pasternak a recusar o prémio. Queria protegê-lo; as memórias dos campos estalinistas eram ainda frescas. Não é de estranhar, por várias razões, que tenha sido Olga a primeira a saber que o escritor se preparava para rejeitar o prémio (de certa forma, este era o gesto de retribuição por tudo o que ela fizera e sofrera por ele). Fê-lo num novo telegrama para Estocolmo: "Atendendo à ressonância que a distinção provocou na sociedade a que pertenço, tenho de declinar o prémio; não considerem esta recusa voluntária como um insulto." E, de seguida, enviou um outro telegrama, desta vez dirigido ao Comité Central do partido. Escreveu apenas isto: "Restituam a Ivinskaya o seu emprego, eu recusei o prémio."

Todavia, o sacrifício de Pasternak valeu-lhe de pouco. E a Olga também - depois da morte do escritor, em 1960, foi novamente enviada para um campo de presos políticos, juntamente com a sua filha.

Expulso (com aplausos) da União de Escritores Soviéticos, Pasternak viu-se confrontado com a ordem governamental para abandonar o país. Naquele momento, a decisão de Khrushchev ia ao encontro dos desejos do escritor. Porém, a sua mulher e um dos filhos opuseram-se à ideia de exílio. Ficar significava, como já lhe tinham avisado, assinar um texto escrito pelo partido com referências elogiosas ao "Pravda" e a Khrushchev. Pasternak assinou, tolhido pela humilhação de saber que aquilo só convinha mesmo aos seus pares e mais ninguém.

O caso Nobel teve ainda um último episódio, já em 1959, data da publicação de "An Essay in Autobiography" em Itália e no Reino Unido. Quando a revista britânica "New Statesman" publicou um poema de Pasternak, titulado "O Prémio Nobel" - "Que espécie de truque sujo é que terei feito, serei um assassino, um vilão? / Eu, que deixei o mundo inteiro a chorar pela beleza da minha pátria" -, o regime acusou-o de traição e ameaçou-o de prisão se voltasse a ter qualquer tipo de contactos com estrangeiros.

A 30 de Maio de 1960, Pasternak morreu na sua casa de Peredelkino, sentado no sofá de onde podia observar o retrato do seu mestre Tolstoi, pendurado na parede.

Muitos anos depois, precisamente no eclodir do colapso da ex-URSS, o diploma do Nobel chegou finalmente às mãos da família Pasternak. Com o assentimento do Ministério da Cultura russo.

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