Samuel Úria
Num "western" português

Foto
Vera Marmelo

É um homem alto, de bigode curto e bem desenhado, que nos fala dos westerns de John Ford, de Cohen e de Dylan. É um professor de Educação Visual que passou os últimos anos entre Tondela, a sua terra, Coimbra, Leiria, Figueira da Foz, Évora e, agora, Lisboa. Úria é músico, é o "baladeiro" desalinhado da FlorCaveira - e é por isso que nos fala de Ford. "Quando vi 'O Homem Que Matou Liberty Valance' passei a considerar o 'western' o melhor género que existe. Cheguei a pensar chamar ao meu próximo disco 'Outono Cheyenne', tradução grosseira de um filme do John Ford que utilizo na [canção] 'Barbarella [e barba rala]'". Descodifiquemos. O próximo disco é o longa duração que sairá em 2009. "Barbarella e barba rala" é uma das canções que compõem "Em Bruto", o EP que acaba de lançar. Nele, ouvimos bluesrock, homenagens a Variações, biografia melómana em forma de canção e uma preciosidade que junta "teremos sempre Paris" ao "Outono Cheyenne" para falar de um coração nostálgico.

Samuel Úria surpreende pelo inusitado cruzamento de referências, pela métrica que utiliza e pela fluida musicalidade que daí brota.

Ele que integra uma editora e um conjunto de músicos em que o português não é opção, é uma obrigatoriedade, fala-nos de umas férias passadas no Oeste português a ver westerns do Oeste americano, diz-nos que Hank Williams e Gene Autry, "the singing cowboy", são referências. Aí chegado, pára: "Isto pode levar-me a ser acusado de hipocrisia, por ser tão cioso do português e depois ir buscar géneros estrangeiros". Pára novamente, e despacha a questão: "Mas se há coisa da democracia de que nos devemos orgulhar é a legitimidade que nos dá para usarmos tudo o que quisermos" - e cita o "Keep on rocking in free world" de Neil Young. Esta, como se verá, é justificação à posteriori.

Cresceu em Tondela. Miúdo com uma banda, congeminava com outros miúdos de outras bandas, "todas muito más", fazer da cidade beirã a Seattle de Portugal. A ilusão de Seattle desapareceu com a adolescência porque Cohen, Dylan e Tom Waits se atravessaram no caminho. Desapareceu porque, também baptista, conheceu Tiago Guillul e a trupe da Flor Caveira. Punk-rocker, começou a serenar esse impulso e a descobrir que, nas suas canções, "havia sempre um substracto folk". Junte-se a isso o gosto por uma "sonoridade rasteira e primária que é comum ao punk e ao folclore, quer americano quer português", e chegamos ao cerne da questão: "Não sou um perfeccionista", dirá então. Situação ambivalente.

Ouçamos "Ossos do ofício", a "variaçonice" de "Em Bruto": "Não sei se combata a preguiça/ Se a vontade de fazer". Ouçamo-lo a ele: "Escrevo as canções numa questão de minutos. Se a música não me der prazer instantâneo, aborreço-me. É uma forma de não ganhar úlceras por uma canção não estar a sair bem ou por ter dificuldades a encontrar uma rima".

Desse processo, que funciona por "rejeição, não por inspiração" - "vou decidindo aquilo que não quero até aparecer algo que valha a pena" -, nascem cruzamentos pouco habituais. Como explica, "deixando tudo fluir e retendo apenas aquilo que interessa, consegue-se escapar ao conformismo temático". Ilustra: "Uma das primeiras músicas que fiz era uma balada séria e comovente, mas falava do Vale e Azevedo. Porque não? Era um benfiquista sentido na altura".

Ou seja, dando uns passos atrás. É bonita a questão da legitimidade democrática, mas isso foi o que Úria, cantautor tentado pela preguiça, antiperfeccionista negando a noção de inspiração, reflectiu depois. Primeiro há estas canções. Coisas como a citação de "Casablanca" introduzindo "Barbarella e barba rala". Coisas como "Desliga a TV", do eléctrico e roufenho EP "Samuel Úria & As Velhas Glórias" (2005) - a capa é uma foto do Benfica de Coluna e Eusébio -, onde se faz análise literária em analogia teológica: "Saramago é bom/ Mas não te dá a salvação/ Quem tem medo do Lobo Antunes/ Devia ter temor a Deus". Coisas que Samuel Úria descobre no seu peculiar Oeste português.

Sugerir correcção
Comentar