Taça Davis A final que nunca existiu e outros duelos tensos
Finais tensas por causa do apartheid, finais que não existiram.
Meias-finais com mais polícias fora do estádio do que espectadores dentro. Finais com mais pides à paisana do que adeptos. As coisas já foram
muito mais dramáticas do que a final que termina hoje na Argentina
a Ao atravessar mais de um século de história, a Taça Davis tem sofrido as convulsões políticas que marcaram a vida das dezenas de países que nela têm participado. Idealizada por Dwight Davis em 1900, para opor os melhores tenistas norte-americanos aos melhores britânicos, a competição juntou este ano 127 nações - o recorde, de 139, foi em 2001. E, ao longo das suas 98 edições, a Taça Davis colocou frente a frente muitas selecções de países sem relações oficiais. O seu momento mais triste registou-se em 1974, na final... que não chegou a acontecer, porque Indira Gandhi não deixou a selecção indiana deslocar-se à África do Sul.Nos anos 60 e 70, a política racista da África do Sul teve bastantes repercussões no desporto, sendo a centenária competição tenística uma das mais afectadas por causa da sua frequência anual. O problema teve um dos seus picos quando, em 1969, o Governo sul-africano recusou um visto de entrada a Arthur Ashe, o primeiro campeão afro-americano no Grand Slam e o número um no ranking dos EUA.
Um ano depois, os países integrantes na Taça Davis votaram favoravelmente uma proposta dos EUA e baniram a África do Sul e a Rodésia, devido à perturbação que provocavam na competição. Os sul-africanos foram readmitidos em 1973, mas muitas selecções continuaram a recusar-se a defrontá-los e, nos locais das eliminatórias, havia muitas vezes manifestações de protesto contra a sua política racial. E chegou-se assim a 1974, ano em que a 63ª edição da Taça Davis contou com 56 selecções (33 na Zona Europeia, 12 na Zona Américas e 11 na Zona Oriental). Como, na altura, não havia ainda um grupo de qualificação africana e como a maioria dos países europeus se recusava a defrontá-la, a África do Sul foi despachada para a Zona Sul-Americana, onde derrotaram o Brasil, Equador, Chile e Colômbia, sem perderem qualquer encontro de singulares ou pares. Na meia-final, os sul-africanos confirmaram o seu valor derrotando a Itália de Adriano Panatta. Mas em Novembro chegou o anticlímax para a equipa da África do Sul: no seguimento da sua luta contra a segregação racial, iniciada nos anos 40, o Governo indiano liderado por Indira Gandhi recusou deixar a selecção deslocar-se ao continente africano para disputar a final.
Dura realidade
Sem brilho, Cliff Drysdale, Frew McMillan e Bob Hewitt, comandados pelo capitão Claude Listre - nascido nos arredores de Londres (Inglaterra) e, portanto, o último britânico a ver o seu nome inscrito na "saladeira" - tornaram-se, mesmo assim, na primeira equipa a interromper a hegemonia das quatro potências dominantes - EUA, Grã-Bretanha (no início com a designação de Ilhas Britânicas), Austrália (no início como Australásia) e França (cujos "quatro mosqueteiros" dominaram os anos 20).
"A Taça foi enviada para a África do Sul e foi-nos entregue numa cerimónia em Ellis Park (Joanesburgo). Nas nossas mentes, éramos grandes favoritos, mesmo tendo em conta que a Índia contava na sua selecção com os irmãos Amritraj", recorda McMillan. "Joanesburgo está situada a seis mil metros de altitude, uma enorme vantagem, e os nossos jogadores estavam em boa forma. Foi uma vitória um pouco ofuscada, mas, mesmo assim, uma vitória que nós merecíamos de qualquer maneira."
Para Vijay Amritraj, número um do ténis indiano, então com 20 anos, foi um pouco frustrante, mas ele acabou por concordar com a decisão do seu Governo. "Ao entrar em contacto com esse país, passei a olhar com muito mais atenção para a África do Sul e para a incrível luta das pessoas não-brancas por aquilo que o resto do mundo dá por garantido. Como desportista de 20 anos, senti-me um pouco frustrado, mas o meu coração sentiu-se muito bem por ter apoiado a luta de um povo que queria viver como todos os outros", disse Amritraj, no discurso proferido no Comité Especial contra o Apartheid das Nações Unidas, em Maio de 1988, por ocasião do 25º aniversário do Comité Olímpico Sul-Africano Não-racial.
No entanto, a primeira reacção de Amritraj e da restante equipa não foi positiva, pois os indianos souberam da recusa em jogar a final através de um jornal, quando competiam no Open de Estocolmo, poucas semanas antes da data da final. Após deixarem os seus amigos sul-africanos McMillan, Ray Moore e Robert Maude no átrio do hotel, subiram ao quarto para telefonar para Nova Deli e confirmar a notícia. "Apesar de não ter sido uma surpresa, ficámos furiosos pela maneira como aconteceu. Estávamos preparados para aceitar a decisão do nosso Governo, qualquer que ela fosse, mas a nossa federação acabou por decidir-se antes de ter sido emitido qualquer decreto governamental", revelou Amritraj a Richard Evans, autor do livro The Davis Cup. Uma decisão elogiada por milhões que consideravam que a África do Sul não deveria ter sido reintegrada na competição. Os protestos acabaram por encontrar eco junto da federação internacional e a selecção sul-africana voltou a ser afastada da Taça Davis entre 1978 e 1992.
Os difíceis anos 70
No ano seguinte, a agitação continuava e o México e a Colômbia recusaram defrontar a África do Sul, colocando este país na final da Zona Americana sem disputar qualquer eliminatória. E foi com algum alívio que os anti-apartheid viram os campeões sul-africanos serem derrotados no Chile.
Mas a politização da prova continuou mesmo sem os sul-africanos. Dois meses depois, a meia-final que levou os chilenos à Suécia foi rodeada de extremas medidas de segurança, após o seu número um, Jaime Fillol, receber uma ameaça de morte dos opositores à junta militar chilena. Os responsáveis suecos garantiram segurança total e a eliminatória decorreu com mais polícias e militares nas imediações do Bastad Tennis Stadium do que espectadores no pavilhão. Os manifestantes anti-chilenos foram mantidos à distância e enormes redes defenderam os jogadores dos projécteis atirados pelos protestantes. No ano seguinte, foi a vez da então União Soviética recusar-se a defrontar o Chile, em protesto contra o golpe militar que depôs o regime marxista de Salvador Allende.
De facto, ao longo da sua centenária história, a Taça Davis atravessou momentos politicamente difíceis, a maioria dos quais nos anos 70, e houve eliminatórias que chegaram a realizar-se num clima de grande tensão. Como a de 1971, que levou a Rússia a Praga, três anos depois da invasão da Checoslováquia. Todos os intervenientes foram heróis por jogarem naquelas condições adversas: os checos, exageradamente pressionados pelos compatriotas para vencerem; os russos, pela animosidade com que foram recebidos - eram apupados cada vez que venciam um ponto e ridicularizados sempre que falhavam uma bola. Richard Evans recorda no seu livro que até nos comboios que passavam à beira dos courts, o maquinista apitava e abrandava para que os passageiros também viessem à janela vaiar os russos.
Ou no jogo Roménia-EUA, poucas semanas depois do massacre nos Jogos Olímpicos de Munique: a selecção norte-americana contava com dois jogadores judeus e foi forçada a viajar com um corpo de 20 agentes dos serviços secretos que os guardaram noite e dia. Em 1973, a Austrália viajou até à Índia e foram recebidos por uma ameaça de um atentado bombista por um grupo paquistanês que reivindicava a libertação de 90 mil compatriotas presos.
Court neutro em Lisboa
A intolerância pelo apartheid justificou a maioria das faltas de comparência ou o recurso a um território neutro na história da Taça Davis. Como a eliminatória entre a Espanha e a Rodésia, em 1969, que trouxe a Lisboa os grandes campeões espanhóis Manuel Santana e Manuel Orantes. Entre 4 e 6 de Maio, dezenas de adeptos, muitos deles vindos de Espanha, presenciaram no Estádio Nacional a vitória fácil dos espanhóis, por 5-0, numa eliminatória que assinalou devidamente a centena de encontros disputados por Santana na selecção.
"Havia bastante público, até porque a entrada era gratuita, mas penso que devia haver mais agentes da PIDE à paisana do que adeptos. Apesar do pouco noticiário sobre ténis, foi uma eliminatória bastante falada, porque ninguém queria jogar com a Rodésia", referiu Appleton Figueira, juiz-árbitro e organizador da eliminatória, depois de ter sido contactado pelo capitão da selecção espanhola, Jaime Bartroli, que conhecera quando ambos trabalharam na Dunlop, em Inglaterra. "Antes tinham tentado o Mónaco, que aceitou, mas a França, através do seu ministério dos Negócios Estrangeiros, fê-los mudar de ideias. Depois tentaram a Itália, que recusou, e acabaram por vir para Portugal", lembra Appleton Figueira.
Armando Rocha, que chefiava ao Direcção-Geral dos Desportos, recorda a segurança discreta criada à volta do Estádio Nacional. "Fui eu que fiz as diligências, a pedido da federação espanhola. Tenho uma vaga ideia de ligar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros para facilitar a realização da eliminatória e a entrega dos vistos. Não houve qualquer problema, até porque, na altura, tínhamos relações com a Rodésia. A embaixada até era ao pé de minha casa e ainda me lembro de ver o Ian Smith a sair dela", conta Armando Rocha.
A presença em Portugal dos dois campeões espanhóis - os jogadores mais cotados de Espanha antes do aparecimento da "armada" espanhola nos anos 90 - criou enorme entusiasmo nos poucos praticantes portugueses, na altura estimados em poucas centenas. José Vilela, então uma esperança do ténis português com 17 anos, foi chamado para disputar um encontro de exibição com Antonio Muñoz, o número quatro da selecção espanhola, no sábado, dia em que se realiza apenas o encontro de pares. "Foi fantástico estar com o Santana e Orantes. Estava também muita gente, pois era uma rara oportunidade de ver grandes nomes do ténis mundial em Portugal", recorda Vilela, campeão nacional entre 1973 e 1977 e capitão da Taça Davis entre 1994 e 2004.
Também Raul Peralta, jogador argentino que se radicou em Portugal, teve a oportunidade de rever os amigos espanhóis com quem frequentava os torneios internacionais. "Estava muita gente, porque o Santana e o Orantes traziam muito público. Tinham uma equipa muito forte", recorda Peralta, que ainda guarda recortes e fotografias dessa eliminatória.