Torne-se perito

Quem mandou matar Anna Politkovskaia?

Ninguém oferece um milhão de dólares pela resposta a esta pergunta. Mesmo aqueles que acreditam que, um dia, os investigadores vão chegar ao nome do mandante do assassinato duvidam de que alguma vez sejam reunidas provas suficientes para julgar quem encomendou a morte da jornalista russa.O julgamento que ontem arrancou no Tribunal Militar de Moscovo tem três arguidos: um antigo polícia russo e dois tchetchenos com ligações à máfia daquela república do Cáucaso, todos acusados de cumplicidade. Mas o suspeito autor dos tiros está por capturar e, à falta de provas - até de pistas sólidas, numa investigação que muitos denunciam não ter feito esforços verdadeiros para encontrar o responsável -, os últimos dois anos foram pródigos em teorias sobre quem disse a terrível palavra: "Matem-na".
A tese oficial foi apresentada pela Procuradoria-Geral russa em Agosto de 2007, 10 meses e meio depois de a jornalista ter sido abatida, a 7 de Outubro de 2006, à porta de casa, no centro de Moscovo, com quatro tiros certeiros: três contra o peito e um na cabeça, à queima-roupa, o kontrolni vistrel, tiro de controlo que serve de assinatura habitual aos assassinos contratados.
A arma foi encontrada ao lado do corpo, largada junto aos sacos de mercearias que Anna, de 48 anos, deixara tombar quando caiu ao chão. De pista palpável ficou um vídeo a registar a entrada, no prédio, de um homem meio encapuzado.
Foi "morta a mando de forças que querem desestabilizar e desacreditar as lideranças políticas na Rússia", afirmou o procurador-geral, Iuri Tchaika, quando anunciou a formulação das primeiras acusações por "cumplicidade no crime de homicídio": recolha de informação sobre a jornalista e vigilância.
Mais: a execução do assassinato fora levada a cabo por um grupo de crime organizado liderado por um tchetcheno, mas a ordem - Tchaika repetiu-o três vezes, naquela mesma conferência de imprensa - veio "de fora da Rússia".
Em meias-palavras, aludiu ao oligarca Boris Berezovski, exilado no Reino Unido desde 2001, um ano após a chegada de Vladimir Putin à presidência da Federação Russa. "É uma táctica que faz lembrar a prática da União Soviética, em que sempre que havia um problema na Rússia era apontada a culpa a alguém do Ocidente", avaliou Roman Chleinov, editor da equipa de investigação do jornal Novaia Gazeta, para o qual Politkovskaia trabalhava.
Esta é a tese da "Operação Desestabilização", como titulava com ironia no dia seguinte o diário moscovita Vremia Novostei, esmiuçando o "motivo do crime" que as autoridades russas tentaram colar ao magnata - deixar Putin, então Presidente, em apuros para explicar o assassinato brutal de uma jornalista que denunciava as atrocidades cometidas pelo exército russo na segunda guerra da Tchetchénia, a prática sistemática de tortura pelo Governo pró-russo estabelecido naquela república do Cáucaso e a corrupção que singrava na Administração.
O antigo secretário do Conselho de Segurança da Rússia e homem muito próximo de Boris Ieltsin, caído em desgraça com a campanha de Putin contra os oligarcas "como classe", devolveu acidamente as acusações. "Estão todos loucos. Tchaika, o Kremlin, estão todos profundamente doentes", afirmou Berezovski numa entrevista à AFP. E sugeriu, em contra-ataque, que Anna Politkovskaia só podia ter sido morta com a assistência ou, pelo menos, com a ignorância conivente dos Serviços de Segurança Federais (FSB), a agência de espionagem interna sucessora do KGB que Putin chefiara antes de Ieltsin o chamar a suceder-lhe em 1999.
Pistas tchetchenas
A teoria de Berezovski como mandante esmoreceu ao longo do último ano, mas não se extinguiu. Em Abril passado, o então director da Comissão de Investigações da Procuradoria-Geral, Dmitri Dovgi - entretanto suspenso de funções, sob suspeita de aceitar subornos -, veio defender publicamente a tese de que Berezovski tinha encomendado a morte de Politkovskaia ao chefe mafioso e guerrilheiro separatista tchetcheno Khoj-Akhmed Nukhaiev.
Nukhaiev tinha seguramente um motivo ponderável para querer eliminar Politkovskaia, sem que ninguém lho pedisse: as investigações da jornalista tinham posto em risco os seus interesses e a organização mafiosa que comandava na Tchetchénia, a Obchina. Era um elo da tese, de resto, fácil de embrulhar, dados os seus antecedentes: Nukhaiev é suspeito de ter organizado o assassinato a tiro do jornalista norte-americano Paul Klebnikov, numa rua de Moscovo, em Junho de 2004, em retaliação ao retrato negativo que este último fez dele no livro Conversations with a Barbarian (de 2003).
Esta teoria esbarra na elevada probabilidade de Nukhaiev ter morrido no Inverno de 2004, num combate contra soldados russos nas montanhas do Daguestão. Mas essa é uma probabilidade, nunca tendo sido confirmada nem pelas autoridades russas nem pela rebelião. Alguns analistas admitem ser possível que o antigo guerrilheiro - que mantinha rivalidades com outros clãs tchetchenos - simplesmente tenha passado à clandestinidade com nova identidade.
Com isto não se extingue, de resto, a pista tchetchena - ainda hoje pródiga a enformar teses oficiais de ameaças, reais ou imaginárias, contra a Rússia. Uma outra pista com "impressão digital" da Tchetchénia aponta o dedo directamente ao Presidente daquela república da Federação Russa, Ramzan Kadirov, também em tempos guerrilheiro separatista mas que agora vê em Putin um exemplo a seguir, ao ponto de ter dado o seu nome à principal avenida de Grozni.
Também não é difícil construir uma tese responsabilizando Kadirov, o qual goza da reputação de torturador cruel e sobre quem impendem acusações documentadas de violação dos direitos humanos. Muitas feitas por Anna Politkovskaia nos seus artigos e nas entrevistas que dava aos media ocidentais, sobre os desaparecimentos, assassínios e corrupção que singravam na Tchetchénia.
Jovem (32 anos) e ambicioso, Kadirov, então a chefiar o Governo da Tchetchénia, tinha um interesse directo na morte da jornalista e - foi amiúde notado por analistas russos dissidentes do Kremlin - também indirecto. O assassinato de Politkosvkaia, no mesmo dia em que Putin fazia anos, a 7 de Outubro, seria uma forma "eloquente" de agradar ao recém-encontrado ídolo. Seguro é que nenhuma das acusações e suspeitas que manchavam a reputação de Kadirov impediram o Kremlin de escolhê-lo, em Fevereiro de 2007, para assumir a presidência da república.
Recolha de testemunhos
O jornalista Viacheslav Izmailov, correspondente do Novaia Gazeta que trabalhara com Politkovskaia nas investigações aos abusos de direitos humanos na Tchetchénia, recolheu testemunhos que apontam para o envolvimento directo de Kadirov. O mais importante foi o do antigo presidente da Câmara de Grozni, Beslan Gantamirov, o qual afirmou ter sido enviado - por Kadirov - a Moscovo um grupo de homens armados, com ordem para matar três pessoas: Anna Politkovskaia, ele próprio e o antigo agente dos FSB Movladi Baisarov. Este último foi mortalmente baleado com armas automáticas numa praça na capital russa a 18 de Novembro de 2006 quando, ainda segundo Gantamirov, ia dar provas à Novaia Gazeta sobre o assassinato da jornalista.
A pista tchetchena tão-pouco se esgota na Tchetchénia. As investigações de Politkovskaia às barbáries cometidas pelas forças de segurança russas durante a segunda guerra naquela região tinham conduzido a vários inquéritos judiciais contra militares e polícias russos. Todos teriam, no mínimo, sido "incomodados".
Entre eles, Serguei Lapin, ex-tenente da temida unidade especial da polícia russa OMON, que foi detido em Janeiro de 2001 - e condenado em 2005 a 11 anos de prisão -, por ter torturado o estudante tchetcheno Zelimkhan Murdalov. A história do desaparecimento inexplicado de Murdalov fora denunciada por Politkovskaia no artigo Pessoas em desaparecimento, publicado em finais de 2001 no Novaia Gazeta. Imediatamente após a publicação, a jornalista recebeu e-mails a ameaçá-la de morte, supostamente enviados por Lapin. A Procuradoria-Geral abriu uma investigação criminal que, desde então, foi encerrada e reaberta pelo menos nove vezes.
"Digam o nome"
A investigação feita pelo Novaia Gazeta menciona um possível envolvimento de Nukhaiev na morte de Politkovskaia, mas a maior parte das pistas parece conduzir ao "gang de Lubianka" - com referência a um grupo de agentes e antigos operacionais dos serviços secretos russos alegadamente envolvidos em actividades criminosas e terroristas na Rússia (Lubianka é o nome popular dado ao quartel-general do KGB, hoje dos FSB, na Praça Lubianka, em Moscovo).
Num muito aclamado e polémico livro - banido pelas autoridades russas -, o antigo espião russo Alexander Litvinenko, envenenado cerca de um mês após o assassinato de Politkovskaia, descreve que os FSB se tinham transformado numa organização criminosa. Lubyanka Criminal Group (edição norte-americana de 2002) apontava mesmo o dedo directamente a Vladimir Putin, que liderara a agência de espionagem entre Julho de 1998 e Agosto de 1999.
Para Litvinenko, aliás, o responsável pela morte de Politkovskaia não foi outro senão Putin: "Digam o nome do sacana. A Anna não o fez, por isso faço-o eu por nós dois. Pode até ser bem-sucedido em silenciar um homem, mas o grito de protesto do mundo irá reverberar nas suas orelhas, senhor Putin, e para o resto da sua vida", reiterou numa carta ditada a 21 de Novembro, dois dias antes de sucumbir aos efeitos da raríssima substância radioactiva polónio 21 com que fora envenenado em Londres.
O director do Novaia Gazeta, Dmitri Muratov, crê que o assassinato de Politkovskaia foi "organizado e coordenado" por agentes dos serviços de segurança russos e lamenta que os investigadores tenham abandonado as pistas políticas sugeridas pelas críticas da jornalista à Administração de Putin. Mas as acusações de envolvimento do Kremlin são "politicamente motivadas e não dispõem de provas credíveis", sublinha.
Esta convicção foi ontem mesmo ecoada pelo filho de Anna, Ilia Politkovski, numa entrevista ao canal de televisão anglófono pró-Kremlin Russia Today. "[Os jornalistas estrangeiros] perguntam-me sempre se eu acho que houve envolvimento dos FSB. Já nem me espanta que façam estas perguntas. Já me rio delas. Às vezes, peço que não me perguntem essas coisas. Noutras ocasiões, digo-lhes que nunca pensei no homicídio da minha mãe dessa forma. E acredito que não houve nenhuma ordem de assassinato vinda do Governo. Mas é claro que não é isto que querem ouvir."

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