A PIDE era mais um ordenado que as empresas portuguesas tinham de pagar
Dois jornalistas analisam pela primeira vez em detalhe a relação entre a polícia política
e os empresários. O livro chega às livrarias esta semana
a O telefone toca no nono andar da sede da Fima-Lever, ecoando na sala onde se sentavam os dois principais gestores da empresa, localizada no Largo Monterroio Mascarenhas, Lisboa.Alexandre Soares dos Santos, que partilha o espaço, em nome da Jerónimo Martins, com o responsável da Unilever, Fritz Staab, está sentado à secretária quando atende a chamada. Do outro lado da linha uma voz solicita a sua comparência na sede da PIDE/DGS, junto ao Chiado.
O empresário desloca-se sozinho à Rua António Maria Cardoso, onde entra para uma sala pesada, "com uns cortinados horríveis". No interior é recebido por um alto funcionário, do qual não lembra o nome, que convida, sem subterfúgios, o responsável de uma das maiores empresas industriais de produtos alimentares e de higiene da época a fornecer dinheiro em troca de informações sobre o pessoal da companhia. "A recusa foi imediata", recorda Soares dos Santos, sentado no seu escritório das Amoreiras, perto do local onde recebeu a chamada telefónica.
Alexandre Soares dos Santos situa este episódio em 1969, um ano depois de ter regressado a Portugal vindo do Brasil, onde foi responsável pelo marketing da Unilever.
Para o actual presidente não executivo da Jerónimo Martins, com setenta e três anos de idade, o convite da PIDE não poderia ter sido efectuado de outra forma porque o pagamento tinha como destino um fundo do tipo de "saco azul". "Eles explicaram que tinham de fazer pagamentos aos inspectores, como as horas extraordinárias" para os quais precisavam de dinheiro, afirma o empresário.
O facto de não ter aceite entrar no esquema de pagamentos à polícia política do regime resultou, segundo o próprio, num curto período de dificuldades da empresa em obter licenças de trabalho para funcionários da Fima-Lever.
(...) Em Março de 1975, Miguel Sttau Monteiro, administrador da Sociedade Central de Cervejas, afirma numa entrevista que "a PIDE não pedia, exigia (...) toda a gente tinha de pagar qualquer coisa." O grupo de bebidas pagava uma quantia de 3.000$00 escudos todos os meses. "Essa foi a quantia que se nos exigiu, em troca da "protecção" que nos dava (...), considero um milagre terem-nos pedido três contos e não cinquenta... vivíamos ou não sobre uma coacção? Ou se acredita nisto ou não. E a verdade é que as empresas industriais não fugiam à coacção geral", explicava então Miguel Sttau Monteiro. (...) Este tipo de relacionamento da PIDE/DGS com as empresas permaneceu sigiloso, e apenas foi tornado público na sequência do 25 de Abril de 1974, por via do acesso aos arquivos da polícia do regime e dos interrogatórios aos seus responsáveis e funcionários.
A primeira referência conhecida surge na manhã de 10 de Setembro de 1974, quando o responsável da comissão de extinção deste organismo, o Comandante Conceição e Silva, convoca uma conferência de imprensa na qual, vestido à civil mas rodeado de oficias fardados, refere, entre outros aspectos, a existência de contratos não escritos entre a PIDE e as empresas.
"Era praticamente desconhecida a relação entre a PIDE/DGS e as empresas, principalmente de forma institucionalizada e sistemática", sublinha Alfredo Caldeira, antigo membro do Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa, e que hoje trabalha na Fundação Mário Soares como jurista.
Os contactos entre a polícia política e as empresas ocorreram episodicamente durante todo o Estado Novo, sempre que se registavam distúrbios que implicassem a possibilidade de afectar a capacidade produtiva ou tivessem bases políticas. Se os empresários e gestores receavam os impactos económicos, a polícia preocupava-se com as questões ligadas à perturbação da normalização da sociedade.
(...) A partir da década de 1960 a relação entre a PIDE e as empresas começa a estreitar-se. A investigadora Irene Pimentel refere que é nessa época que a própria polícia começa um plano de modernização. Intensifica o controlo postal, através dos CTT, e desenvolve as escutas telefónicas, com novos equipamentos.
O mentor desta transformação é Álvaro Pereira de Carvalho, que chegou a director de serviços, já na Direcção-Geral de Segurança (DGS) (...). No âmbito desta reorganização a PIDE começou a prestar mais atenção às empresas, que servem como forma de financiamento.
Segundo relatou o comandante Conceição e Silva "a PIDE tinha elevados lucros daquilo que as administrações das empresas lhe pagavam para a manutenção de um sistema de vigilância, filtragem de trabalhadores, controlo dos seus movimentos e, finalmente, repressão a todo e qualquer movimento grevista." Álvaro Pereira de Carvalho, no relatório que redigiu como prisioneiro em Caxias a 14 de Junho de 1974, explica que a relação das empresas com a PIDE se dividia em duas áreas: a "verificação do pessoal a admitir pelas empresas como empregados, através da consulta aos arquivos da DGS ou verificação pelo mesmo processo dos seus quadros já existentes", e o "recrutamento entre o pessoal da empresa de fontes de informações capazes de detectar sintomas de greves, paralisações de trabalho, descontentamentos, etc., ou admissão de empregados com esse fim, indicados e instruídos nesse sentido pela DGS". Refira-se, no entanto que era o agente da PIDE que, mediante estas informações e a sua própria investigação, fazia um relatório para os Serviços de Informação, dirigidos por Álvaro Pereira de Carvalho, que depois faziam a triagem da informação que seguia para os administradores de empresas.
Em termos de funcionamento do sistema, Álvaro Pereira de Carvalho esclarece que o pedido de informação podia ter origem nas próprias empresas, ou ser proposto pela polícia, como sucedeu no caso da Jerónimo Martins. "Eram relativamente frequentes os contactos da DGS com pessoal superior das grandes empresas, pelas mais variadas razões, e sobretudo pelas perturbações no trabalho. Aproveitavam-se estes contactos e oferecia-se o serviço de informação a montar na empresa", diz.
(...) As verbas pagas pelas empresas eram providenciais, pois a polícia política precisava cada vez mais de dinheiro, para fazer face às novas despesas provocadas pelo seu envolvimento na guerra colonial e pelo surgimento de novas formas de oposição.
Por sua vez, o tecido empresarial também se transformara, especialmente depois da adesão de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) em 1960/1961. As empresas tornaram-se organismos sociais mais complexos, e a polícia não podia depender apenas dos informadores ou estar sempre presente nas instalações das companhias em busca de contestatários.
Assim, esta abordagem da PIDE às empresas parecia uma parceria de vantagens mútuas. A polícia política alimentava o seu saco azul e as empresas garantiam que entre os seus trabalhadores não havia agitadores, ao verificarem se algum dos nomes dos funcionários constava dos arquivos da PIDE, como medida preventiva, e asseguravam a participação de agentes em caso de distúrbios, garantindo boas relações com o regime e paz social, de modo a prosseguir com os negócios.
(...) Dentro da PIDE, a responsabilidade pela ligação era apenas do conhecimento de um núcleo reduzido entre funcionários superiores (os inspectores Américo Coelho, Basílio Garcia e Pereira de Carvalho) e administrativos (o responsável pelos ficheiros das mesmas era o chefe de secção Joaquim do Rosário Silva), em que pontificava o tesoureiro Picaró.
Na empresa existia um elo de ligação, que deveria ser o mais discreto e eficiente possível, e que era um administrador, um director, ou, então, e era assim na maior parte dos casos, os responsáveis pela área de pessoal ou recursos humanos. Estas ligações tornavam-se frequentemente fontes de informação de Pereira de Carvalho sem se tornarem delatores.
(...) Em 1963, por exemplo, os responsáveis da Secil, empresa de cal e cimento onde a polícia tinha pelo menos um informador, o "França", solicitam à PIDE que verifique a lista de pessoas a incluir na tripulação do navio da Secil Marítima que iria fazer o serviço de cabotagem entre Luanda, o Norte de Angola, República do Congo e Congo. Havendo vários candidatos, a empresa cimenteira constituída em 1930 pretendia "confiar esses lugares a pessoas que, além de idoneidade técnica, sejam de absoluta confiança sob o aspecto político e patriótico." Tal como a Secil, diversas outras utilizavam os dados disponibilizados pela PIDE.