José Cardoso Pires
Quando um amigo morre, tanto faz que tenha sido há dez, vinte ou trinta anos. Mas Cardoso Pires morreu há dez; e não há nenhum mal em aproveitar a convenção para falar dele. Até porque no fim da vida o esquecerem mais do que ele merecia. A primeira vez que o vi foi em 1960, no Portugal de Salazar e numa Lisboa diferente. O mundo, por assim dizer, "intelectual" era um mundo de homens que se encontrava nos cafés do Chiado, em algumas livrarias, num bar ou noutro e mesmo no ocasional prostíbulo. Conheci Cardoso Pires na revista Almanaque, que ele, de facto, dirigia e em que trabalhavam Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira e José Cutileiro; e também, na parte gráfica, João Abel Manta e Sebastião Rodrigues. Já conhecia José Cutileiro e, depois da inevitável extinção do Almanaque, só continuei a encontrar Cardoso Pires.Ao princípio remoto (eu andava pelos 18 anos), foi sempre de uma extraordinária generosidade comigo. Aguentou impassível uma absurda crítico a O Anjo Ancorado, que publiquei num jornal universitário. Perdeu um tempo infinito a discutir comigo, pelas tascas do Bairro Alto, como se devia, ou não devia escrever. E, num aperto, até me arranjou um emprego na revista Eva da Dona Carolina Homem Christo. Cardoso Pires resistia com grande orgulho e grande coragem à miséria a que o regime o condenava. "Eles querem dar cabo de mim, mas não dão", costumava avisar o universo nos dias de fúria. E não deram. Pouco a pouco, sem se perder no jornalismo ou na publicidade, chegou à única obra que reflecte com precisão o Portugal urbano da ditadura e do Estado Novo.
A guerra e o pós-guerra "são" o Ritual dos Pequenos Vampiros e A Rapariga dos Fósforos; os anos 50, com a sua hipocrisia e "prosperidade", "são" O Anjo Ancorado (um prodígio de inteligência e subtileza); e O Delfim e parte de Alexandra Alfa a decadência do regime e o anúncio profético da sua queda. Pelo meio, claro, vieram livros de "ofício" e alguns fracassos, que naturalmente não o aumentam. O que não importaria se a desilusão do PREC e uma catastrófica passagem pelo Diário de Lisboa do PC, em 1975, não o houvessem paralisado como escritor. Antes de ele morrer, jantámos meia dúzia de vezes, com uma certa melancolia. Estava amargurado e, pior do que isso, como ele próprio insistia, estava "sozinho". O "Prémio Pessoa" ainda o consolou. Muito tarde. Ninguém como ele contribuíra para transformar o português literário, arcaico, rural e afectado, ou populista, académico e pseudo-lírico, numa língua moderna.