O nome desta cidade é Urbano Tavares Rodrigues

Nas cabines telefónicas, nos sinais de trânsito, na carrinha do peixe e na banca dos legumes: até domingo, Penafiel é a cidade de Urbano. Ele já faz parte da mobília. Os livros nem tanto

a A alfaiataria de Carlos Silva é uma cápsula do tempo parada no meio da rua principal de Penafiel - uma montra que parece não sair do sítio há décadas (o tipo de montra que podia estar num museu: velhas caixas de "camisas de luxo" e cartelas de botões vermelhos, verdes e madrepérola, coisas que julgávamos desaparecidas em combate), e um senhor ao fundo, com uma fita métrica à volta do pescoço. Há uma semana, esta montra saiu do sítio: há um escritor vivo por trás do vidro, e não é só na Carlos Silva Alfaiates. Urbano Tavares Rodrigues também está vivo nas montras da Papelaria Globo (à frente das novidades), da Casa Ramalho (à frente da colecção de Inverno), da Migalle - Pronto-a-Vestir (à frente dos soutiens Regicor) e dos Bazar-Mor Armazéns (à frente da "roupa para pessoas muito fortes"). Vai continuar a ser o nome do meio de Penafiel até domingo, dia em que termina este primeiro Escritaria, festival multidisciplinar de estudo, partilha e fruição da obra de um escritor vivo e em plena actividade. Está ali "uma coisa bem feita", dizem os da terra - mesmo os que já não se aproximam para ler os post-it gigantes que diariamente são colados nos semáforos, nos marcos do correio, nas cabinas telefónicas, nos sinais de trânsito, nos postes de iluminação, nas caleiras e nas portas do centro histórico. Aproximaram-se nos primeiros dias, até levaram os post-it para casa (é suposto coleccioná-los: dizem, em letras vermelhas, "este pedaço da literatura de Urbano Tavares Rodrigues é para si, leve-o e procure os restantes fragmentos deste conto"), pararam para ver "os caixotes" (as Caixas de Leitura com textos impressos em todas as faces) e é provável que até tenham alguns na garagem, porque "são bons para arrumar as tralhas".
Agora que esses objectos passaram a fazer parte da mobília - e, nalguns casos, a ser a mobília - deixaram de ser tema de conversa, a não ser na banca de legumes da Tia Maria: "As velhas também sabem fazer as coisas bem feitas: isto está que é uma categoria", diz ao P2, com o dedo a apontar para as Caixas de Leitura empilhadas no chão do Largo Padre Américo. Colecciona-as mas não é para ler: são "muito jeitosas" para expor os molhos de grelos, as pencas, os figos e os sacos de feijão e de couve galega que tem para vender.
Uma obra difícil
É um bocado esse o espírito em Penafiel: toda a gente sabe quem é Urbano Tavares Rodrigues ("É um grande escritor - ele e a família porque isto já é hereditário -, uma pessoa importante e lutadora. Parece que passou muito", diz o taxista Rui Ribeiro, que já teve tempo de ler todos os placards do Labirinto instalado mesmo em frente à Câmara Municipal porque está de serviço na praça de táxis das 7h às 21h) mas poucas pessoas sabem como são os livros dele. A Papelaria Globo não os vende (está na montra mas não está nas prateleiras), nem tem havido clientes a perguntar por eles.
"É uma obra muito difícil para quem tem a quarta classe", explica Agostinho de Jesus Leite. Ele tem a quarta classe: "Há muitos anos, se calhar uns 30, comecei a ler um livro dele, mas tinha que ter o dicionário na quina da banheira porque havia ali muitas palavras que não eram para mim. Tinha ali passagens que deus me livre, eram terríveis. Desisti. Para quem tem a quarta classe tem de ser mais Júlio Dinis, Camilo, esses mais provincianos". Não teve sorte com Urbano Tavares Rodrigues mas também não teve sorte com Os Maias: "Andei com o livro para aí meio ano e não assimilei nada, a não ser aquelas entradas muito frondosas", admite ao P2.
Dali do banco onde costuma passar as tardes debaixo de umas árvores que também são muito frondosas tem visto muita gente a ler a biografia do escritor e já percebeu que uns gostam mas "outros criticam porque é comuna". Também já se sentou no Banco de Leitura - um banco corrido ao longo do qual os leitores se vão deslocando, como se mudassem de página - para ler A Samarra: "O conto tem uma frase que termina em 'merda' e as pessoas comentam, sabe como é. Eu contra mim falo: Penafiel é terra de vinho verde, e as pessoas dissipam-se por outras coisas. Ler não é muito com elas".
No que depender do Escritaria - uma organização conjunta das Edições Cão Menor e da Câmara Municipal de Penafiel - pode começar a ser. A Biblioteca Municipal oferece um chá ou um café a quem quiser sentar-se na esplanada a ler os livros de Urbano Tavares Rodrigues (As Aves da Madrugada, Deserto com Vozes, Filipa nesse Dia e Imitação da Felicidade estão em cima da mesa) e à segunda, à quinta ou à décima vez que toda a cidade for mobilizada para se transformar num escritor, passará a ser possível olhar para trás e deparar-se com uma obra em que talvez queira rever-se.
A palavra ao poder
Inês Tavares Rodrigues, a neta do escritor, já se revê no Escritaria agora. Esteve em Penafiel no fim-de-semana, a representar o avô e a acompanhar o colóquio em que participaram os escritores Nuno Júdice e Mário de Carvalho, entre dezenas de outros convidados pessoais de Urbano Tavares Rodrigues (também deixaram marcas: uma série de frases que foram impressas em faixas e podem ser lidas na subida para o Sameiro), e voltou anteontem para fazer um ponto da situação. Pára para falar com o P2 numa pastelaria que fica mais ou menos em frente à frase que o avô escolheu para ficar gravada, em letras metálicas, na cidade ("Não andei pela vida sozinho. Gostei das pessoas, detestei algumas, ainda hoje detesto as que se nutrem do suor e da morte de criaturas que para elas são apenas números"), e confessa que ficou "genuinamente comovida porque não esperava um impacto visual tão forte", nem "uma presença tão física".
"Senti-me um bocado estarrecida quando cheguei e vi uma fotografia dele com os seus 30 e poucos anos, e depois aqueles painéis com episódios da vida dele de que eu tanto ouvi falar. De repente pareceu-me que se cumpria efectivamente uma ideia que percorre os livros do meu avô: a palavra ao poder. Aqui a palavra sai mesmo do papel e intromete-se na vida quotidiana das pessoas. Não estava à espera de uma coisa com esta dimensão - não neste país", continua. Gostou especialmente dos Bancos que narram (quatro bancos de jardim com uma instalação sonora que "lê" em voz alta contos de Urbano Tavares Rodrigues) e dos post-it que se arrancam e levam para casa porque há ali "uma ideia de partilha, uma ideia de 'isto é nosso'".
Também é dele, apesar de Urbano Tavares Rodrigues não ter ido a Penafiel, por motivos de saúde. "Pedimos ao realizador - António Castanheira, que fez um documentário encomendado pela organização - que filmasse a cidade do Escritaria expressamente para ser vista pelo meu avô, exactamente como se ele estivesse aqui e fizesse todo o percurso presencialmente", diz Inês. O imperfeito do conjuntivo não é exactamente o tempo verbal que se aplica: ele, Urbano Tavares Rodrigues, está de facto ali, pelo menos por mais dois dias.

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