Espanha: Garzón ordena investigação aos desaparecidos do franquismo
Num auto de 68 páginas, hoje conhecido, o magistrado considera que o caso se inscreve na esfera da competência da mais alta instância judicial do país, porque na origem do conflito, em Julho de 1936, esteve um levantamento militar “ilegal” que teve por objectivo derrubar “o Governo legítimo de Espanha”, “mediante um plano pré-concebido que incluía o uso de violência”, o que configura delito contra as instituições do Estado. Num dos documentos citado no auto, um grupo de generais golpistas insta os seus seguidores a “passar pelas armas todos os que se oponham ao triunfo do dito Movimento Salvador de Espanha”, revela a edição online do diário "El País".
Por outro lado, sublinha, os militares golpistas assumiram mais tarde funções governamentais, no âmbito das quais terão ordenado ou tomado parte na perseguição aos vencidos, num contexto de crimes contra a humanidade – uma esfera que o magistrado sustenta estar no raio de acção da Audiência Nacional.
No processo são citados 35 responsáveis da ditadura, incluindo Francisco Franco, pelo que Garzón pede as certidões de óbito dos visados para dar por extinta a parte penal do processo que poderá, contudo, prosseguir nas comarcas onde estão localizadas as valas comuns, com vista à identificação das vítimas e investigação das respectivas mortes, acrescenta a AFP.
Para tal, o magistrado ordena a criação de um grupo de sete peritos a quem caberá conduzir os trabalhos nas 19 valas conhecidas e “em todas aquelas que possam vir a ser encontradas”, para posterior identificação e contabilização dos corpos. No final deverão apresentar um relatório definitivo sobre o número total de vítimas.
Entre as valas identificadas está aquela em que se acredita estar sepultado o escritor e poeta Garcia Lorca, fuzilado pelas forças franquistas em Agosto de 1936 nos arredores de Granada (sul), juntamente com outros dois homens. A sua família sempre recusou a abertura da sepultura, mas no mês passado anunciou que aceitava a exumação do corpo do poeta, em respeito pela vontade dos familiares de Dioscoro Galindo, o professor primário executado pelo mesmo pelotão.
Ministério Público vai recorrerPor seu lado, o Ministério Público anunciou que vai recorrer da abertura desta investigação, por considerar que os crimes em causa prescreveram ao abrigo da lei de amnistia, aprovada em 1977, após o fim da ditadura, acrescentando que, na altura em que foram cometidos, eram considerados delitos comuns e não violações do direito humanitário. No entanto, Garzón alega que estão em causa actos proibidos pelas leis e costumes de guerra e crimes contra a humanidade, não abrangidos pela lei de amnistia nem passíveis de prescrição.
O "El Mundo" recorda que o processo agora desencadeado pelo magistrado surge em resposta às denúncias apresentadas em Julho do ano passado por 22 associações que lutam pela recuperação da memória histórica e dez particulares, solicitando uma investigação aos desaparecimentos, sequestros, assassinatos, torturas e exílios forçados cometidos após 1936, a fim de que o Estado espanhol "cumpra as suas obrigações de reparação" das vítimas pelas violações dos direitos humanos de que foram alvo.
Numa declaração polémica a este propósito, citada pelo “El País”, o magistrado sustenta que “os vencedores da Guerra Civil aplicaram o seu direito aos vencidos e usaram toda a acção do Estado para a localização, identificação e reparação das vítimas parte vencedora que tombaram, mas os vencidos não tiveram o mesmo respeito e, além disso, foram perseguidos, presos, desapareceram, foram torturados por aqueles que quebraram a legalidade vigente e usaram armas contra o Estado”.
O magistrado tinha já surpreendido quando em Setembro, no âmbito deste caso, pediu informações a várias instituições – ministérios, autarquias, Conferência Episcopal, ou ainda à entidade responsável pela gestão do “Vale dos Caídos”, onde está o mausoléu de Franco e milhares dos seus apoiantes mortos na Guerra Civil – para tentar apurar o número total de vítimas de ambos os lados do conflito, bem como dos que sucumbiram durante a repressão que se arrastou até 1951. O auto hoje conhecido, depois de reunidos todos os dados e retiradas as duplicações de nomes, aponta para um total de 114.266 vítimas.
A iniciativa do magistrado promete reacender a polémica no país, onde a lei da amnistia levou a que os crimes e abusos cometidos pelas duas partes durante a guerra e mais tarde pela ditadura nunca tenham sido apurados.