Christian Louboutin Estes sapatos foram feitos para amar
Luxo, luxo: os sapatos dele vão desfilar para nós, na ModaLisboa, que começa na quinta-feira. Regressa no próximo ano para mostrar em que fetichismos se meteu com David Lynch. É o criador de sapatos mais desejado do mundo. Fomos encontrá-lo em casa, às portas de Lisboa.
Quando Christian Louboutin inaugurou a sua segunda loja em Londres este ano, a imprensa britânica registou, um pouco escandalizada, que o homem que calça os pés mais ricos do mundo usava uns ténis Converse verde florescente. A moda e as suas veleidades são uma ciência inexacta. Não há maneira de saber se o que decepcionou os jornalistas foi a aparência descontraída do designer de sapatos do momento (logo agora, quando até os homens tinham aprendido a pronunciar Manolo Blahnik), ou o facto de terem esmerado no calçado para a ocasião. "A minha ideia é que se temos um encontro com o criador de sapatos mais desejado do mundo, não vamos aparecer de ténis", escreveu o jornalista do Daily Mail, antes de notar que, para cúmulo, os Converse verde florescente estavam "um nadinha gastos".
É o último dia de Verão e Christian Louboutin, 45 anos, aparece de havaianas, passada langorosa, capacete pelo braço, calções e uma despreocupação de praia, que é onde estamos: o francês tem uma casa na Comporta, a 90 quilómetros de Lisboa. Dez minutos depois, está empoleirado numa moto 4, guiando-nos velozmente até sua casa.
Aqui, Louboutin andará sempre descalço. A casa é térrea e está suficientemente resguardada pelas árvores e folhagem para que não se dê por ela da estrada. Em tudo o resto, é uma casa aberta ao exterior, com um alpendre cheio de recantos, como se os aposentos se prolongassem para fora. Um recosto de almofadas bordadas na Síria aqui, um colchão sobre estacas ali, debaixo de uma oliveira, como uma cama a céu aberto.
Louboutin reclina-se nele como um sultão deleitoso.
A sua mesa de trabalho também está cá fora, alta como um estirador, coberta de esboços de sapatos, revistas de moda, uma garrafa de Luso 1,5L, dois cálices de vidro com bicos que não estão lá para a água mas para inspiração. "Estou a fazer um modelo baseado nesse copo, que encontrei em Portugal, e que tem essa espécie de pontas de diamante. Pensei em pôr esse relevo num sapato, como se fosse uma jóia, e depois cobri-lo de pele, como uma carapaça."
O designer tem um lugar específico para desenhar a cada estação: a colecção de Verão é sempre concebida em Luxor, no Egipto, onde tem uma casa, a de Inverno é na província francesa, a meia estação é na Comporta. "Uma vez tentei conceber a colecção de Inverno no Egipto e serviu-me de lição: não se consegue desenhar botas quando estão 40 graus!"
Prefere desenhar em sítios onde se sente em casa. "Sou curioso por natureza e se estiver num lugar que não conheço vou querer saber o que há para ver. Isso vai distrair-me. Aqui há a praia, mas se não for hoje porque não tenho tempo, posso ir amanhã ou noutra altura. No Egipto, se não visitar o túmulo de Nefertari, daí a dois meses estou de regresso. Sei sempre que vou voltar a esses lugares, onde me sinto em casa. Assim sendo, não tenho a impressão de estar a perder coisas, a minha curiosidade acalma-se e foco-me no meu trabalho."
Se estamos com ele aqui, na Comporta, é porque Christian Louboutin vai ceder modelos para o desfile de encerramento da próxima edição da ModaLisboa, que decorre na Cidadela de Cascais, entre quinta-feira e domingo. Os seus sapatos vão acompanhar a colecção de Filipe Faísca, assumidamente inspirada nos impressionistas e na sua "trepidação da realidade", segundo o próprio. Os padrões e motivos vão aparecer, mas como se estivessem desfocados, "parece que o vento os empurrou ou a água os humedeceu". Faísca não teme que a marca Louboutin desvie as atenções do seu desfile. "Está tudo no seu lugar, uns nos pés, outros no corpo. As misturas só vêm por bem. O que mais me agradou nesta parceria foi o facto de ser uma marca com um alfabeto clássico e intemporal. Estando dentro das tendências, não é completamente avant-garde."
Além dessa contribuição, Lisboa vai também poder ver, em Março do próximo ano, a exposição que Christian Louboutin fez a meias com David Lynch. Chama-se Fetish e alguém notou que eles estavam a pedi-las: o realizador mais fetichista do mundo juntou-se ao criador de sapatos mais fetichistas do mundo. Louboutin concebeu sapatos impróprios para andar - saltos de 26 centímetros, um par unido nos calcanhares, como siameses - e Lynch fotografou-os nos pés de duas mulheres nuas. As imagens podiam ter saído de um filme do realizador: são carnais, inquietantes, sombrias. Fetish foi mostrado há um ano na Galerie du Passage, em Paris. Sofia Coppola e a stripper para gente esclarecida Dita Von Teese estiveram na inauguração. Charlotte, filha de Carolina do Mónaco, escreveu um longo artigo sobre o acontecimento para a revista de domingo do jornal britânico The Independent.
Não foi por aí que começámos, mas é por aí que podemos voltar à conversa com Louboutin. A propósito da sua colaboração com Lynch, o francês veio lembrar que há sapatos que foram feitos para andar, mas também "sapatos destinados ao sexo". Os de Louboutin são, por vezes, sensualmente explícitos: generosamente decotados, realçando a curva do pé, mostrando aqui e escondendo acolá, investindo no fetichismo - saltos agulha XXL, couro preto, aplicações e detalhes associados ao sado-masoquismo.
O francês tem dito que desenha sempre pensando numa mulher nua. "É verdade, nunca penso em roupas. A menos que tenha de fazer um desfile para um estilista e ele me diga que tipo de mulher idealiza", diz o sultão reclinado (não é pose, é a naturalidade de um duque no seu território).
Para ele, "mais do que um acessório", um sapato "faz corpo com a mulher": muda o centro de gravidade, altera a forma de andar, interfere na linguagem corporal. A título de exemplo, Louboutin recorre às amazonas nuas em saltos altos que Helmut Newton fotografou a preto e branco na década de 1980. "Um sapato não veste, necessariamente. Quando entramos no museu de Newton em Berlim, há seis retratos à entrada de mulheres nuas com saltos altos. Essas fotografias chamam-se Nudes, não se chamam Nudes with shoes. Se fotografar uma mulher nua com um chapéu, ela será sempre uma mulher nua com um chapéu. Um chapéu veste, faz sombra, é um elemento de distracção. Ao passo que um sapato bem feito deixa a mulher completamente nua. É por isso que penso que as mulheres têm uma relação muito carnal com os seus sapatos. Uma mulher nua que continua com os seus sapatos é uma coisa normal. Uma mulher nua com um chapéu não é uma coisa normal."
Louboutin tem a escola toda: cresceu rodeado de mulheres, num ambiente familiar com um pai quase sempre ausente e três irmãs mais velhas - ele tem menos 12 anos do que a mais nova. "Cresci completamente banhado num universo de mulheres, portanto elas não têm grandes segredos para mim. Não sou um homem que diga: 'É o mistério feminino, não percebo nada.' Quando somos pequenos e temos irmãs mais velhas, não passamos de crianças para elas. Eu não representava um elemento masculino, por isso elas deixavam-me estar e falavam à vontade. Os meus amigos homens às vezes não querem acreditar quando lhes contam as conversas que as mulheres têm quando estão juntas. São conversas cruas, como saberá, sendo mulher. Os homens ficam horrivelmente chocados quando descobrem a forma como as mulheres os descrevem. Mas a mim não me surpreende, porque observo isso desde pequeno." As irmãs e a mãe serão figuras fundadoras, mas não têm nada a ver com a sua escolha profissional. "As minhas irmãs tinham sapatos que eu achava horríveis e a minha mãe não se interessava por sapatos, nem pela moda em geral."
Nos anos 80, Louboutin trabalhou nas melhores casas - dois dos homens que criaram sapatos para a Dior, Charles Jourdan e Roger Vivier ("Eu desempenhava todo o tipo de tarefas, catalogava-lhe os sapatos, era o seu intérprete porque ele falava mal inglês, era o seu secretário, etc. Mas nunca desenhei para o Roger. Não tinha especial vontade. Admirava-o tanto que me era suficiente vê-lo trabalhar.") - mas diz sempre que onde aprendeu mais sobre sapatos foi nos cabarés parisienses e nos palcos de variedades, com as dançarinas. Ainda adolescente, estagiou no Folies Bergères, reparando adereços, repondo plumas danificadas e outros expedientes.
Em 1992 abriu a sua primeira loja em Paris. Um sapato Louboutin é imediatamente reconhecível por causa da sua sola vermelho-sangue. Um acaso feliz tornou-se numa imagem de marca: quando chegaram os primeiros protótipos, sentiu que faltava qualquer coisa. Pediu o verniz emprestado a uma assistente que passava o tempo a pintar as unhas de vermelho e cobriu a sola preta com ele. Revelou-se uma jogada de marketing imbatível: sempre que uma mulher sobe as escadas, cruza as pernas ou anda pela rua, a sola vermelha é tão visível que toda a gente saberá que ela usa Louboutins. E é esse o efeito desejado: uma mulher que usa Louboutins quer que se saiba.
Além do mais, já houve casamentos que se fizeram por causa das solas vermelhas.
"Se nos cruzamos com uma mulher na rua e ela passa, temos tendência a olhar para trás. Uma sola vermelha é uma coisa que salta à vista, portanto é algo de que nos vamos lembrar. Frequentemente, a última imagem que guardamos das pessoas é de costas. Dou-lhe o exemplo do cinema: Quanto Mais Quente, Melhor, viu? Primeira imagem de Marilyn: ela está a caminhar na estação de comboios, e Jack Lemmon e Tony Curtis viram a cabeça; eles vêem-na de costas. Em The girl can't help it [Uma Rapariga de Sorte, Frank Tashlin, 1956], vemos Jayne Mansfield a andar, e o efeito que isso provoca à volta dela: há um camião de leite e o leite explode, há um tipo de óculos e as lentes partem-se, etc. É a mesma coisa: vemo-la de costas. A postura, o andar, é qualquer coisa que imaginamos sempre de costas."
Dito isto, perguntamos-lhe se um sapato não deve nunca ser discreto. Pelo contrário, defende, o sapato perfeito não é aquele que reclama o primeiro olhar para si próprio, mas o que deixa ver "um estilo, um porte, a mulher que o usa". "O senhor Christian Dior dizia sempre: um sapato deve aparecer e poder desaparecer. Ele deve estar ao serviço da mulher, não é a mulher que está ao serviço dos sapatos. Agora, de vez em quando podemos fazer um statement através do sapato. A verdade é que isso é mais fácil do que um sapato que serve a mulher."
Actualmente tem pelo menos 15 lojas no mundo inteiro, e a contagem continua. Em Portugal, os seus sapatos não podem ser comprados porque não existe um ponto de vendas. Segundo a imprensa da especialidade, a marca Louboutin atingiu o topo das preferências do mercado de luxo. Um par de sapatos custa uma fortuna, o valor de uma renda em Lisboa ou mais. "No mínimo, 300 euros. O que é caro não é o desenho, são os impostos, mas também as fábricas. Itália é cara. E eu não quero prescindir da qualidade. Nunca me ponho a questão, se vai custar caro. Em primeiro lugar, é a minha liberdade, faço o que quero. Se a fábrica me diz, de quando em quando, que é escandalosamente caro, faço dez e é tudo. Prefiro fazer pouco de uma coisa que adoro do que não o fazer pensando 'não é possível'."
São os sapatos que qualquer actriz quer usar na noite dos Óscares e que meia Hollywood, mesmo aquela que é mais insignificante (starlettes aspirantes, pobres meninas ricas, desastres existenciais), exibe na imprensa que se alimenta do culto das celebridades. Sobre isso e sobre o facto de ser "big in America", Louboutin ri-se saudavelmente. Não há muito tempo, autografou sapatos em dois armazéns nova-iorquinos como um escritor que assina exemplares dos seus livros. "O que se passa hoje em dia é que as marcas já não correspondem a uma pessoa física. Pensamos em Dior e já não há [Christian] Dior, em Chanel e já não existe [Coco] Chanel. Por isso, quando finalmente há alguém por trás de um nome, as pessoas ficam surpreendidas e encantadas. De vez em quando dizem-me, sobretudo na América: 'Já uso os seus sapatos há 25 anos.' Ao que eu respondo: 'Duvido, porque comecei a minha empresa há 16 anos.' Elas insistem: 'Se calhar era o seu pai...' E eu digo: 'Não, o meu pai não fazia sapatos, nem partilhamos o mesmo nome ou apelido.' [risos] Quer dizer, as pessoas têm a impressão de que o nome existe na memória colectiva há muito, muito tempo. Ao princípio é estranho quando ouvimos dizer: 'Garanto-lhe, conheço a sua marca há mais de 20 anos.' Dá vontade de responder: 'Chèrie, se me permite: sou capaz de saber melhor do que você.' [risos] Mas, ao fim e ao cabo, não tem qualquer importância."
Louboutin e o fotógrafo da Pública trocam impressões sobre restaurantes locais e empada de caça como bons conhecedores do terreno. Por debaixo do pullover de malha, o francês usa uma T-shirt (verde florescente, outra vez) com o logo de um restaurante da Comporta. Passou férias gratas aqui há muitos anos, em casa de uns amigos, e foi voltando sempre. Uma das suas irmãs também tem casa na zona. "Amo o Atlântico, mais do que o Mediterrâneo. Para mim, ele simboliza verdadeiramente o mar."
Mas Louboutin queixa-se das transformações urbanísticas de mau gosto que ocorreram desde a sua última passagem: "É pena porque se corre o risco de tornar um lugar poético num lugar feio. Espero que parem de arruinar este sítio. E de fazer projectos sem sentido. E de pôr candeeiros em todo o lado."
No ano passado, três amigas suas estiveram na casa da Comporta em momentos diferentes. Uma californiana, uma sérvia educada num orfanato francês, uma italiana que viveu no Brasil e em França - três backgrounds diferentes, sublinha Louboutin, e mesmo assim todas elas sentiram a mesma coisa e que é o motivo pelo qual ele se apaixonou pela casa: "É uma casa que evoca a pré-adolescência, esse período em que nos sentimos crescidos por podermos pegar na bicicleta e ir sozinhos para a praia. Estamo-nos nas tintas para os pais, sentimo-nos grandes mas ainda somos pequenos, ainda não fomos perturbados pela puberdade. O tamanho da casa, a forma como está feita, a proximidade do mar, os odores - tudo isso tem a ver com esse sentimento."
O que explica as unhas sujas. a