Machado de Assis De curiosidade em curiosidade
Foi a ler os clássicos portugueses no Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro que Machado de Assis começou. Tinha a intenção sincera de escrever uma literatura nacional e tornou-se um dos mais importantes escritores brasileiros de sempre. Os linguistas descobriram agora que ele usava mais de nove mil palavras
a O escritor brasileiro Machado de Assis não terá aprendido a escrever o seu português "puro e perfeito" nos livros de gramática. Machado de Assis aprendeu com os clássicos portugueses. Na poesia tinha um vocabulário "mais erudito", na prosa um vocabulário "mais corrente", mais próximo da língua falada. Neste ano, do centenário da sua morte, aconteceu "uma coisa curiosa".Estas são palavras do académico e filólogo brasileiro Evanildo Bechara, que não esteve presente no colóquio Machado de Assis, que decorreu esta semana na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, mas de quem foi exibido um depoimento em vídeo, realizado pelo Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras.
Nessa conversa entre o professor e a jornalista brasileira Maria Cláudia de Mesquita e Bonfim, à volta do amor de Machado de Assis pela língua portuguesa, Evanildo Bechara diz: "Todos nós tínhamos uma ideia de que o léxico de Machado de Assis seria em torno de duas a três mil palavras. Agora, com as comemorações do centenário, propusemos fazer um levantamento e ficámos curiosos, porque já recolhemos quase nove mil palavras diferentes. É um léxico corrente, mas rico."
Filho de um escravo mulato, pintor de tectos de casas e igrejas, e de uma portuguesa açoriana, Machado de Assis (1839-1908) passou a sua infância no "morro" do Livramento, no Rio do Janeiro. Era pobre mas frequentava o mundo dos ricos na "chacra" do Livramento, a casa de Dona Maria José de Mendonça Barroso, sua madrinha. Era ali que a sua mãe trabalhava. D. Maria era viúva do senador e ministro Bento Barroso Pereira e, nessa época, os filhos dos ricos brasileiros estudavam na Europa. Machado de Assis nunca saiu do Brasil, sofrendo preconceitos, porque era mulato numa sociedade esclavagista.
Durante grande parte da vida só lhe aconteceram desgraças. Como alguém já disse, "tinha tudo para não dar certo". Aos 6 anos o sarampo mata a sua irmã e aos 10 morre-lhe a mãe, de tuberculose. Ele escapa à febre-amarela. O pai volta a casar, mas, poucos anos depois, também morre.
Machado de Assis é gago e tem ataques de epilepsia. Frequenta a escola pouco tempo. Começa a trabalhar cedo, aos 16 anos, na tipografia de um amigo. Graças a protectores foi arranjando empregos. Mas era uma mistura de "apadrinhamento e mérito".
Tinha muita vontade e curiosidade de aprender. Corria a lenda (já se sabe que não aconteceu) de que teria ido pedir lições de francês à dona da padaria a quem entregava o pão e que aos 50 anos terá aprendido alemão e aos 60, grego. O escritor fez carreira como funcionário público no Ministério da Agricultura e foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.
Literatura verdadeira
Só depois de ter casado em 1869 com Carolina, uma portuguesa culta e mais velha do que ele, é que Machado de Assis começou a produzir as obras que lhe trouxeram a posteridade. Memórias Póstumas de Brás Cubas, "uma obra extravagante em qualquer parte do mundo", diz o professor de Literatura Brasileira na Universidade Nova de Lisboa Abel Barros Baptista, também presente neste colóquio na Gulbenkian, e que inicia as chamadas "obras da maturidade", só foi publicado em 1981.
John Gledson, antigo professor da Universidade de Liverpool e tradutor de Dom Casmurro para inglês, revelou no mesmo colóquio que em vida Machado de Assis tentou ser publicado no estrangeiro. E em 1899 chegou a receber uma oferta de uma tradução para alemão de uma das suas obras, mas os seus editores (a Garnier) recusaram "não se sabe porquê".
Na sua comunicação o britânico especialista na obra de Machado de Assis analisou também o conto A Parasita Azul, que, na sua opinião, é "central para a compreensão do seu desenvolvimento" e em particular para saber como é que o escritor encarava "a questão de uma literatura nacional verdadeira".
Gledson não tem "a menor dúvida" de que a intenção de Machado de Assis de escrever uma literatura brasileira era "real e sincera" e não uma imposição vinda de fora. "Ele queria escrever essa literatura nacional à sua maneira e nos seus termos nada condicionais. As primeiras evidências de como ele pensava consegui-lo estão aqui. O enredo deste conto é o primeiro exemplo de um triângulo que, se tenho razão, se repete em quase todos os romances da maturidade [publicados depois de 1880] e é central à sua estrutura."
Este triângulo, continuou o professor, é formado por um homem traiçoeiro, quase sempre brasileiro, mas que tem ligações com a Europa (caso das personagens Camilo, Brás Cubas ou Cristiano Palha), uma mulher brasileira, fascinante e ambígua (a Capitu, a Virgínia, a Sofia), e um homem de índole brasileira, local, a quem passam a perna, que é o trouxa, o otário. "O que realmente me interessa é o sentido desta estrutura. A sua essência, não é moral: é cultural."
Machado de Assis nunca poderá ser vendido fora do Brasil, se se ignorar as suas raízes brasileiras, conclui John Gledson. Mas também se deve reconhecer que a sua grandeza brasileira talvez nem existisse, se ele não tivesse entrado em diálogo com a sua própria tradição, com a literatura estrangeira mundial e com a situação do Brasil naquela época (um país, em certo sentido, ainda colonizado).
Almeida Garrett, o mestre
Como é que Machado de Assis terá conseguido entrar na "beleza, na riqueza e na potencialidade" da língua portuguesa, se na época em que viveu as gramáticas só tratavam da parte fonética e da morfologia da língua e não explicavam a sua sintaxe? A esta dúvida responde Evanildo Bechara no mesmo depoimento em vídeo apresentado no colóquio. Como só falamos construindo orações, as gramáticas da época não davam a Machado a oportunidade de ele entrar na alma de uma língua, a sua sintaxe. Mas houve um factor importante para Machado de Assis. "Foi a leitura dos clássicos", conclui na entrevista à jornalista brasileira.
Desde os 13/14 anos Machado de Assis frequentou o Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, e lá leu aqueles que são "incontestavelmente os grandes mestres da ilustração da língua". O Real Gabinete Português de Leitura servia também de depósito legal, todos os autores portugueses estavam disponíveis.
O escritor também teve a sorte de ter amigos estudiosos da língua, como Manuel de Melo, que tinha uma biblioteca "preciosíssima".
Na opinião deste académico, a língua de Machado de Assis começou "muito lusitana" nos primeiros livros, principalmente na poesia, e depois teve "uma evolução". O escritor brasileiro elegeu como um dos seus mestres Almeida Garrett, renovador da língua portuguesa no seu século. "Garrett foi o seu grande mestre a ponto de a ortografia de Garrett ser a ortografia de Machado de Assis. Ele começou com essa vertente lusitana, e através do tempo foi-se aproximando da realidade da língua portuguesa escrita no Brasil, mas de uma língua portuguesa ainda muito vernacular." Machado de Assis é para Evanildo Bechara "um clássico da vernaculidade".
Nesta conversa com Maria Cláudia este estudioso da língua revela também que Machado de Assis, a partir da publicação de Contos Fluminenses, deixou de fazer certos erros que também eram frequentes nos escritores portugueses. Por exemplo, o escritor usava o verbo "haver" no plural ("haviam pessoas", "houveram factos"), o que era frequente no século XVIII. "O próprio Camilo Castelo Branco cometeu muito este erro do verbo 'haver' no plural como o verbo 'fazer' na ideia de tempo ('fazem dois anos', 'fizeram três semanas')", continua o professor, que coloca a hipótese de Machado de Assis ter ultrapassado os seus erros por causa da intensificação dos estudos linguísticos no Brasil e em Portugal a partir daquela época.
A crítica a Eça
John Gledson e a sua colega Lúcia Granja acabam de preparar o livro Notas Semanais, que vai ser publicado este mês na Unicamp, onde reúnem um conjunto de crónicas que Machado publicou sob o pseudónimo de Eleazar no jornal O Cruzeiro entre Junho e Setembro de 1878. O nome Eleazar vem do filho de Aarão. Estas crónicas são "curiosíssimas", afirma o professor. Foi com este pseudónimo que Machado de Assis escreveu a famosa crítica ao livro de Eça de Queirós O Primo Basílio. E semanas mais tarde a resposta àqueles que reagiram à crítica.
Esta história é muito conhecida e é desenvolvida na obra Eça, Discípulo de Machado?: Formação de Eça de Queirós (1875-1880), de Alberto Machado da Rosa, que foi referida por Abel Barros Baptista no colóquio. O académico português leu uma carta de Eça a Teófilo Braga citada neste livro: "Eu tenho a paixão de ser leccionado; e basta darem-me a entender o bom caminho para eu me atirar para ele. Mas a crítica, ou a que em Portugal se chama a crítica, conserva sobre mim um silêncio desdenhoso." Esta passagem, segundo Alberto Machado da Rosa, mostra que Eça leu a crítica de Machado de Assis e reconheceu ali o caminho. "Era uma crítica que assentava na ideia de que ele deveria abandonar o naturalismo. Eça terá andado entre 1875 a 1880 a reescrever O Crime de Padre Amaro - que tem três versões - e a repensar a sua obra para abandonar a via do naturalismo e ser leccionado pelo mestre brasileiro", considerou Abel Barros Baptista, que lembrou ainda que se costuma dizer que Eça de Queirós conheceria o delírio de Brás Cubas de cor. O escritor português terá ainda pedido ao brasileiro que se encarregasse da defesa dos seus direitos de autor no Rio de Janeiro e o próprio Machado de Assis escreveu uma famosa crónica na data da morte de Eça. "A admiração entre os dois escritores era obviamente mútua."
A paternidade
Há um outro facto curioso na produção machadiana, evidente a partir de 1881 e pode ser uma das inúmeras chaves de acesso à obra de Machado de Assis na opinião de António Carlos Secchin, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o mais jovem membro da Academia Brasileira de Letras, que também veio a Lisboa participar neste colóquio. A curiosidade está na famosa última frase do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o narrador afirma: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." "Que haveria de comum entre Brás Cubas, Rubião [o protagonista de Quincas Borba], Aires [de Memorial de Aires] e os gémeos Pedro e Paulo de Esaú e Jacó? Nenhum deles teve filhos."
Todos estes personagens "se caracterizam por essa esterilidade pregada por Brás Cubas". Curiosamente, diz Secchin, o único que teve filhos tem a sua paternidade contestada, como é o caso de Dom Casmurro, do Bentinho. António Carlos Secchin desenvolveu a sua comunicação com base neste tema da paternidade. Partiu desta "paternidade biológica" para chegar a uma "paternidade simbólica". Machado de Assis escolheu um pai simbólico, o escritor José de Alencar (considerado o patriarca do romance brasileiro). Foi o patrono que escolheu e convocou quando fundou a Academia Brasileira de Letras. Mais tarde, em 1903, Machado de Assis patrocinou a candidatura de Mário de Alencar (filho de José) para essa academia.
Abel Barros Baptista retomou esta discussão na sua conferência e também a ligação de Machado com os clássicos portugueses. Para o académico português esse senso invulgar de relacionar a comédia com a impossibilidade de dar continuidade à vida, que é no fundo o que significa ter filhos, é que faz a grandeza de Machado de Assis.
"Ele torna-se uma coisa qualquer que surge, nós não sabemos bem tudo o que explica que ele tenha aparecido daquela maneira, mas sabemos que é alguém que a partir do momento em que aparece não podemos dispensar sem uma mutilação essencial", disse o professor. "Não é preciso saber se ele leu o Padre António Vieira. A partir do momento em que eu o leio, se me obrigassem a nunca mais o ler, eu ia sofrer muito", declarou.
A tarefa de ler e reler Machado de Assis está agora facilitada, porque, enquanto decorria o colóquio na Gulbenkian, o Ministério da Educação brasileiro disponibilizava a obra completa do escritor em formato digital em http://portal.mec.gov.br/machado.