Da conversa ao insulto, em pouco mais de um clique
No mundo em rede, os órgãos de comunicação social abriram-se ao público. Mas a participação dos leitores nem sempre se faz de forma civilizada. É o lado negro da Internet como espaço de discussão
a A Internet forçou os jornalistas a exporem ainda mais o seu trabalho à crítica e à discussão. As chamadas "caixas de comentários", que permitem a qualquer leitor comentar os artigos publicados, são uma ferramenta quase obrigatória num site moderno. São, diz quem as defende, uma ferramenta de interactividade, de participação democrática, de fomento da discussão. Atraem as audiências (e, assim, a publicidade) e são parte integrante da Web dos dias de hoje. No entanto, estes espaços nem sempre servem o efeito desejado. São frequentes os insultos, os textos mal escritos, as frases ocas - e tudo isto pode ser disparado atrás da segurança do anonimato, recorrendo a pseudónimos ou com nomes que até podem ser verdadeiros, embora nunca haja forma de ter certeza.
Nas "caixas de comentários" vale quase tudo e o grande desafio dos órgãos de comunicação social é separar o bom comentário do comentário inútil, o raciocínio inteligente da ordinarice brejeira, a ironia do insulto.
"A MFL [Manuela Ferreira Leite] deve ir ao Pomtal [sic] e levar o Sarraceno do Cavaco Silva com ela", escreve um leitor que se identifica como Tó Bull, num comentário no site do PÚBLICO à notícia "Santana Lopes defende que Ferreira Leite deveria ir à Festa do Pontal". Outro, anónimo, acrescenta: "Se MFL vai a festa, vai estragar a festa Pedrocas. Olha bem para a cara dela Pedroquinhas."
Já em reacção à notícia de que o comité olímpico proibira a bandeira espanhola a meia haste na sequência do desastre de avião em Madrid, o leitor Badocha observa: "Mas que grande estupidez!!! Que grandes alarves!!! Os países civilizados deviam mas era fazer um manguito a esse tal de COE e mandá-los pastar para a Sibéria!!!".
O artigo em que o PÚBLICO dava conta que Cavaco Silva tinha vetado o novo regime jurídico do divórcio também granjeou o tipo de comentários que dá dores de cabeça a quem tem de gerir estes espaços. "Os deputados que votaram a favor desta estúpida lei, era bem feito que fossem sistematicamente encornados pelo cônjuge e depois este lhe rapasse os rendimentos que ganham a coçar a micose na Assembleia da República", escreveu um leitor que assina como Final Approach. E os exemplos deste género de reacções podiam continuar: são muito mais os comentários do que as notícias publicadas.
Um mundo ressabiado
A Internet prometia uma espécie de Ágora electrónica alargada. Mas as limitações do mundo online enquanto plataforma de discussão são bem visíveis, sublinha José Luís Orihuela, professor na Universidade de Navarra, em Espanha, autor do livro A Revolução dos Blogues e do blogue eCuaderno: "Os comentários e as novas formas de participação dos utilizadores nos meios online revelam os limites da utopia da conversação".
Por seu lado, José Pacheco Pereira, historiador e autor do blogue Abrupto, é mais contundente: "O mundo anónimo das caixas de comentários só serve para os blogues e os sites aumentarem as audiências, não tem qualquer utilidade para a discussão e poluí o conteúdo do que se publica. Permite todo o género de fraudes e só vale enquanto o retrato de um mundo ressentido e ressabiado, a quem a Internet deu possibilidade de expressão sem qualquer valor acrescentado."
Também historiador, Rui Bebiano, professor na Universidade de Coimbra e autor do blogue A Terceira Noite, explica que os sistemas de comentários online podem facilmente resvalar para a discussão destrutiva. E nota que isso tem consequências para os sites que fomentam estes espaços e para a própria imagem que a Internet pode ter junto de alguns: "É fácil sobrepor-se a voz de quem dispõe de tempo para investir na agressividade e no menosprezo por um código ético. Quando alimentado, este ambiente torna-se mesmo insuportável, desviando leitores para outros interesses. Pode ser até um factor de descredibilização da Internet junto de alguns segmentos sociais".
O facto de o anonimato ser característica intrínseca da Internet - e de ser extremamente fácil de garantir - não ajuda, nota Bebiano: "O recurso ao anonimato, associado à utilização parasitária das caixas de comentários, favorece a ofensa, a calúnia, a provocação, a instalação da dúvida em relação à fala do outro".
Na mesma linha, Pacheco Pereira diz que só raramente o anonimato se justifica: "É um mecanismo de cobardia e um instrumento de invejas e vinganças, muitas vezes violando a lei. É a transposição para a Internet de um mundo que existe cá fora, mas que até agora ficava dentro da cabeça das pessoas e nas conversas de café".
Muitos utilizadores, salienta ainda Orihuela, utilizam os sites onde deixam comentários para divulgar ideologias extremistas ou "simplesmente para fazer gala da sua falta de cultura e imaturidade." Pacheco Pereira resume: "Não é bonito de se ver."
Sem soluções perfeitas
Neste tipo de cenários, os responsáveis pelos sites frequentemente dividem-se quanto à melhor abordagem. Uma opção é ler tudo o que os visitantes escrevem antes de autorizar a publicação. No outro extremo, há quem opte por publicar praticamente tudo. E há soluções intermédias, como permitir que os próprios leitores votem nos comentários que querem ver excluídos.
"O debate saudável e produtivo acontece online todos os dias, mas exige esforço", garante o especialista Kevin Anderson, actualmente responsável pelos blogues do britânico The Guardian. "Há uma diferença entre um criar um debate inteligente sobre os assuntos do dia ou gerar raiva [nos leitores] só para aumentar as audiências". No site deste jornal, há pessoas cujo único trabalho é a gestão dos comentários e os jornalistas são encorajados a participar na moderação. "Mas, mesmo com as melhores intenções, há debates que caem na discussão, tal como acontece com as conversas cara-a-cara".
"Não há soluções perfeitas", admite Orihuela, "mas tudo parece indicar que uma política editorial clara sobre as regras de participação são soluções aplicáveis."
Pacheco Pereira, que mantém o Abrupto desde 2003 (onde, contrariamente ao que acontece na esmagadora maioria destes espaços, todos os comentários têm que ser enviados por e-mail e aprovados), observa ainda que o amadurecimento e a familiarização das pessoas com estes espaços de discussão não tem tido consequências positivas: "A tendência é para piorar. Quanto mais gente entra na Net, maior importância tem a edição dos comentários".
a Sob anonimato, recorrendo a pseudónimos ou com nomes que até podem ser verdadeiros, embora nunca haja forma de ter certeza, nos sites dos órgãos de comunicação, amontoam-se comentários de todos os tipos, a todos os tipos de notícias.
A Internet forçou os jornalistas a exporem ainda mais o seu trabalho à crítica e à discussão. As chamadas "caixas de comentários", que permitem a qualquer leitor comentar os artigos publicados, são uma ferramenta quase obrigatória num site moderno. São, diz quem as defende, uma ferramenta de interactividade, de participação democrática, de fomento da discussão. Atraem as audiências (e, assim, a publicidade) e são parte integrante da Web dos dias de hoje. No entanto, estes espaços nem sempre têm o efeito desejado. São frequentes os insultos, os textos mal escritos, as frases ocas - e tudo isto pode ser disparado atrás da segurança do anonimato.
"A MFL [Manuela Ferreira Leite] deve ir ao Pomtal [sic] e levar o Sarraceno do Cavaco Silva com ela", escreve um leitor que se identifica como Tó Bull, num comentário no site do PÚBLICO à notícia "Santana Lopes defende que Ferreira Leite deveria ir à Festa do Pontal". Outro, anónimo, acrescenta: "Se MFL vai a festa, vai estragar a festa Pedrocas. Olha bem para a cara dela Pedroquinhas."
Já em reacção à notícia de que o comité olímpico proibira a bandeira espanhola a meia haste na sequência do desastre de avião em Madrid, o leitor Badocha observa: "Mas que grande estupidez!!! Que grandes alarves!!! Os países civilizados deviam mas era fazer um manguito a esse tal de COE e mandá-los pastar para a Sibéria!!!".
O artigo em que o PÚBLICO dava conta que Cavaco Silva tinha vetado o novo regime jurídico do divórcio também granjeou o tipo de comentários que dá dores de cabeça a quem tem de gerir estes espaços. "Os deputados que votaram a favor desta estupida lei, era bem feito que fossem sistematicamente encornados pelo conjuge e depois este lhe rapasse os rendimentos que ganham a coçar a micose na Assembleia da República", escreveu um leitor que assina como Final Approach. E os exemplos deste género de reacções podiam continuar: são muito mais os comentários do que as notícias publicadas.
Um mundo ressabiado
A Internet prometia uma espécie de Ágora electrónica alargada. Mas as limitações do mundo online enquanto plataforma de discussão são bem visíveis, sublinha José Luís Orihuela, professor na Universidade de Navarra, em Espanha, autor do livro A Revolução dos Blogues e do blogue eCuaderno: "Os comentários e as novas formas de participação dos utilizadores nos meios online revelam os limites da utopia da conversação".
Por seu lado, José Pacheco Pereira, historiador e autor do blogue Abrupto, é mais contundente: "O mundo anónimo das caixas de comentários só serve para os blogues e os sites aumentarem as audiências, não tem qualquer utilidade para a discussão e poluí o conteúdo do que se publica. Permite todo o género de fraudes e só vale enquanto o retrato de um mundo ressentido e ressabiado, a quem a Internet deu possibilidade de expressão sem qualquer valor acrescentado."
Também historiador, Rui Bebiano, professor na Universidade de Coimbra e autor do blogue A Terceira Noite, explica que os sistemas de comentários online podem facilmente resvalar para a discussão destrutiva. E nota que isso tem consequências para os sites que fomentam estes espaços e para a própria imagem que a Internet pode ter junto de alguns: "É fácil sobrepor-se a voz de quem dispõe de tempo para investir na agressividade e no menosprezo por um código ético. Quando alimentado, este ambiente torna-se mesmo insuportável, desviando leitores para outros interesses. Pode ser até um factor de descredibilização da Internet junto de alguns segmentos sociais".
O facto de o anonimato ser característica intrínseca da Internet - e de ser extremamente fácil de garantir - não ajuda, nota Bebiano: "O recurso ao anonimato, associado à utilização parasitária das caixas de comentários, favorece a ofensa, a calúnia, a provocação, a instalação da dúvida em relação à fala do outro".
Na mesma linha, Pacheco Pereira realça que só muito ocasionalmente o anonimato se justifica: "É um mecanismo de cobardia e um instrumento de invejas e vinganças, muitas vezes violando a lei. É a transposição para a Internet de um mundo que existe cá fora, mas que até agora ficava dentro da cabeça das pessoas e nas conversas de café".
Muitos utilizadores, salienta ainda Orihuela, utilizam os sites onde deixam comentários para divulgar ideologias extremistas ou "simplesmente para fazer gala da sua falta de cultura e imaturidade." Pacheco Pereira resume: "Não é bonito de se ver."
Sem soluções perfeitas
Neste tipo de cenários, os responsáveis pelos sites frequentemente dividem-se quanto à melhor abordagem. Uma opção é ler tudo o que os visitantes escrevem antes de autorizar a publicação. No outro extremo, há quem opte por publicar praticamente tudo. E há soluções intermédias, como permitir que os próprios leitores votem nos comentários que querem ver excluídos.
"O debate saudável e produtivo acontece online todos os dias, mas exige esforço", garante o especialista Kevin Anderson, actualmente responsável pelos blogues do britânico The Guardian. "Há uma diferença entre um criar um debate inteligente sobre os assuntos do dia ou gerar raiva [nos leitores] só para aumentar as audiências". No site deste jornal, há pessoas cujo único trabalho é a gestão dos comentários e os jornalistas são encorajados a participar na moderação da discussão. "Mas, mesmo com as melhores intenções, há debates que caem na discussão, tal como acontece com as conversas cara-a-cara".
"Não há soluções perfeitas", admite Orihuela, "mas tudo parece indicar que uma política editorial clara sobre as regras de participação são soluções aplicáveis."
Pacheco Pereira, que mantém o Abrupto desde 2003 (onde, contrariamente ao que acontece na esmagadora maioria destes espaços, todos os comentários têm que ser enviados por e-mail e aprovados), observa ainda que o amadurecimento e a familiarização com estes espaços de discussão não tem tido consequências positivas: "A tendência é para piorar. Quanto mais gente entra na Net, maior importância tem a edição dos comentários".