Quem não comprou penico é "um caloiro abaixo de verme"
Durante dias pintam-lhes a cara. Mandam-nos deitar no chão. Comer sem talheres. Fazer flexões. "Estes dias têm sido espectaculares", diz Bruno, um "caloiro"
a Bárbara, uma rapariga baixinha de 21 anos, capa preta à volta do pescoço, como "manda a tradição", grita tão alto que a voz dá de si e ameaça falhar: "ORGASMOOOOO!" É "o grito de Psicologia". Algumas dezenas de alunos do 1.º ano respondem de imediato, também aos gritos: "Orgia! Orgia! É só em Psicologia." Está tudo ensaiado. São as praxes.No relvado da Cidade Universitária, em Lisboa, há grupos de jovens trajados de negro (os alunos mais velhos do curso de Psicologia, que praxam) e outros com penicos na cabeça ou rostos pintados de vermelho (os "caloiros", que são praxados).
Cada "caloiro" tem ao pescoço uma placa onde se lê o "apelido pelo qual responde ao dono" (a alcunha) e onde se explica quem está "acasalado" (estado civil). Quem não comprou penico é considerado um "caloiro abaixo de verme", como será dito mais tarde no "tribunal de praxe". Muitos não compraram. Todos se riem.
São dez da manhã, está muito sol, mas não falta energia. Os "veteranos" gritam. Os mais novos correm, fazem flexões, cantam, atiram-se ao chão quando passa uma ambulância, põem-se de cócoras quando passa um avião, obedecem às mais diversas ordens para levantar, para sentar, para gritar também - "Não há abusos", garante Tiago Fonseca, 20 anos, aluno do 3.º ano da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Este ano, o conselho directivo proibiu as praxes na faculdade.
Tiago não concorda com a proibição. "As aulas começaram na segunda-feira, os caloiros não vão às aulas, mas não são prejudicados", assegura. Porquê? "Porque a primeira semana são sobretudo apresentações." Depois, as praxes são "integradoras", "ajudam os alunos a fazer amigos, a conhecer colegas", a cidade. Há um peddy paper, jogos e cantigas. Não são humilhantes todas as ordens, todos os gritos? Não, dizem os "veteranos". E os "caloiros" com quem o PÚBLICO irá falar.
Menos palavrões
Assim, mesmo com a proibição, os rituais não deixam de cumprir-se. No Instituto Superior Técnico, em Lisboa, o presidente do conselho directivo também fez saber este ano que não queria praxes dentro do estabelecimento. O que "não ditou o fim das praxes", diz Jean Barroca, da associação de estudantes. Foram feitas na rua.
Na Faculdade de Psicologia aconteceu o mesmo: "Foi tudo feito fora da faculdade". Aqui, os rituais de recepção ao caloiro duraram quatro dias, das nove da manhã às seis da tarde, sem pausa para almoço. "No primeiro dia os caloiros têm que comer no chão, sem talheres, no dia seguinte já têm faca e por aí fora." Ontem, foi dia de "tribunal de praxes" e os novatos "que desobedeceram a alguma coisa" foram julgados.
Ninguém parecia melindrado. Manuela, de 18 anos, aluna do 1.º ano, foi chamada ao "excelentíssimo senhor juiz", um "veterano" trajado de negro, por "ter iniciado um orgasmo", um "crime gravíssimo", já que o tal grito de "ORGASMOOOOO!" que fez Bárbara quase ficar sem voz só pode "ser iniciado" pelos alunos mais velhos.
Manuela foi condenada a jurar, com risos à mistura, "não voltar a desrespeitar o real código da praxe". "Gostei muito", disse no final ao PÚBLICO. "Faz parte da tradição e é divertido."
Bruno, a quem os mais velhos chamam "Mosca", também não escondia o entusiasmo: "Estes dias têm sido espectaculares, fiz amigos e a professora de Biologia até nos deixou sair mais cedo". Cristiano, mais selecto: "Tem sido muito interessante".
Para o Mata (Movimento Anti-Tradição Académica, constituído por jovens que são contra as praxes), a proibição que algumas escolas decretaram este ano não é solução para acabar com os episódios de violência que por vezes são notícia. "A solução é debater o tema para que as pessoas concluam que há outras formas de receber os novos alunos sem que haja uns a mandar e outros a obedecer", diz Ana Feijão, que, por estes dias, tem distribuído panfletos aos caloiros que estão a ser praxados explicando-lhes que não são obrigados a sê-lo. Nem sempre corre bem. Numa escola, "alunos trajados rasgaram os panfletos e gritou-se: 'Morte ao Mata'", diz.
Noutros casos, as escolas não limitaram a realização de praxes. Mas os alunos tentaram evitar que houvesse excessos. Até linguísticos. "Incentivamos as comissões de praxe dos cursos a eliminarem o calão das músicas cantadas pelos caloiros. Queremos que utilizem um vocabulário mais rico. E contribuir para que os alunos defendam a língua", disse Rui Jorge, aluno de Gestão e "Papa" (o chefe da praxe académica na universidade). Por exemplo, o verso da canção do curso de Sistemas de Informática "Viemos aqui para vos enrabar/com muita pujança vos vamos calar" não escapou à limpeza linguística.
Passou a: "Viemos aqui para vos humilhar". com Samuel Silva