Torne-se perito

O equinócio em Chãs

Foi da chuva. Da vindima. Do calo do senhor Baltasar. Dos idosos no lar e dos novos
a trabalhar. O P2 apanhou uma boleia com Moisés Espírito Santo para ver o nascimento
do Outono num santuário rupestre em Foz Côa. Estava anunciada uma celebração do sol. O sol veio, os homens não. Mas Olena, a violetista, chegou quase a tempo e vinha de saltos agulha Por Alexandra Lucas Coelho (texto) e Enric Vives Rubio (fotos)

1. Véspera

A rota deste equinócio começa domingo de manhã, na Praça de Espanha, em Lisboa, onde Moisés Espírito Santo estacionou o carro que é o seu primeiro carro. Correu aldeias do Minho a Marrocos a conhecer santo-e-senha da religião popular portuguesa, uma vez até expulsou sete demónios, mas nunca conduziu. Agora, aos 74 anos, professor jubilado da Universidade Nova, está a habituar-se. Vive ao pé do mar e tirou a carta há cinco anos. Tudo menos cidades. Não entra em Lisboa. O seu limite é a Praça de Espanha, para apanhar o P2 e a auto-estrada do Norte.
E daqui arranca, com uma cigarrilha ora acesa ora apagada e o GPS a dar ordens ("con-tor-ne a ro-tun-da") por cima de histórias da Nossa Senhora ("a do culto popular, não a dos padres").
O destino final é Chãs, uma aldeia perto de Foz Côa onde existem pedras gigantes que terão sido calendários rupestres. Estão alinhadas de forma a marcarem exactamente equinócios e solstícios. Há quem creia que os antigos ali celebravam o sol. Como se verá, é possível imaginar tudo, até orgias.
E Moisés Espírito Santo, que continua activo por gosto, tem planos. "Gostava de me dedicar àquela região, dedicar um livrito aos calendários. Aquilo é exacto e tem a ver com o culto do sol. É isso que me interessa. O povo nos tempos anteriores ao cristianismo venerava o sol e a lua. A Nossa Senhora portuguesa do culto popular deriva da lua."
À velocidade de quem está à conversa, o carro alcança a colina de Chãs sete horas depois.
O céu ruge, azul-nublado com relâmpagos e quase chove. Moisés Espírito Santo começa a subir ao longo de pedras e ervas, deixando para trás o vale desenhado com vinhas. A paisagem vai-se tornando mais selvagem. "É bom para visitar, mas não para viver", diz. A natureza selvagem não lhe interessa. Gosta da natureza cultivada pelo homem. O Minho é o seu território de eleição, densamente povoado, enérgico, festeiro.
O carro pára no largo principal de Chãs, entre o café Filipe O Lavrador e a Avenida do Emigrante, e mal Moisés sai já vem ao seu encontro uma figura vestida de branco, com um medalhão ao peito, cabelo louro pelos ombros e uns óculos à John Lennon. É o organizador da anunciada celebração, Jorge Trabulo Marques, antigo jornalista da Rádio Comercial, com origem familiar em Chãs.
Passava muito tempo entre as pedras, até se auto-fotografou nu nas pedras. E ao detectar os alinhamentos do sol no solstício e no equinócio decidiu promover um revivalismo do culto antigo.
Mas hoje o céu ruge cada vez mais, e Trabulo apresenta-se ansioso. Teme que as nuvens não deixem ver o sol no momento do equinócio, às 8h da manhã. Ainda por cima a vindima este ano atrasou, está a ser agora, pode roubar gente ao momento.
"Estamos a saudar o sol e o sol está-nos a virar as costas", resume, instando Moisés Espírito Santo e o P2 a tomar algo no Café Filipe O Lavrador. "Fico um bocadinho revoltado, tivemos tantos dias de sol. Mas as pessoas aqui também desejam a chuva."
Chega Baltasar, jovial ancião de 81 anos, apesar de um calo que não o deixa andar ligeiro. Trabulo pediu-lhe que levasse o pequeno grupo de jipe à pedra do equinócio, incluindo uma prima de passagem que nunca foi à pedra.
Baltasar vai falando daquela vez que tropeçou num javali, estava ele a dormir, enquanto Trabulo explica aos iniciados que no Inverno a lua está alta e no Verão está baixa, e que é de noite que se vive melhor o espírito do lugar. "Parece que ainda ouço as vozes dos nossos antepassados."
O caminho começa à saída da aldeia, numa antiga calçada romana, e continua pelo mato, chegando a duas pedras gigantescas, protegidas por um muro.
Uma parece escavada por baixo, até formar uma espécie de arco por onde se pode entrar rastejando - é a Pedra da Cabeleira. A outra parece escavada de lado - é a Pedra do Ouvido.
"Isto foi mudado para aqui", decreta Baltasar, que pode ter 81 anos no B.I. mas tem "30 ou 35 no espírito" e apesar do calo trepa para as lajes, escorregadias da chuva. "São muito pesadas, mas os da Ilha da Páscoa também as carregaram."
Trabulo faz Moisés sentar-se na cova da Pedra do Ouvido e pede-lhe que fale. "Estamos como dentro de um altifalante!", conclui o professor encantado. "Faz a voz cheia, cheeiinha."
Por cima do seu ombro, colocados em nichos na pedra, estão duas santas. Moisés identifica-as rapidamente: "Nossa Senhora da Aparecida e Nossa Senhora de Fátima."
Passando à outra pedra, a principal, Trabulo contorna-a, acaricia a sua face como que perfeitamente cortada a direito, põe os dedos dentro de buracos a que chama uma mão, mostra o que parece um círculo. "Aqui temos o sol..."
Troveja no vale.
Há um debate sobre se a pedra estava aqui ou foi arrastada pelos antigos. Trabulo acha que foi arrastada e Moisés acha bem possível. "Rolaram a pedra, com pessoas ou animais. A noção do tempo era completamente diferente. As pessoas faziam aquilo durante anos e anos, podiam até abrir estradas para isso que depois desapareciam."
Moisés entra pelo arco debaixo da pedra e o P2 segue-o. É possível estar sentado com a cabeça quase direita, a olhar a paisagem como no interior de uma gruta. Há marcas de fogueiras e uma mancha negra que parece um jacto de tinta. "A cabeleira de Nossa Senhora", anuncia Trabulo.
"É uma antiga história", completa Moisés. "Conta-se que Nossa Senhora esteve aqui protegida na fuga do Egipto e deixou a cabeleira impressa na pedra." Daí o nome, Pedra da Cabeleira.
Mas o professor tem outra explicação possível: "'Cabal aur' quer dizer 'a luz no sítio do meio'." O que já remete para o sol a aparecer dentro do arco cavado por baixo da pedra, que é o que se espera que aconteça às 8h da manhã.
Trabulo afasta-se para o ponto onde o sol deverá ser observado, junto a dois marcos de pedra.
Além dos marcos há uma espécie de arena de feno, fofa. Moisés entusiasma-se: "Isto é bem um terreiro de festa. Festas orgíacas, eróticas..."
Adiante vê-se uma velha fonte, e descendo entre giestas, silvas e urzes chega-se à pedra dita do solstício, de onde se avista todo o vale, com as vinhas muito desenhadas. "No solstício, o sol põe-se exactamente na crista da pedra", diz Trabulo.
E no regresso à aldeia vai mostrando outras pedras com símbolos circulares e triangulares feitos por ele próprio. "Fiz tudo ao luar."
2. Manhã

7h20 no largo de Chãs e Trabulo desce a Avenida do Emigrante com um cesto cheio de uvas, pêras e maçãs. São as oferendas ao sol. Estavam previstos vários oradores, além de Moisés Espírito Santo, mas nenhum veio. Também está prevista uma violetista ucraniana. "Está um bocado atrasada, em Trancoso", diz Trabulo a Moisés, que é o único presente, além do P2.
O céu está bastante nublado, mas sem vento, frio ou chuva. No silêncio do largo, de onde não se avista vivalma, Trabulo continua a lamentar a chuva da véspera. "Foi bastante desmotivadora. E depois as vindimas começaram. Os velhinhos estão no lar. As pessoas activas estão a trabalhar. Até havia pessoas de Lisboa que estavam interessadas em vir. No Verão, as pessoas dormem lá! Eu era para convidar os Hare Krishna..."
Passa uma carrinha de caixa aberta com duas velhinhas curvadas. Ao longe ladra um cão. Moisés esclarece: "No equinócio a noite é igual ao dia." Trabulo ainda quer esperar pelo presidente da junta, mas passa das 7h30 e é preciso fazer a pé o caminho até à pedra antes que sejam 8h.
Faz-se em passo de passeio, quatro cidadãos, incluindo o P2.
Às 7h54 Trabulo pousa o cesto em cima de uma mesinha junto à pedra. Aparece António Lourenço, presidente da junta de Chãs desde 1976. E à hora a que era preciso, como por compaixão, as nuvens desfazem-se e começa a aparecer um brilho exactamente no arco escavado debaixo da pedra.
Trabulo não cabe em si: "Venha cá, venha cá! Está a ver? Está a ver?" Corre às pedras: "Vou dizer um poema!" Moisés e o presidente da junta agacham-se junto aos marcos, espreitando pelo arco.
"A todos vós que aqui vindes, companheiros e peregrinos...", clama Trabulo, todo de branco, segurando uns papéis. "Ó grande astro reluzente e belo..."
Ouve-se um som de pica-pau, que afinal é o telemóvel do presidente da junta. "Qual espírito divino..." O presidente da junta apaga o telemóvel. Volta a agachar-se com Moisés. Trabulo acaba o poema e volta a correr. Ouvem-se os sinos das 8h, ao longe.
E o arco transforma-se num olho incandescente. O sol está exactamente no espaço escavado na pedra.
Trabulo pula. Moisés exclama: "Faz lembrar o olho de Osíris, que é universal e supervisiona tudo!" O presidente da junta sorri: "Na altura ainda era possível supervisionar tudo só com um olho..." Trabulo volta a correr para a pedra: "Aproveitem a imagem que eu vou dizer mais um poema!"
O sol continua soberano, como se a pedra tivesse um olho de ouro. "O que está em baixo igual ao que está em cima...", recita Trabulo.
A encosta começa a ficar dourada à medida que o sol sobe. É então que o carro de Ulrich, uma alemã dona de um turismo rural das redondezas, estaciona por trás da pedra e dele sai a violetista, Olena Sokolovska, calças de cetim e saltos agulha, sorridente e confundida.
Julgava que vinha para uma igreja.
Mas bravamente desce as pedras ainda escorregadias. Tenta equilibrar a estante da partitura entre as ervas e começa a tocar a primeira suite de Bach para violoncelo.
Contando com Ulrich e o presidente da junta, já são seis pessoas a assistir.
O dourado alastra pela encosta, com o primeiro andamento da primeira suite, a que Trabulo decide unir-se, com mais um poema.
Moisés e o presidente da junta elogiam a diligência dos ucranianos em Portugal, e daí passam para o alargamento da União Europeia, e daí para as pretensões da Turquia. "É um cavalo de Tróia", explica Moisés. "O islão quer entrar na União Europeia para dominar..."
Trabulo proclama: "As vastidões, os mares..." Um golpe de vento vira a partitura, interrompendo Bach.
"Não é por um país ser na América que vai fazer parte dos EUA", prossegue Moisés, junto a um arbusto de trovisco. "O islão é capaz de tudo para conseguir o seu objectivo. Têm estratégias ao longo de séculos."
Trabulo regressa aos saltos. "Eu agora estou eufórico!"
E Moisés: "Você rezou um bocadinho não foi?"
E Trabulo: "Hoje somos meia-dúzia, mas amanhã seremos milhares!"
E Moisés: "E depois começam aí a estragar tudo."
Entretanto terminou a primeira suite.
"Finito!" exclama Trabulo, pedindo uma salva de palmas.
O presidente da junta liga o telemóvel, que toca logo.
E por trás da pedra aparece o senhor Baltasar, apesar do calo: "Ó caramba! Já passou a hora?"

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