Os filmes da vida (e da obra) de Manoel de Oliveira
Desde Gertrud, de Dreyer, "o filme mais fantástico de todos os tempos", até Cinco Dias Cinco Noites, de José Fonseca e Costa, "um dos melhores filmes do cinema português", Manoel de Oliveira comenta as obras que durante dois meses vão dialogar com as suas, no Museu de Serralves
a O auditório de Serralves vai ser já, a partir de hoje e até 9 de Novembro, a Cinemateca do Porto que a cidade ultimamente voltou a reivindicar com mais intensidade. A afirmação, feita na semana passada por Eduardo Paz Barroso, da comissão do centenário de Manoel de Oliveira, aquando da apresentação do programa da retrospectiva dedicado ao realizador pela Fundação de Serralves, faz todo o sentido quando se olha para o calendário de filmes que hoje começará a ser folheado. Durante quase dois meses, a obra completa (incluindo curtas-metragens e títulos inéditos) do autor de Aniki-Bóbó vai ser exibida em contexto com os filmes que o influenciaram ou de que ele gostou particularmente.
Manoel de Oliveira acompanhou de perto a organização do ciclo, e diz-se "muito contente" por João Fernandes (director do Museu de Serralves e também comissário da exposição sobre o realizador), em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, "ter-se lembrado de associar outros filmes" aos seus. "Aprovei imediatamente o projecto", explica o realizador, realçando que esta fórmula de retrospectiva "universaliza" as obras, mostra a "complementaridade cinematográfica e a influência benéfica" que há entre os realizadores de diferentes épocas e origens. É também isso que fica claro no "jogo" que o P2 propôs a Oliveira, de comentar um a um (quase) todos os filmes de outros realizadores que agora vão ser exibidos em diálogo com a obra própria. A retrospectiva abre hoje à noite (21h30) com a apresentação dos documentários Um Dia na Vida de Manoel de Oliveira, estreia em Portugal da obra assinada por Gilles Jacob, director do Festival de Cannes, e Manoel de Oliveira, o Arquitecto (1992), de Paulo Rocha.
Berlim, Sinfonia de uma Capital (1927)A Melodia do Mundo (1929)
Walter Ruttmann
19 Set, 21h30
O Homem da Câmara de Filmar (1929)
Dziga Vertov
20 Set, 15h
O Ruttmann foi o primeiro realizador que deu ordem à montagem. Quando vi Berlim, Sinfonia de uma Capital, fiquei muito entusiasmado com a sua ordem cinematográfica e com a sua montagem. Tanto que tentei fazer qualquer coisa de semelhante no Porto. Mas o Porto não tinha a centralidade europeia de Berlim, nem sequer era a capital do país. Entretanto, vi noutro filme um barco e uma âncora, que me lembrou a faina do Douro. E fiz o Douro, Faina Fluvial [1931]. Anunciei logo que fui influenciado pelo filme do Ruttmann, mas, curiosamente, nunca nenhum crítico referiu esse paralelismo. Mais tarde, li artigos e críticas sobre A Melodia do Mundo, que nunca vi, e eles diziam que o filme mostrava uma humanidade que não se via nos outros da época. Essa humanidade, que também na arte é fundamental, também está expressa, involuntariamente, no Douro. Calculei que talvez fosse essa a razão por que nunca aproximaram o meu filme do Sinfonia. Já o Dziga Vertov fazia filmes com as actualidades. Ele não filmava nada, arrumava aquilo conforme entendia, até dizia que não era um artista, era um engenheiro. Curiosamente, também o Ruttmann, n'A Melodia do Mundo, não faz sequer uma imagem, procura tudo das actualidades. Há uma ligação entre estes filmes todos, do Ruttmann (também com O Aço, 1933) e do Vertov. É esta influência benéfica - todos nós somos extremamente influenciados pelo cinema uns dos outros. Não há novidade. Cada um vai acrescentando sempre mais qualquer coisa. Por exemplo, no Douro há uma cruz [formada por quatro planos: um barco, um avião, um automóvel e um comboio] que representa a repressão e o autoritarismo do governo. E o [Luigi] Pirandello [argumentista de O Aço, que assistiu em Lisboa a estreia mundial de Douro, Faina Fluvial] fez a mesma coisa. Mas não é uma cópia. É diferente. São influências. Quando se ama verdadeiramente uma coisa, ela torna-se nossa.
A Ponte (1929)Chuva (1929)
Joris Ivens
20 Set., 18h
São filmes que eu vi muito mais tarde. E tornei-me amigo do Joris Ivens - tenho ainda uma carta dele, muito simpática. Gosto muito dos filmes dele. De resto, há outros documentaristas holandeses extraordinários, como aquele que fez um documentário sobre o Rembrandt, que é uma montagem dos seus auto-retratos, desde novo até à velhice, mas sempre fixado nos olhos. No olhar nada muda, apenas as feições. É também uma perspectiva muito humanista.
Rebecca (1940)Alfred Hitchcok
20 Set., 24h
Luzes da Cidade (1931)
Charles Chaplin
21 Set., 11h00
Rebecca é um filme ardiloso, muito bem concebido e estruturado. Esse e o Luzes da Cidade influenciaram-me muito, antes de eu fazer o Aniki-Bóbó [1942]. É claro que o meu filme não se parece nada, nem com o do Hitchcock nem com o do Chaplin. Talvez um pouco mais com o do Chaplin, apesar de não ter havido nenhuma intenção, por exemplo, de associar a personagem do Carlitos com o Charlot - mas não estaria mal! O Charlot era um personagem muito sentimental, profundamente humano, nas suas fraquezas e nas suas virtudes. Chaplin é uma figura extraordinária do cinema. E Luzes da Cidade é dos filmes de que mais gosto. Eu via o Charlot desde menino, desde os seis, sete anos. Havia o Charlot e o Max Linder... O cinema nasceu com os Lumière, que eram o realismo, a seguir veio o Méliès, a fantasia, depois o Max Linder, o cómico. Nestas três coisas - e talvez também com o espiritualismo, do Dreyer - está todo o cinema, que se tornou na Sétima Arte. O cinema era mudo, mas tinha legendas. A palavra nunca foi dispensada, embora, para garantir a especificidade, houvesse ensaios, como O Último dos Homens [1924], do Murnau, em que há apenas uma carta, e A Última Tipóia de Berlim [1926], do Lupu Pick, sem legendas. O cinema sonoro trouxe a palavra e a cor. Eu fui contra o sonoro, como o Chaplin e muita gente, na altura, porque achávamos que tirava essa sua especificidade. Era um cinema onírico, porque no sonho não há palavra nem cor. A cor e a palavra aproximam muito mais o cinema da vida real, como ele é agora.
O Evangelho Segundo S. Mateus (1964)Pier Paolo Pasolini
21 Set., 15h30
Veio depois do Acto da Primavera [1962]. Tenho ainda uma lata com o filme, que mostra que ele foi recusado em Veneza. Mas foi visto por pessoas do júri, que não concordaram com a recusa. Dois anos depois, aparece o Pasolini, com O Evangelho Segundo S. Mateus. Curiosamente, também não tem actores profissionais, só amadores. Mas o filme dele não é um acto, é um documentário sobre uma atitude e um sentimento religioso que as pessoas têm sempre, mesmo fora da igreja. É um filme interessante, mas muito diferente do Acto, também no sentido técnico. Ele faz muitos planos, com muito movimento. A minha tendência - na altura não tinha a noção disso - é ir no sentido inverso. O tempo não tem movimento. As coisas movem-se dentro do tempo. E todo o movimento é extremamente distrativo. A minha norma é a simplicidade dos gregos e o realismo da Renascença.
A Marquesa d'O (1976)Erich Rohmer
28 Set., 18h
É um filme que está ligado ao Benilde [e a Virgem Mãe] e também ao do Rosselini, O Amor [1948], em que o Fellini interpreta um vagabundo, que uma pastora confunde com o S. João. Ela fica grávida e diz que o pai é o S. João. Ninguém acredita na aldeia - é uma tragédia. Em 1947, a peça do José Régio, Benilde ou a Virgem Mãe, foi publicada em Itália, na mesma altura do filme do Rosselini. Também disseram que essa história vinha da Argentina. O Rohmer também filmou o tema. A Marquesa d'O é interpretada por uma actriz alemã formidável, a Edith Clever, que conheci e com quem cheguei a pensar fazer um filme, A Alma de S. Jacques. Esta relação entre diferentes filmes é sempre muito curiosa. Os filmes não vêm por acaso.
À Propos de Nice (1929)Jean Vigo
29 Set., 21h30
O Jean Vigo é muito interessante, porque é um rebelde. Ele e o Jean Renoir são os dois únicos artistas verdadeiramente rebeldes no cinema. O Renoir mostra essa faceta logo no seu primeiro filme, La Fille de l'Eau [1925]. O Vigo fez uma apresentação muito elogiosa do primeiro filme do Buñuel, Un Chien Andalou [1929], em Paris, o que lhe valeu uma pateada...
O Rio do Ouro (1998)Paulo Rocha
11 Out., 21h30
O Paulo Rocha é um bocado transcendente nas suas expressões. A gente não sabe bem até onde ele quer ir, mas ele frequentemente ultrapassa a realidade. No filme, só não gosto daqueles efeitos especiais em volta do personagem dentro da sala - isso deve ter-lhe sido sugerido pelo operador. Mas o resto é magnífico. Devia ser apresentado também o Verdes Anos [1963], que foi a abertura do Cinema Novo, logo a seguir ao Dom Roberto [de Ernesto de Sousa, 1961] e ao Acto da Primavera, que são tidos como os primeiros. Mas Verdes Anos é, realmente, o filme que abre um cinema diferente. Mas nenhum destes filmes teve grande sucesso de espectadores, apesar do actor de nomeada [Raul Solnado] do primeiro. Eu não gosto de dizer público - público são as cadeiras, a plateia.
A Canção de Lisboa (1933)Cottineli Telmo
12 Out., 11h
Este filme não teve grande importância. Entrei nele um pouco contrariado. Gostei foi da camaradagem com o António Silva, a Beatriz Costa e o Vasco Santana... Foi óptimo. Disso não me posso esquecer. Mas eu não me sentia actor - era um canastrão. O meu género era outro. Eles escolheram-me porque eu tinha já um certo nome aqui no Porto, com as coisas desportivas, os ralis... E como tinha boa figura, eles escolheram-me para arranjar público no Norte. Mas eu não representava lá muito bem.
Juventude em Marcha (2006)Pedro Costa
18 Out., 15h
Gosto muito do cinema do Pedro Costa, porque ele ordena muito bem as posições cinematográficas, a localização da câmara. Não especula. Dá as situações com simplicidade. E aborda situações extremas, muito radicais. São filmes corajosos.
Conversa Acabada (1980)João Botelho
18 Out., 18h30
É um filme que tem muito interesse, tirando aquela cena do castelo... O resto é admirável. E o João Botelho tem o mérito de ter feito a Conversa Acabada ainda a conversa não tinha principiado, ainda o Fernando Pessoa não tinha sido acordado. Depois disso, muita gente se dependurou no Pessoa, cá e lá fora. Esquecem que quem o reconheceu antes de toda a gente, em 1928, foi o José Régio. E os heterónimos foram revelados pelo Casais Monteiro. Eu estava com eles, numa viagem de carro, em que o Casais Monteiro explicou os heterónimos ao [investigador e tradutor francês] Pierre Hourcade. Foi pouco depois da morte do Pessoa, no final dos anos 30. Eu vivi esses tempos e essas pessoas. Historicamente, é importante saber o que está antes e o que está depois.Cinco Dias Cinco Noites (1996)
José Fonseca e Costa
Out., dia a designar
É o melhor filme do Fonseca e Costa e um dos grandes, se não o melhor filme português. Porque é um filme de uma simplicidade total. [Mesmo sendo a adaptacão dum romance do Manuel Tiago/Álvaro Cunhal], não há política nele. Há um certo humanismo, que é a sua principal qualidade. Nenhum filme, nem a arte, tem que defender política nenhuma, nem religião nenhuma. A arte tem que expressar aquilo que se sente. É um fundamento humanista. Não tem de fazer propaganda. É claro que os comunistas aproveitaram a ideia dos religiosos para fazer a propaganda do comunismo. Chegaram ao ponto de dizer que é preciso que os filmes sejam bem feitos, para que a propaganda seja eficaz. A qualidade de Cinco Dias Cinco Noites é não haver propaganda nenhuma. É um homem que foge a uma perseguição, seja ela qual for. E termina de uma maneira vaga. É admirável na sua simplicidade.Trás-os-Montes (1976)
António Reis e Margarida Cordeiro
1 Nov., 18h
É um belo filme. O António Reis era um homem especial, muito particular. Trabalhou comigo no Acto da Primavera. Ajudava-me muito a fazer as cartas para o Instituto de Cinema. Porque a minha vontade, às vezes, era de descompô-los a todos. Ele era amigo do Presidente Eanes, e este facilitou-lhe um helicóptero para fazer vento às oliveiras e filmar Trás-os-Montes. E isso fica muito bem no filme.
Belle de Jour (1967)Luis Buñuel
4 Nov., 21h30
O que penso deste filme está em Belle Toujours [2006]. O Buñuel é um homem profundamente religioso, mesmo que diga que todo o mistério será esclarecido. Ora, o verdadeiro mistério, nunca o saberemos. Estou a escrever um artigo para um livro em que falo sobre isso, sobre a dúvida, o poder, a criação. O que está para lá da morte, não sabemos. Os budistas acreditam que o espírito passa para um animal, mesmo que seja irracional. Perguntei ao Dalai Lama: "Se o nosso espírito passa para um animal irracional, não há continuidade, não há progresso". Ele diz que o que há, e o que vale, é o esforço de sobrevivência. Do que se trata, aqui, é do equilíbrio da natureza. Viemos do nada, não sabemos o que éramos antes, nem sabemos o que vai ser. Estamos num impasse.
Gertrud (1964)Carl Th. Dreyer
6 Nov., 21h30
É o filme mais fantástico de todos os tempos que eu jamais vi. Toca o absoluto. É uma dama que quer o amor absoluto, mas este não se encontra nesta vida. Acusavam o Dreyer de ser religioso, por ter realizado o milagre [A Palavra, 1955]. Mas aqui, não, é a procura do amor absoluto. É a relação de um escritor com a sua mulher, que ele acusa de perturbar a sua escrita. Ela percebe que ele não a ama verdadeiramente, e recusa-o. Ela amava-o, mas ele não a amava. No final, em vez de tocar o relógio, na mudança de cena, tocam os sinos. É a morte, onde ela encontra o amor absoluto.