Quando se fala do realismo de "Gomorra" é fácil lembrar que a Itália foi o país do neo-realismo cinematográfico, e que o neo-realismo, como uma espécie de "compromisso", deixou marcas e ramificações que se estenderam muito para além da sua vigência estrita e canónica. Independentemente das suas implicações estéticas, e mesmo ideológicas (o neo-realismo, estimulado pela crítica de cinema italiana, empenhada e vigilante, transformou-se numa pequena ideologia), esse "compromisso" cavou fundo no cinema italiano, mesmo naquele que se jogava apenas na margem, ou para além dela, do neo-realismo. Um compromisso com a pobreza, com os excluídos, com as fronteiras (sub)urbanas, com a paisagem vista "do lado de lá". De Pasolini, filho "emancipado" do neo-realismo, aos sicilianos, nossos contemporâneos, Daniele Cipri e Franco Maresco (que não filmam só do "lado de lá", mas autenticamente "do outro lado do espelho), podemos confirmar este compromisso, esta persistência, em inúmeras instâncias.
No realismo de "Gomorra", ele próprio ao serviço de um olhar sobre a máfia napolitana enquanto cruzamento entre "tradição" (na ética) e "modernidade" (na prática), não deixamos de encontrar alguns sinais desse compromisso, como se o filme fosse também, nalgum grau, uma reflexão sobre a "tradição" e a "modernidade". Do cinema italiano, mas para além dele. Sinais exteriores, chamemos-lhes - no retrato urbano, uma urbanidade degradada e "fronteiriça", na ambiguidade de que se revestem as próprias noções de "pobreza" e "riqueza" num contexto mafioso. Mas dentro disto, há um olhar, não isento de alguma (muita) amargura, sobre personagens que, poeticamente, parecem elas próprias uma "persistência", uma encarnação de figuras recorrentes no cinema italiano.
Pensamos, sobretudo, no par de miúdos "arrivistas" cuja história vamos entrecortadamente seguindo até ao seu triste desfecho. Parecem uma dupla de burlesco. Um é alto e desengoçado, de fácies tipo "pee wee", o outro tem voz de barítono rouco. Na sua ambição, inversamente proporcional à sua falta de preparação, podiam noutro filme ser um par de cómicos. Passarinhos no meio de passarões, as cenas em que os vemos, passeando pelos sujos e desolados subúrbios napolitanos, fazem pensar nos Francos Citis e nos Ninettos de Pasolini, miúdos de cabeça um pouco perdida mas de pés firmemente ancorados no chão que pisam, quase um seu prolongamento. Mas, se eles são um "produto" da terra e do "ecosistema", são também o "produto" de um tempo mais recente. Têm, como toda a gente em "Gomorra", a sua mitologia pessoal da mafia, mas é uma mitologia que, ao contrário do que acontece com outras personagens (os outros miúdos mais novos), depende menos de uma questão de autenticidade e necessidade e mais de uma certa superficialidade: para eles a mafia é um espectáculo, que os seduz, em primeiro lugar, pelas suas representações. Cinematográficas, sobretudo: são eles quem fala em "Scarface", os seus modelos são dessa ordem espectacular. Querem ser "personagens", e imaginam-se (e comportam-se) numa amálgama de "tipos" mafiosos decalcados de "tipos" que viram algures. Mexem-se numa euforia de "video game", como se subir ao topo da cadeia não fosse mais do que ir superando níveis de dificuldade. Há uma cena, uma das mais fortes do filme, em que ambos praticam tiro ao alvo num descampado - e é a cena que mais directamente faz pesar sobre eles uma aura de desamparadas figuras pasolinianas ao mesmo tempo que os mostra como dois garotos a brincar aos "first person shooters" da Playstation. Têm demasiada mafia na cabeça, uma mafia que provavelmente não existe e uma mafia que é, em todos os seus equívocos, uma projecção idealista. A mafia que existe é pragmática e não precisa de representar aquilo que é, e tem pouca tolerância para o espectáculo e para o "show off".
Na implacável cena final de "Gomorra", os dois miúdos servem para mostrar que a Camorra não se compadece com fantasias. Muita mafia na cabeça paga-se com o corpo.