Quem é, afinal, o John McCain que escolheu Sarah Palin?
Palin pode ter desviado o debate para a velha "guerra cultural", que é onde os estrategos de McCain a querem colocar
1.Muita gente escreveu que estas eleições americanas iriam ser disputadas por dois candidatos excepcionais. Barack Obama e John McCain surgiam aos olhos dos analistas e, porventura, da maioria dos mortais como dois homens excepcionais, embora absolutamente diferentes. Com qualquer um deles, criara-se a forte convicção de que a América estaria em muito melhores condições para ganhar de novo o respeito do mundo. "Esta é a mais impressionante escolha da América de há muito tempo", escrevia bem recentemente o Economist.Previa-se que dela saísse uma América mais moderada, mais centrista, mais próxima do resto do mundo. McCain, o maverik, não era um republicano qualquer. Era um outsider, capaz de honrar as suas ideias mesmo quando fugiam ao mainstream partidário ou quando iam contra as bases mais conservadoras do seu partido. Era o homem que os ultraconservadores e a direita religiosa odiavam.
A campanha estava centrada na política externa e na economia, e na melhor maneira de lidar com o fraco legado de Bush em ambas as frentes. Não na "guerra cultural" que manchou os anos da era Clinton (com as tentativas de assassinato político do antigo Presidente levadas a cabo pela direita fundamentalista) e que dividiu profundamente a América nos anos de Bush, valendo-lhe, em boa medida, a segunda vitória eleitoral.
Admitia-se que McCain colocasse todas as fichas na segurança dos americanos, na senda do clima gerado pelo 11 de Setembro e da instabilidade mundial. Nas guerras a sério que os americanos, no seu entender, têm a necessidade e o dever de vencer. Não se vislumbrava que resolvesse ganhar as eleições apostando nos valores extremos da direita fundamentalista que ele sempre rejeitara e que sempre o rejeitara a ele. Infelizmente, cá estamos nós outra vez.
Não há outra explicação para a escolha da sua "vice", surgida do nada e nos antípodas dos mais fortes concorrentes ao lugar, qualquer deles, Joe Liberman ou Tom Ridge, muito mais próximos politicamente do perfil e das características do senador do Arizona.
O que é que ela traz para a campanha? O facto de ser mulher (portanto, novidade contra a novidade de Obama ser negro) e o facto de representar aquela América profundamente conservadora e intolerante, das pequenas cidades do interior, que pensa que o mundo em volta é constituído por pecadores à espera de redenção. Palin é uma espécie de Bush de saias, mas porventura ainda mais convicta. E mais convincente.
Electrizou a convenção republicana com a sua grande família e as suas pequenas tragédias, que exibe com total candura. Com a sua distância de Washington e da elite política e intelectual, apresentadas como a origem de todos os males. Com a sua convicção de que a guerra do Iraque foi encomendada por Deus aos americanos. Com o seu fundamentalismo religioso, a sua defesa do criacionismo, o seu horror à diferença e os seus hábitos simples, foi com ela que os delegados da convenção republicana melhor se identificaram. Salvou McCain, o outsider, aos seus olhos.
2.Passou, portanto, a ser legítimo perguntar o que representa o ticket republicano. As ideias de McCain, o verdadeiro? As dela? Ou, ainda, as que a plataforma republicana adoptou na mesma convenção que os consagrou? Ou o quê? McCain, o verdadeiro, favorece a amnistia aos ilegais que vivem nos EUA. A plataforma é contra. Palin, não sabemos exactamente o que pensa. Aliás, sabemos muito pouco do que pensa sobre qualquer tema político. McCain compreendeu a urgência do combate às alterações climáticas. A plataforma rejeita os alegados "cenários catastrofistas", que a justificam. Palin também, na velha linha de Bush. "Drill, baby, drill", foi o mais estranho grito de guerra que se ouviu na convenção republicana, que quer dizer, mais ou menos, "queremos petróleo barato e o resto que se lixe". McCain não é pessoalmente favorável ao aborto mas tem uma atitude aberta em relação à escolha das mulheres. A plataforma é ferozmente pró-vida e Palin também (é, aliás, a imagem de marca que construiu, com o seu filho mais novo que nasceu com síndroma de Down e a filha adolescente grávida). McCain é favorável à investigação a partir de células estaminais. A plataforma e Palin absolutamente contra, como Bush.
Não se sabe o que pensa Palin sobre Guantánamo. Mas sabe-se o que disse num dos seus ataques mais aplaudidos a Obama: "Os terroristas da Al-Qaeda continuam a conspirar contra a América e ele está preocupado em que alguém lhes leia os seus direitos!" Sabe-se o que pensa McCain.
Dir-se-á que a eleição do Presidente americano é fundamentalmente uma questão de carácter e que McCain, herói da guerra e homem de coragem política, não precisa de outras recomendações nem de outra coerência. Mas a escolha de Palin com o objectivo de arrastar de novo o voto da direita religiosa à custa do conjunto das suas ideias essenciais não parece ser o melhor dos atestados a esta imagem.
O seu discurso na convenção foi (ao contrário do de Obama) sobre o seu carácter e sobre o seu patriotismo, que lhe foi revelado no martírio sobre-humano de um campo de prisioneiros do Vietname. Não foi sobre o que pensa fazer. Nem porventura poderia sê-lo, perante uma assembleia que maioritariamente poderia rejeitar as suas ideias.
A pergunta passou, pois, a ser legítima: onde está o verdadeiro McCain? Com o que é que se pode contar se ele chegar à Casa Branca?
3.E isso leva-nos até à política externa. Palin, escrevem os jornais americanos, ainda não disse uma palavra sobre o que pensa. Neste campo, terá enormes vulnerabilidades. Cindy McCain, querendo ajudá-la, só lhe ocorreu dizer a seu favor que o Alasca é o território mais próximo da Rússia... Atendendo a que foi escolhida para ser a vice de um eventual Presidente de 72 anos de idade, a sua ignorância e falta de experiência são um pouco assustadoras. E McCain? Curiosamente, a reacção do candidato republicano à crise na Geórgia, a sua ideia, de resto anterior, de que é preciso expulsar a Rússia do G8 por mau comportamento democrático, a sua defesa de uma Liga das Democracias que a maioria dos analistas vê como o melhor caminho para alienar qualquer possibilidade de gerir da melhor maneira a ascensão inevitável da China ou de controlar o regresso turbulento da Rússia, aproximam-no mais dos neocons que inspiraram o desastroso primeiro mandato de Bush do que do Presidente desta fase final. Como notavam os observadores em Washington, a reacção da Administração à crise do Cáucaso aproximou-se mais da prudência de Obama do que das espadeiradas de McCain, velho guerreiro da guerra fria.
Tudo isto seria interessante debater na corrida final para a Casa Branca. O problema é que Palin pode ter desviado o debate para a velha "guerra cultural", que é onde os estrategos de McCain a querem colocar como a única forma de desviar as atenções da esmagadora maioria de americanos que pensam que o país vai mal, tanto interna como externamente.
É urgente que Obama encontre rapidamente a forma de contrariar esta armadilha.
As primeiras reacções, muito pouco avisadas, de alguma imprensa e das elites liberais à escolha de Palin revelam que a resposta não é fácil. E a verdade é que, até agora, a máquina de propaganda republicana tem sido muito mais eficaz em transformar vícios em virtudes e virtudes em vícios do que a democrata. Jornalista