"Eleições legislativas representaram um recuo democrático para Angola"
Para o antigo membro do MPLA Justino Pinto de Andrade, os observadores falaram
em "avanço para a paz" porque pairava um medo de que a votação pudesse acabar mal
a O histórico do MPLA e reputado académico angolano Justino Pinto de Andrade entrou em ruptura com o partido no poder, há uns meses, já depois de uma primeira saída e de um regresso em 1997. Este ano, em pleno processo eleitoral, voltou a sair por não concordar com o caminho seguido pela liderança de José Eduardo dos Santos. Anunciou então o apoio a um pequeno partido da oposição, a Frente para a Democracia, à semelhança do que fez o seu irmão, também universitário, Vicente Pinto de Andrade (este sem abandonar o MPLA). Ontem, quando estava praticamente concluída a contagem dos votos das legislativas de 5 de Setembro (que confirma a vitória de quase 82 por cento para o MPLA e a saída de pequenos partidos da oposição da Assembleia, além de uma descida da UNITA para os 10,36 por cento dos votos), Justino Pinto de Andrade falou ao PÚBLICO por telefone. PÚBLICO - Como se explica uma vitória do MPLA com esta dimensão?
Justino Pinto de Andrade - A primeira razão é a fragilidade da oposição. Da UNITA, maior partido da oposição, e das outras oposições também fragilizadas. A UNITA porque foi um partido que perdeu a guerra, e nesse contexto arrastou um conjunto de pessoas suas apoiantes para um certo desencanto. Por outro lado, nas zonas que controlou [durante o conflito], a UNITA terá cometido erros de governação e exagerado na sua relação com as populações. Daí ter criado anticorpos nos seus bastiões tradicionais [como Huambo ou Benguela].
Mas a guerra terminou há mais de seis anos [em Abril de 2002] e a liderança do partido mudou com uma eleição em Congresso.
Mudou para uma liderança que não é carismática. Organizações muito populares, como a UNITA, vivem muito do carisma dos seus líderes. O presidente da UNITA, Isaías Samakuva, é uma pessoa muito educada e cordata, mas não inspira o ânimo e a esperança que Jonas Savimbi inspirava.
Do lado do MPLA, a vitória tem várias explicações. E a primeira é que, mesmo estando nós formalmente num sistema multipartidário, o MPLA funciona como um partido-Estado. Tem o domínio absoluto de todo o aparelho de Estado e faz questão de usar esse domínio de uma forma que não se coaduna com os valores e os princípios democráticos.
Mas pelo menos uma parte da vitória tem a ver com uma aceitação do MPLA enquanto partido do Governo?
Sim, o outro factor que explica esta vitória é estarmos num processo de reconstrução nacional que criou uma nova realidade. Os empreendimentos novos que estão a surgir fascinam as pessoas: novas estradas e estradas recuperadas, edifícios, pontes, aeroportos, todo um conjunto de infra-estruturas que estão a ser construídas e que passam uma imagem de competência. Além disso, o boom económico que se vive criou algum bem-estar junto de segmentos da população, minoritários é certo.
Sobretudo funcionários, pequenos e médios empresários, pessoas que não tinham rendimentos durante a guerra e que passaram a ter condições para o ter. Isso criou expectativas junto de outras pessoas de poderem vir também a beneficiar desse maior bem-estar. Mas há outro aspecto que explica estes resultados: o espectro da UNITA paira ainda sobre a nossa sociedade. As pessoas identificam a UNITA como um partido que pode causar problemas.
Essa ideia não foi também potenciada pelo discurso do MPLA que associou a necessidade de estabilidade a uma vitória sua?
Essa imagem de que a UNITA pode criar problemas existe, mas o MPLA contribuiu de facto para a consolidação dessa ideia. É um partido que procura sempre diabolizar os seus adversários.
Esse receio de que pudesse haver problemas pesou na declaração da missão de observadores da União Europeia quando esta disse segunda-feira que a votação representou um avanço democrático?
Pelo contrário, houve um recuo democrático. Em democracias normais não há 82 por cento para um partido. Mas a visão dos observadores internacionais teve apenas por base o receio de que um conflito pós-eleitoral pudesse eclodir como aconteceu recentemente no Zimbabwe e antes no Quénia. Basta a população votar e não haver violência para os observadores ficaram satisfeitos. Estes estavam debaixo de uma certa ansiedade e de um receio que o processo descambasse. Quando isso não aconteceu, fizeram uma avaliação positiva, embora não tanto como a da União Africana, que tem por hábito fazer a cobertura das irregularidades dos outros [países africanos].
Havia esse risco de violência?
De guerra não, mas poderia ter havido um conflito violento entre a população.
Isaías Samakuva aceitou entretanto a derrota perante o resultado, ainda não definitivo, de pouco mais de 10 por cento dos votos. Como vê esta derrota?
Foi um desastre. Penso que a UNITA tem de pensar na sua recuperação. Isso passa pela convocação de um congresso e pela decisão de Samakuva de colocar o cargo à disposição e não voltar a concorrer à presidência do partido, para dar início a uma outra fase da vida do partido. Samakuva desempenhou o seu papel. Trouxe o partido onde trouxe, mas não tem condições para poder relançá-lo.
Para os outros partidos, também foi um desastre... O que falhou?
A pouca implantação nas zonas rurais. Ficaram muito nos centros urbanos, esquecendo-se que cerca de 40 por cento do eleitorado vive nas zonas rurais. Mas também é verdade que o MPLA monopoliza esses meios e aí recorre à intimidação política.
Falou em recuo democrático. Como vai esse recuo revelar-se no futuro próximo?
O MPLA vai dominar totalmente a Assembleia, onde vai aprovar a Constituição que lhe interessa. Vai consolidar o seu domínio do aparelho de Estado e fazer com que muitas pessoas ligadas à UNITA passem para o MPLA.