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Não se deixa de ser quem se é. Manuel dos Santos Lima continua a ser o fundador do primeiro Exército de Angola. Kiluange Liberdade continua a ser africano. E Francisca Van Dunen tem de acreditar porque é uma Van Dunen. Três angolanos que não votaram. Por Alexandra Lucas Coelho
A bandeira de Manuel dos Santos Lima
Entre Castelo Branco e Idanha-a-Nova, bem dentro da planície beirã, três bandeiras vão subir neste céu de Setembro quase sem vento.
A do lado direito tem uma folha de plátano, Canadá. A do lado esquerdo tem um escudo, Portugal. A do meio tem uma roda dentada e uma catana, Angola.
Manuel dos Santos Lima, que viveu no Canadá e em Portugal sem nunca deixar de ser angolano, hasteia as bandeiras uma a uma, como faz todos os domingos. A do meio fica sempre a meia haste, e os beirões que passam perguntam porquê. "Estou de luto pelo meu país", responde ele.
Era um luto até haver eleições.
E portanto esta será a última manhã que a bandeira de Angola está a meia haste no jardim de Manuel dos Santos Lima. Amanhã, domingo, a roda dentada e a catana vão flutuar lá no cimo, pela primeira vez ao fim de 16 anos.
O voto deste angolano não estará dentro das urnas porque os angolanos no exterior não puderam votar, mas ele vive estas eleições com o sentido de Estado de um comandante.
Não se deixa de ser quem se foi.
Manuel dos Santos Lima transformou centenas de aspirantes-a-guerrilheiros em soldados de "código e farda". Continua a ser o fundador do primeiro exército de Angola. E aos 73 anos continua ágil, a saltar do jipe com um sorriso aberto até aos braços.
Vem buscar os visitantes para os conduzir até à quinta que foi erguendo com a sua segunda mulher, uma portuguesa de Abrantes.
Entre muitas plantas de sol e sombra, incluindo luxuriantes hortênsias, aqui vive desde que regressou de Angola, no começo deste ano, depois de ter sido reitor da Universidade Lusíada de Luanda.
Não se deixa de ser quem se foi e Manuel dos Santos Lima foi primeiro militar e depois homem de letras. Agora está a escrever O Buraco, uma tetralogia de romances que serão uma espécie de autobiografia.
Pelo lado do pai, descende de uma grande família são-tomense. "Metade da ilha de São Tomé é dos Lima", conta, sentado à sombra no jardim. O avô teve "40 e tal filhos", os tios "andavam pelos 30". Era assim.
Por "insubordinação", o pai foi enviado para Angola aos 19 anos. A metrópole vedava aos negros a maior parte das profissões e "a função pública era a única porta de saída". "O meu pai fez carreira dentro da maior injustiça como funcionário amanuense, podia ser posto fora com aviso de três meses. Foi assim durante 29 anos. Formou centenas de portugueses que depois foram chefes dele." Colocado no Bié, conheceu a mulher com quem veio a casar, filha de um líder local. "O meu avô materno era uma espécie de régulo em Qassamba e ia pagar o imposto à recebedoria de fazenda onde trabalhava o meu pai."
Qassamba é assim o primeiro cenário na memória de Manuel dos Santos Lima. "Voltei lá 69 anos depois de ter saído."
Na escola de Luau
O segundo cenário é Teixeira de Sousa, hoje Luau, novo posto do pai. Aí fez a primária, numa daquelas escolinhas com as classes juntas, "uma fila de carteiras por classe". Todos brancos menos ele.
"Fui o primeiro negro na escola do Luau. A entrada de negros era desencorajada. Queriam que fossem para a missão católica, não para a escola. Mas o meu pai disse: 'Não, o meu filho não vai para a missão católica.' Fez uma exposição ao governador."
E lá foi Manuel, que até hoje guarda "gratíssimas recordações da professora, uma portuguesa de Arouca".
Mas não tinha carteira.
"Só se abria escola em Angola quando havia uma população branca, ou filhos de brancos. Primeiro estavam os brancos, depois os mestiços, e para os negros não sobrava lugar. Eu vinha de casa com o meu banquinho e sentava-me lá num canto, com a pasta em cima dos joelhos. Só no último ano é que já havia uma carteirinha. Tive sorte, a professora gostava muito de mim, porque eu era bom aluno."
Aos dez anos, para fazer exame de quarta classe, teve que ir ao Bié. "Eram 800 quilómetros de comboio, e eu não podia comer no vagão-restaurante com os meus colegas. A desculpa era que o caminho de ferro era dos belgas, que não queriam negros." Comia sozinho, na cabine.
Sorri como um contador de histórias incríveis, e atalha, firmemente: "O racismo é um dogma de qualquer colonização. Não pode haver colonização sem racismo."
No exame eram 12 brancos ou mestiços e um negro, ele. "A minha vingança foi ser o primeiro classificado."
Era um tempo em que "só 0,9 por cento da população de Angola era branca". Hoje, "há 800 mil mestiços" em 12, 16 ou mais milhões, não se sabe bem, porque "em Angola se nasce, vive e morre anonimamente". E, por um instante, Manuel dos Santos Lima regressa ao presente: "Há fome actualmente, 85 por cento da população é pobre, 65 por cento vive com menos de um dólar. E neste mesmo país, na Avenida Marginal de Luanda, um T1 custa um milhão e 500 mil dólares."
Depois do exame da quarta classe, seguiu. "A minha professora foi ter com o meu pai: 'Mande o seu filho estudar.' E eu fiquei dois anos à espera que ele conseguisse mandar-me para Portugal. Teve que conseguir casa de gente são-tomense que me recebesse em Lisboa."
Não sentiu descriminação no Liceu Camões, mas era um fenómeno na rua. "As crianças rodeavam-me: 'Olha o preto da Guiné!' As senhoras beliscavam, davam um beijinho nos dedos e metiam no decote." Imita e ri-se. "Diziam que dava sorte. Ou então faziam: 'Atchim, preto!' Porque antigamente os escravos vinham com sacos de pimenta e quando passavam pela rua as pessoas espirravam."
No Camões só havia dois negros e depois, na Faculdade de Direito, eram três. "Sou da geração do Sá Carneiro, do Pinto Balsemão, do Jorge Sampaio..."
Mas ao segundo ano interrompeu. O pai, que lhe mandava metade do que ganhava, deixou de poder fazer trabalho extra, passou a ganhar menos, e Manuel foi dar explicações para viver. Também trabalhou como tradutor de francês na embaixada da então República Árabe Unida (Egipto e Síria) e entretanto veio o serviço militar.
"Fui o primeiro oficial negro do exército português. Portugal defendia que não tinha colónias, tinha províncias ultramarinas, mas não integrava negros porque teria que lhes dar posto de oficial se fossem universitários." Até que a União Indiana desafiou Portugal, por causa de Goa, e Lisboa viu-se forçada a integrar negros para não entrar em contradição.
O pedido de asilo
"Estive na Escola Prática de Infantaria, nos Comandos em Lamego", lembra Santos Lima. "E no exército nunca senti racismo. Há três anos o meu impedido apareceu-me aqui e abraçámo-nos a chorar. Em Lamego eu era o único negro e correu que os negros viam melhor. Fui 'namorado' por todos os capitães, que me ofereciam presuntos! Eram todos excelentes camaradas. E no entanto eu desertei. Porquê? Como dizia o [poeta Aimé] Césaire, 'era o momento'."
Foi anunciado que a sua companhia ia para Angola. "Era impensável ir fazer guerra colonial, ainda por cima contra angolanos, e esse sentimento era partilhado por muitos que nunca tinham posto o pé em África. À última hora dizem-me que afinal vou para Goa, mas isso não me fez desistir. Entrei em contacto com Mário Pinto de Andrade [primeiro líder do MPLA] e aconselharam-me Damasco, porque o avião fazia Lisboa-Damasco-Goa. Ficou tudo combinado para alguém das autoridades sírias me dar asilo." Mas o avião saiu com 12 horas de atraso. "Então cheguei às duas da manhã, pedi para falar com a autoridade, entreguei a pistola, 25 cartuchos e disse: 'Quero asilo.' Mas tive que esperar até às cinco da manhã que os ministros acordassem, e entretanto a ouvir o meu nome ser chamado no aeroporto."
O governo deu-lhe asilo, mas teve de esperar semanas até que o MPLA o levasse para Marrocos. "Tínhamos o apoio do rei Hassan II. Marcelino dos Santos e Mário de Andrade estavam à minha espera." Este último diz-lhe: "É preciso que vás rapidamente à Guiné-Conakri, para um encontro com Viriato da Cruz e Lúcio Lara." E o MPLA entrega-lhe uma missão. "Dizem-me: 'És o único militar, compete-te fazer o exército.' Fui o primeiro comandante-em-chefe do Exército Popular de Libertação de Angola, EPLA. Voltámos para Marrocos e Hassan II pôs à nossa disposição um campo militar. Mandámos vir uns 300 candidatos de Leopoldville [hoje, Kinshasa, capital da República Democrática do Congo]."
É então que se dá o encontro com Agostinho Neto. "Aparece em Rabat, levamo-lo ao campo de treino e ele assiste ao primeiro juramento de bandeira dos soldados. A cerimónia é bastante simbólica e ele sente-se ultrapassado. Mário de Andrade tinha-lhe passado a direcção política do MPLA em Leopoldville, mas naquele momento foi claro para todos que Neto não estava à altura. Enquanto estivera preso em Portugal, tínhamos medo que a PIDE o matasse e fez-se muita propaganda dele como líder. Desmentiu as esperanças. Mas com que cara nos íamos apresentar ao mundo a dizer que ele não servia depois de tanta propaganda?"
Viriato da Cruz deserta do MPLA e entra na FNLA de Holden Roberto. "Oferece-se ao inimigo, quando me tinha encomendado um plano de rapto ou liquidação física do Holden Roberto." Roberto, recorda Santos Lima, era "um bandido, com milhares de mortos na consciência, que queria matar todos os que sabiam ler e escrever porque tinham ideias portuguesas". Mas recusou eliminá-lo porque "não queria ter um crime na consciência". Tentou "ao máximo segurar o exército" mas depois pediu a demissão. "Disse que não reconhecia o Neto como líder e ele apressou-se a aceitar as minhas funções."
Deixando o MPLA, Manuel dos Santos Lima esteve na Suíça entre 1963 e 1968, onde retomou os estudos. Fez um doutoramento em Letras e passou 22 anos em Monréal, Canadá, como professor de literatura portuguesa e francesa. Também ensinou sete anos em Rennes, França, e em Lisboa.
"Tinha a cabeça a prémio em Angola. A minha fotografia tinha sido distribuída aos soldados portugueses."
E não conseguiu voltar logo após a independência. Os seus livros estavam proibidos com "o pretexto de que tinha que haver parecer favorável da parte do gabinete de leitura que era a censura do governo".
Quando voltou a Angola era Julho de 1977. A violência do 27 de Maio - milhares de pessoas mortas durante a repressão levada a cabo pelo MPLA de um contra-golpe protagonizado por Nito Alves - estava fresca.
"Fui porque o meu pai tinha adoecido, e arrisquei tudo para vê-lo. Havia um clima terrível. Em Luanda as pessoas suspeitavam de tudo, falavam em mais de 30 mil mortos, contavam histórias terríveis." A polícia secreta apreendeu-lhe o passaporte e interrogou-o. "Disseram-me: 'Agora ficas cá.' E eu jurei que nem que fosse a pé ia chegar à fronteira do Congo." Porque tinha a família - a portuguesa com quem casara em Marrocos, sua primeira mulher e mãe dos seus dois filhos - no Canadá. E foi com a ajuda de um angolano da polícia secreta, seu antigo subordinado do exército, que recuperou o passaporte.
Passaram 13 anos até pôr o pé em Angola novamente. "Porque apareceu uma delegação de angolanos em Rennes a pedir que eu fosse candidato." Neto morrera em 1979. Há muito que o presidente era Eduardo dos Santos. "Era preciso alguém que representasse outra Angola e em Lisboa criei o MUDAR, Movimento de Unidade Democrática Angolana para a Reconstrução. Tive dificuldades de toda a ordem para o legalizar, não era fácil conseguir dez mil assinaturas."
Mas estava determinado na paz. "Fui à Costa do Marfim falar com Savimbi, porque não podíamos excluir a UNITA. Propus-lhe que eles ficassem com a parte militar e o MPLA com a parte política, e pedi-lhe que jamais aceitasse um acordo de paz fora de Angola. Ele aceitou tudo e depois fez tudo ao contrário. Opôs-se à oposição democrática e assinou Alvor." A paz que não houve, porque o voto de 1992 resultou em recaída na violência. "Foi a guerra de dois ratos, MPLA e UNITA, para o queijo Angola."
Deixou o país e de novo esteve mais de uma década fora.
O que o fez regressar, em 2003, foi o seu filho Kalunga Lima, cineasta, querer "mergulhar nas raízes" e fazer um filme.
Manuel dos Santos Lima encontrou o centro do Bié "destruído, irreconhecível" e viu "cenas de fome" como "galinhas, cães, porcos e pessoas a revezarem-se no lixo, à procura de comida".
Não ia ao Bié desde 1945.
Depois, entre 2006 e 2008, aceitou ser reitor da Lusíada angolana. Conheceu "uma nova geração em busca de um canudo de qualquer maneira", o que incluía "meninas que se iam oferecer ao reitor, superdecotadas, algumas a dizer que se sentiam muito sozinhas". E encontrou estudantes que pareciam "acabrunhados, mas tinham simplesmente fome". Viveu "as dificuldades causadas pelo Ministério da Educação às universidades privadas". Só a Católica, "amparada pela Igreja, é forte".
Agora, nestes campos beirões, escreve O Buraco.
As eleições que se concluem hoje têm a "particularidade chocante de os angolanos no exterior não poderem votar", o que é "um castigo e reflecte o receio do MPLA quanto a esses votos". Mas representam o fim de um luto. E "seja qual for o resultado a bandeira subirá", a partir de amanhã.
Kiluange Liberdade na periferia
É nome de terra independente e de rei, Kiluange. E depois Liberdade, por causa do momento. Angola era país há um ano quando Kiluange Liberdade nasceu em Benguela, em 1976. Mãe do Huambo, pai de Luanda, ou seja, filho de umbundus e de quimbundus, não aprendeu nem uma nem outra língua. Como muitos angolanos da sua idade, sempre falou português e passou metade da sua vida em Portugal. Agora, aqui sentado num bar de um hotel na Avenida da Liberdade, tem a certeza de que é africano, mas durante muito tempo não teve. Cresceu com a mãe, enfermeira, e os irmãos em Luanda. O pai morreu quando ele tinha um ano, no 27 de Maio, "acusado de envolvimento na turbulência política". É um assunto de que Kiluange não quer falar: "Não sei se é verdade ou não, nada se provou."
Sendo o filho mais novo, passou muito tempo de infância no hospital onde a mãe trabalhava. Eram anos de combate, embora Kiluange recorde a guerra como "uma coisa abstracta, que não fazia parte da realidade dos mais novos em Luanda". É quando os irmãos mais velhos começam a aproximar-se do serviço militar que a família decide vir para Portugal, em 1987.
"Eu não percebia muito bem o que se estava a passar. Fui viver para a Buraca e depois para Chelas." O primeiro choque aconteceu ainda no avião. "Afinal Portugal também tinha musseques, víamos as barracas." Andaram por vários bairros até se fixarem na Caparica, onde a mãe encontrou trabalho.
Mas Kiluange estudou sempre em Lisboa, onde se licenciou em Gestão Cultural na Lusófona. Antes tinha aprendido cine-vídeo numa academia. Começou com a ideia de trabalhar em televisão e acabou com a ideia de trabalhar em cinema documental.
Pelo meio, voltou a Angola na altura das eleições de 92. Tinha ido com a ideia de ficar mas não se sentiu bem. "Achei que não tinha nada a ver com Angola nem com os outros países africanos. Não era verdade, mas era o que sentia."
Nova imagem
Ainda assim, em Lisboa acabou por se meter numa pós-graduação em Estudos Africanos no ISCTE, e antes de a terminar já estava a fazer documentários em Luanda, Maputo e São Tomé.
Com uma primeira obra sobre bairros periféricos ganhou um prémio no Festival da Malaposta, o que o levou a conhecer Joaquim Pinto, e depois Inês Gonçalves e Vasco Pimentel. Com estes dois últimos avançou então mais profundamente para as periferias e daí resultou o filme Outros Bairros, que esgotou a estreia na Culturgest e "podia ter enchido mais três salas com a multidão que ficou lá fora", lembra Kiluange. Nessa noite, o mundo dos suburbanos cruzou-se com o do ministro Carrilho.
Em 2003, uma viagem a Goa com Inês Gonçalves fez-lhe lembrar Luanda. E foi aí, quando os indianos que falavam português lhe começaram a perguntar muitas coisas, que Kiluange percebeu que alguns sabiam muito mais de Angola do que ele: "Estava na altura de assumir que era angolano."
"Quando regresso a Lisboa conheço o [escritor] Ondjaki. Ele era muito mais forte que eu no conhecimento de Angola e ajudou-me a compreender imensas coisas. As pessoas que normalmente não conhecem Angola facilmente criam imagens muito negativas. Concluímos que precisávamos de criar uma nova imagem. Que nos cabia a nós injectar a nova energia."
Com Inês Gonçalves, decidiram fazer o filme Oxalá Cresçam Pitangas, durante o qual Kiluange mergulhou no mundo dos musseques de Luanda.
"É aí que encontramos múltiplas Luandas. Um irmão meu vive lá há imenso tempo e eu acredito que essa é uma realidade que lhe escapa completamente, escapa à classe média. Há gente que vive no musseque porque gosta de viver no musseque. O que pensamos ser pobreza do ponto de vista ocidental por vezes não é. Há pessoas que movimentam dois mil dólares mensais. O universo da música, por exemplo, é um mercado paralelo que sustenta famílias inteiras. As músicas são gravadas e comercializadas informalmente. Depois, temos o negócio dos táxis, os candongueiros, que são a grande rede de transportes. Depois há cantinas que se montam nos bairros onde as pessoas podem ir beber e comer. Isso cria uma dinâmica social e económica em Angola. Esta é a realidade da periferia." Kiluange veio de lá há pouco mais de uma semana.
É preciso acreditar
Traz fresco o ambiente pré-eleições. "Há meses eu tinha uma posição céptica. Mas os angolanos sabem muito bem por onde caminham e não se pode ter uma posição paternalista. É preciso chegar, observar, conversar, ouvir antes de ter opinião."
E o que sente já não é tão céptico. "É importante acreditarmos. Angola precisa de estabilidade, independentemente de quem possa ter mais sucesso nas eleições. Economicamente está a fazer um esforço muito grande para se erguer, e qualquer problema que venha travar esse esforço é como se a população deixasse de acreditar." E o sentimento geral é acreditar, crê Kiluange. "Ser angolano está na moda, na periferia e no centro."
Esta última ida a Angola tem a ver com o seu projecto actual, também com Inês Gonçalves, justamente sobre o mercado paralelo de música.
"Os angolanos estão a viver um momento de expectativa muito forte, entre esperança e dúvida. Discute-se na rua, com críticas e apoios, abertamente. Há toda uma camada social, nos bairros e no centro, que pela primeira vez tem uma discussão política." Medo? "Não senti medo. Tenho escutado que na província têm medo, mas isso vai levar algum tempo a mudar."
Entretanto, numa das idas a Maputo, Kiluange apaixonou-se por uma moçambicana com quem casou. Agora Moçambique integra o seu mapa de africano firme, que é como ele se sente. "Não temos alternativa, temos mesmo que acreditar, e mais tarde vamos ver."
O que há, está certo, é "uma criatividade muito alta" que tem a idade de Angola, ou metade disso.
A herança de Francisca
Van Dunen
Podia ser irmã deste matulão que acaba de meter a chave à porta. "Entra, filho", diz Francisca Van Dunen, voz velada, sempre suave. E João Ernesto "Che" Van Dunen entra, 1.98 pelo corredor fora, desaparecendo rapidamente. Não é filho, é sobrinho. "Mas tem idade para ser meu filho, sim", sorri ela, que vai fazer 53 anos.
Não se acredita, mesmo com a cara iluminada por um projector e ao fim de um dia de trabalho. E não é um trabalho leve, como se verá adiante, num vetusto edifício do Estado português.
Mas por enquanto esta é a casa de Francisca Van Dunen, junto à Avenida da Liberdade. Aqui uma cave, em recuperação, lá em cima um primeiro andar de salas contíguas e grande corredor. E o que este mundo doméstico revela é uma elegância antiga, aromática, com soalhos reluzentes, contraluzes, retratos de família, algo de há muitas gerações e algo de agora.
Nada parece estar a mais. É o ruidoso centro de Lisboa mas a cidade está muito longe.
Francisca nasceu em Luanda, mas foi para Novo Redondo com um ano. "As minhas primeiras imagens são de uma pequena cidade em estado permanente de felicidade, com uma casa grande, cinco irmãos, uma mãe com disponibilidade inteira, um pai que trabalhava do outro lado da pracinha. Eu ia às 10h levar-lhe o lanche e depois outra vez às 16h. Íamos ao rio Kwanza ver as lavadeiras, fazia-se roupa à estação...."
O pai, escrivão de Direito, fora colocado lá. "Era uma pessoa inconformada, com grande consciência social."
Filho do jornalista Manuel Pereira dos Santos Van Dunen, "jornalista polémico e polemista", um avô que Francisca tem como figura tutelar, mesmo sem o ter conhecido.
"Era a rectidão, o aprumo, a dignidade. E uma pessoa muito bonita. Esteve deportado pelo Norton de Matos em Cabinda uns anos. Escreveu no Angolense contra os abusos de militares portugueses a prostitutas. E a minha avó, Mary Vieira Dias, acompanhou-o sempre muito, na deportação, com as filhas. Era uma mulher muito culta. O meu tio José queria que todas as meninas da família aprendessem a tocar piano e dizia que a mãe nunca deixou de tocar, nem a caminho da deportação. No barco pediu para lhe abrirem o piano, quando recusaram o meu avô gritou que o abrissem e ela tocou toda a viagem. Ajudou a criar uma normalidade."
Foi com estas histórias que Francisca cresceu. Quando o pai foi transferido para Luanda ela tinha cinco anos. Até aos 17 viverá na rua João das Regras, bairro de São Paulo. "É a minha segunda pátria." Casinhas e jardins, classe média branca. Os Van Dunen eram uma excepção.
E, tal como em Novo Redondo, era uma casa aberta, "onde almoçava e jantava muita gente, muita gente se encontrava", e ela era a mais nova. "Bebi da vida de todos os meus irmãos."
Na escola, foi a única negra da turma e na aula de religião e moral ouviu uma freira explicar que os pretos eram pretos porque o diabo os deixara tempo demais no forno. "Era uma criatura inqualificável, obrigou uma colega judia a baptizar-se. Mas tive professores excelentes."
Todas as esperanças
Aos 17 anos, Francisca veio para Portugal estudar. Nessa altura já tinha o seu irmão José preso em São Nicolau por fazer parte do MPLA.
Detestou Lisboa, que lhe pareceu uma cidade "cinzenta e velha, "com pingos em permanência", por oposição a Luanda, que então era uma cidade "rasgada, em progresso, aberta ao mar" .
Pouco depois aconteceu o 25 de Abril e em Julho ela voltou a Luanda. Viu os presos políticos chegarem, incluindo o irmão. "O ambiente era de entusiasmo geral." Em 1975, na véspera da independência, estava a varrer as ruas. "Todas as pessoas fizeram todo o tipo de trabalho. Lambi muito pó e na noite da independência estava tão cansada que me deitei às 10h30 e só acordei no dia seguinte. Foi o grande período das nossas vidas, de todas as esperanças."
Ela tinha 20 anos e "um amor desmedido por aquela terra". Não queria voltar a Lisboa. Lisboa era a imagem da colonização. Mas a família insistiu que continuasse o curso de Direito. Voltou para "estudar com sofreguidão". Acabou em 1977.
E esse é o ano do 27 de Maio, em que, entre milhares, morreram os seus. "O meu irmão [José Van Dunen], a minha cunhada [Sita Vales] e grande parte dos amigos foram presos e acusados de conspirar contra o regime." E as coisas não eram como na Justiça em que ela acreditara desde a escola. "Não evitou que fossem massacrados. Não era como no Direito."
João Ernesto "Che" Van Dunen tinha meses quando os pais morreram. É ele o matulão a quem Francisca chama filho.
Os avós trouxeram-no para Portugal e Francisca veio com eles. Começou a trabalhar como monitora na Faculdade de Direito de Lisboa.
"Durante 20 anos não consegui pôr os pés em Angola. Não fui capaz de me confrontar com um espaço com o qual tenho uma relação afectiva tão forte e onde me tinha acontecido um mal tão grande. É como ser morto pela própria mãe."
Quando voltou, em 1997, foi em serviço, com o Procurador-Geral da República, já magistrada de carreira, cidadã portuguesa e angolana. E na semana antes da viagem descobriu que estava grávida do seu único filho biológico, que tem agora dez anos. "Então achei que num certo sentido era um reencontro com o destino."
Cumpriu os deveres oficiais, e depois foi deitar flores ao mar, na marginal de Luanda. "Percebi que não me tinham conseguido roubar aquele espaço físico, que tinha uma função identitária. Isso reconciliou-me. Assegurou-me que eu existia. Porque há momentos em que não sabemos se existimos ou se somos um fantasma, como quando nos roubam as nossas fotos de infância. Roubaram tudo de casa dos meus pais." No 27 de Maio.
O impacto desse tempo traumático, ainda cheio de interditos, é tal que Francisca diz: "A maior parte das pessoas da minha geração, da minha convivência social, morreu em Maio."
Mas na manhã seguinte a esta conversa, no seu gabinete de Procuradora-distrital de Lisboa, depois de mostrar a fotografia do avô garbosíssimo, dirá: "Por muito que se diga que não basta fazer eleições, deu-se um grande passo de aproximação à democracia."
Di-lo porque acha que tem de acreditar. E essa é também a sua herança Van Dunen. "Nós temos obrigações, não podemos usar um nome e esquecer que por trás dele há uma história. Se os Van Dunen Vieira Dias vierem a ter lugares de direcção em Angola, exijo que se comportem com os canônes da tradição familiar."
E isso significa, numa Luanda que nas suas recentes visitas lhe foi parecendo cada vez mais uma "cidade murada", "impiedosa", ser solidário.
Até se reformar não planeia viver em Angola, mas depois gostava "de contribuir para a recuperação de Luanda". Essa é uma das suas certezas.
A outra é que não ajuda dizer: "Eles não são capazes."
Agora, é preciso dizer: "Eles têm de ser capazes."
augiat ad min ecte modionse dunt nullam ing eraese molute facidunt nulput lutpatet velit, sis aliqui blaortisl dit lut autet, quat.
Henim dipsum quamconse veliquat ut la autpat er summy nit num ea adit velese diat nullaor sequisisl ea feu facipit, vulputat ad diatuer sumsan volore minim zzrit acin velenit dunt ute cor sequisl eum ing ea adiamet la feummolorem dolore delit adiam velenia mconsequam, conum ing endrem quam dolendit wisim et lum aliquam consequissi.
Vulla feum velis dolobortin ut wissi elisl iustis dolut lan veliqui eraesto conulpu tatummy nim alis er aliquat at. Pero dio dolessi.
Atisl dolobor perosto essis do dolestio odiam, quate tem ing ectem aliquam iriusto consequatuer sim delessequat aliquat nibh el utat, quamcon ullam, c
Título nível d
onse ex eraessed eliquisis aute magnis accum zzril eumsan henit veril utatet, vercidunt ex endio exer in henis nis nulputat.Luptationsed tat ent aliquam, con hent praese dit acilism odolore magna am deliquate magnisit augiam quatummolum do consenisis at, si blaor sed doluptat. Duisl iustrud te facilit, quat, veliquam vendre ex et la feum vel