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Ruy Castro: Tudo por Carmen

Agosto, mês em que se celebrou a bossa nova, foi também aquele em que morreu Carmen Miranda. Ruy Castro, o seu melhor biógrafo, fala dela como "a grande libertadora da música brasileira". Sem ela, diz, nem as cantoras da bossa teriam existido.

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Ele não dirá, como disse Flaubert da sua madame Bovary, "Carmen sou eu". Mas houve momentos em que a vida de Carmen Miranda se embrenhou de tal modo na sua que se tornou para ele uma obsessão. Ruy Castro, jornalista, escritor, autor já de 22 livros (três deles editados em Portugal), teve em Carmen a sua obra de maior fôlego. "No género biografia não acredito que consigam fazer melhor", diz ele, sem falsa modéstia. Desde a edição de Carmen, em 2005 (em Portugal saiu em 2007, pela Palavra, que proporcionou esta entrevista), já viu editados outros livros seus: Rio Bossa Nova: um Roteiro Lítero-Musical (2006), as colectâneas de textos jornalísticos Tempestade de Ritmos (2007) e Ungáua! (2008) e a obra de ficção Era no Tempo do Rei (2007, editado recentemente em Portugal pela Asa).

Nascido em Caratinga, Mato Grosso, em 1948, Ruy Castro vive no Leblon, naquela que é a sua cidade escolhida, o Rio de Janeiro (tem até o título de cidadão benemérito). Nas suas estantes há 4 mil livros sobre o Rio e é neles que mergulha profundamente quando precisa de escrever um novo texto, outro livro. As 600 páginas sobre Carmen Miranda (1909-1955) foram, já se disse, uma obsessão. "É quase inevitável o envolvimento emocional entre o biógrafo e o biografado. Pela minha maneira de trabalhar, chega a ser uma coisa que até me incomoda e incomoda as pessoas em volta de mim. A Heloísa [Seixas, sua mulher, romancista, contista e cronista] sabe melhor do que ninguém. Eu torno-me uma pessoa absolutamente insuportável porque no processo de trabalho, de investigação em torno da vida daquela pessoa, não consigo pensar em mais nada. Isso passa a ser dominante na minha cabeça, na minha vida. Cancelo toda a espécie de vida social, por absoluto desinteresse do que está acontecendo à minha volta."

Antes de Carmen, Ruy Castro já tinha assinado biografias do dramaturgo, jornalista e escritor Nélson Rodrigues (O Anjo Pornográfico, 1992) e do jogador de futebol Garrincha (Estrela Solitária, 1995), além do mais completo livro sobre a bossa nova jamais escrito, Chega de Saudade (1990), já várias vezes reeditado. Começou a pesquisa em 1988 e não mais parou. Em todos os livros, há coisas que o surpreendem. "Aliás", diz ele, "a graça da coisa está exactamente nisso. Trabalhar num universo que pensamos conhecer e descobrir, aos poucos, que não conhecíamos 50 por cento dele, como pensávamos, nem 30, talvez até nem dez. Principalmente, descobrir aquela informação da qual não se tinha a menor ideia e que de repente promove o sentido geral do que estudamos. No caso, por exemplo, de Ela É Carioca [uma enciclopédia completíssima de Ipanema e dos seus personagens], eu estava já há ano e meio naquele universo quando alguém me chamou à atenção para uma coisa de que eu não me tinha dado conta: a quantidade de estrangeiros em Ipanema. Franceses, alemães, tudo. Já no caso do Garrincha, foi uma descoberta minha: o facto de a família dele descender de indígenas, não de negros. Isso deu novo sentido à vida do Garrincha."

Figura dominante
No caso de Carmen Miranda, ele diz que a surpresa foi a Lapa. "Um facto ignorado por toda a gente que escreveu sobre ela, ninguém lhe deu a menor importância. Existe no Rio a Travessa do Comércio, onde a Carmen morou de 1926 até 1931 e, na cabeça das pessoas, ela sempre morou ali. Mas eu tive acesso às certidões de nascimento todas e pude fazer toda a sequência dos endereços. Na Lapa nasceu a irmã mais velha, Aurora, e eles passaram dez anos lá, de 1916 a 1926. A Carmen viveu lá dos 6 aos 16 anos, um período tão importante na vida, na formação mental, psicológica e emocional de uma pessoa. A Carmen e a Lapa foram rigorosamente contemporâneas, simétricas. A Lapa, um bairro profundamente católico, conservador, careta mesmo, durante o dia, e à noite o centro da boémia. A Carmen era isso, na vida. Uma garota portuguesa, católica, que também era uma garota brasileira cosmopolita e misturava tudo de repente."


Ruy Castro desmistifica também a ideia errada de que Carmen teria sido dominada pela máquina do sucesso, porque tudo nas suas buscas indicam que ela esteve sempre no comando. "Se não houvesse uma figura tão dominante como ela, talvez a indústria do disco não se tivesse tornado tão forte ou o rádio tão importante. Ela já era tão maior, desde o começo, do que os vários veículos, que nem tinha quem pudesse orientá-la: faz isso, faz aquilo. Ao contrário, era ela que sabia das coisas. O Joaquim Rola, dono do casino da Urca, que era de terceira categoria, tentou contratá-la para ser exclusiva lá. Ela disse: tudo bem, quero 70 contos. 'Não posso pagar isso', disse ele. 'Pode sim, dinheiro de casino é dinheiro achado na rua, eu vou dar dois shows por noite durante 30 dias, não vou repetir o vestido uma única vez, as mulheres virão me ver e trarão os seus maridos...' Quer dizer, era ela ensinando o métier ao dono do casino."

Coisa malandra, jocosa
Nascida em 1909 em Marco de Canavezes e criada entre portugueses, a primeira música que Carmen cantou foi um fado. "Mas houve um natural desaguar na cultura carioca e brasileira", diz Castro e, moldada pela Lapa carioca, Carmen tornou-se uma cantora feita aos 20 anos. "Ela era uma cantora da língua portuguesa, dominava-a como ninguém, dava inflexões, interpretações, absolutamente sem comparação a nenhuma outra. Todas as que vieram depois dela no Brasil, em 1930, foram suas imitadoras. Mas nos Estados Unidos isso era impossível. Ela teria que fazer qualquer coisa não com a língua mas em relação ao seu corpo, à indumentária. E tornar-se uma comediante de palco e de cinema. Ninguém a mandou fazer isso, foi ela própria que sacou."  Nas suas pesquisas, Ruy Castro consultou centenas de fontes e diz que "as melhores são as pessoas que não ficaram famosas, que conviveram com o personagem mas que são desconhecidas, que ficaram pobres". Mas é preciso muita atenção e empenho para evitar enganos e contornar falsas pistas. "Nalguns casos as pessoas enganam-se, com boa fé total. Uma senhora do Rio, com quase 90 anos, descreveu-me com detalhes riquíssimos o casamento da Carmen na Urca. Deixei ela falar e, no fim, disse-lhe que Carmen se casara nos Estados Unidos. Quem se casou na Urca foi Aurora Miranda, irmã. Na cabeça dela estava tudo correcto. Tudo, menos o protagonista."

Na bossa nova, a herança de Carmen teve também forte peso, segundo Ruy Castro. "Todas as cantoras brasileiras de bossa foram, directa ou indirectamente, influenciadas por Carmen", escreveu ele num dos vários discos que compilou para a EMI, uma série intitulada Ruy Castro apresenta Carmen. De viva voz, acrescenta: "Se não tivesse havido Carmen Miranda, não teria havido Aracy de Almeida, Emilinha Borba, Marlene, Dircinha Batista, Ângela Maria, Rita Lee, Ivete Sangalo, Daniela Mercury. Foi a grande libertadora da música brasileira, na verdade." Mas é a sua ida para os Estados Unidos que irá fixá-la na história do século XX. "Ela tornou-se um ícone muito em função da sua carreira americana, de ser reduzida a um cacho de bananas. A vergonha é que o Brasil também só conheça essa mulher do cacho de bananas, em technicolor, quando a Carmen Miranda foi em primeiro lugar uma grande artista brasileira, em preto e branco mesmo. Era como se fosse a alma brasileira, uma coisa malandra, jocosa."

"Como é que eu consigo produzir tanto, Helô?", pergunta Ruy Castro à mulher. "Você não pára de trabalhar", responde ela, com um sorriso nos lábios. Pois bem: 22 livros até à data, três colunas semanais para a página 2 do jornal Folha de São Paulo (sobre o que ele quiser escrever), mais uma coluna electrónica diária no canal de televisão Band News. Tem milhares de pastas, milhões de notas, resultado de quatro décadas a escrever em jornais. "Comecei com 19 anos. Quando eu não tinha idade para ter opinião sobre nada, já era pago para dar a minha opinião sobre tudo." Aos poucos, essa memória está a ser recuperada em livros de antologias temáticas. Começou com cinema e música, há-de continuar com literatura e polémicas, tudo do seu acervo. É a mulher, Heloísa Seixas, que faz a primeira escolha. Ele revê os textos e faz o resto. Em Junho saiu Ungáua!, colectânea de crónicas publicadas na Folha de São Paulo.

A biografia de Carmen Miranda teve, neste contexto, uma história bastante atribulada. "Em Dezembro de 2004 decidi começar a escrever o livro, depois de cinco anos de pesquisas. Quando cheguei a Janeiro de 2005, diagnosticaram-me um cancro na base da língua. Aí, a primeira frase que me veio à cabeça foi: 'Vou atrasar o livro da Carmen.' Fiz 93 aplicações de radioterapia, quase 30 horas de quimio e uma cirurgia de quatro horas. Isso durante o ano de 2005 e enquanto escrevi o livro. Depois o livro saiu, ficou pronto, teve um lançamento lindo e o meu cirurgião disse-me: esse tratamento que você fez, levaria um ano só para fazê-lo; o livro, que eu acabei de ler, levaria um ano também para escrever. Você fez as duas coisas no mesmo ano. Como é que você conseguiu?"
Heloísa já respondeu por ele: "Não pára de trabalhar." E é verdade. Tanto, que arriscou mais uma vez a vida nesse atropelo imparável. "Quem sai de um processo desses tem o primeiro confronto com a possibilidade da morte. Posso morrer de um ano para o outro? Pensei: falta muita coisa p'ra fazer, por isso vamos fazer logo. Comecei a trabalhar de mais e, pof!, tive um enfarte. Uma coisa muito ligeira mas saiu nos jornais, porque eu estava fazendo o lançamento de um livro. As pessoas compadecem-se, mas não sabem que o coração não foi nada, o grave foi o cancro." Resistiu aos dois, com um sorriso.

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