O Porto tem uma nova maternidade... de artistas
Antiga Fábrica Social, pioneira na filantropia, deu lugar à Fundação José Rodrigues, um espaço de diálogo entre artistas e comunidade
A Foi há quatro ou cinco anos que o escultor José Rodrigues se viu obrigado a tomar uma decisão, pressionado pelo banco: ou saía do seu atelier, instalado nas ruínas da Fábrica Social, ou comprava todo o edifício. Ficou-se pela segunda hipótese, e o banco, "com a cantiga do judeu", também facilitou o pagamento do imóvel e o restauro, que foi feito com "o dinheiro de 70 anos de trabalho" do escultor. José Rodrigues empenhou-se em transformar o edifício decrépito numa "maternidade para a revelação". O próprio significado da palavra - "fábrica, sítio onde se produz, maternidade, onde a revelação acontece" - impeliu-o a levar avante o seu projecto e a desbravar os cinco mil metros quadrados das ruínas da Fábrica Social, povoadas por "quase 100 anos de plásticos, papéis e caixas"."Isto tinha muito lixo, mas tinha também uma poética escondida, uma história por revelar", diz José Rodrigues, que não consegue - nem quer - esconder o afecto que tem por este lugar, que vê quase como "um filho". "É pai e filho, é mãe também". Mãe de novos artistas. O projecto é abrigar uma série de jovens e dar-lhes condições para levarem os seus projectos avante. "Queremos chamar gente nova, a quem vamos dar condições para se poderem exprimir", explica.
"Um corpo estranho"
A Fábrica Social ergue-se ao cimo de uma rua íngreme - próxima da movimentada Rua de Santa Catarina -, com o mesmo nome, pavimentada de pedras gastas. Algumas das casas que dão para a viela já não têm vidros nas janelas, só cortinas esburacadas e detritos lá dentro. E há também uma escola, com as paredes coloridas a descascar. A Fábrica Social/Fundação José Rodrigues é como um gigante, toda pintada de branco, atrás dos seus portões altos, verdes, no meio deste bairro "muito degradado, com a população muito velha". A relação com os habitantes do lugar foi "agressiva" de início: um confronto entre "um corpo estranho" e os moradores "quase em pré-
-demissão da vida", conta o escultor. Mas "onde a miséria é grande, basta pintar tudo de branco e fica um palácio. Ficaram encantados. Vêm cá ver exposições, a porta está aberta e nem é preciso convidá-
-los".
Mas o que há dentro desta fábrica/fundação, afinal? Por enquanto, há ateliers, oficinas, galerias, salas de exposições, um espaço multiusos, um café/restaurante e uns quantos artistas lá alojados: dois arquitectos, uma restauradora, uma escultora e uma empresa de design gráfico. Mas ainda só metade dos edifícios foi recuperada. Virão mais ateliers, com espaço para a dança e para o teatro, uma pequena loja e também cursos orientados de desenho e fotografia. José Rodrigues resume: "É um espaço brutal, isto".
"Isto" - juntamente com o Convento de San Payo, em Vila Nova de Cerveira, também propriedade do escultor - é também uma espécie de armazém privado. "Serve para guardar as minhas coisas", numa tentativa de superar a falta de afecto que se sente hoje, no Porto e no país, desabafa. "A afectividade está a ser riscada do dicionário, já não há afectividade em nada; hoje as provas de solidariedade têm um ar de pré-
-história". Nas "salas de afectos" da fundação, José Rodrigues expõe a sua colecção particular, que inclui peças de artistas como Almada Negreiros, Augusto Gomes e Sousa Pinto.
Alguns espaços podem ser cedidos e os ateliers são alugados - o preço ronda os 400 ou 600 euros mensais -, mas não estão disponíveis em nenhuma imobiliária. Tem de ser por convite do escultor ou por apresentação dos projectos a um júri informal. "Antes, fazemos sempre uma entrevista, com um júri ad hoc, não é rigoroso. Eles [os candidatos] explicam os projectos, que muitas vezes são de vida", explica o escultor, que resume o perfil pretendido: "Não quero ser guia, mas é bom que eles saibam que aqui não podem fazer bordados nem cinzeiros. Queremos gente com curiosidade. É o requisito principal".
De Roma para o Porto
A directora artística da fundação, Ilda Nunes, reconhece que trabalhar na Fábrica Social é muito mais do que estar num sítio com condições. É fazer parte de um projecto. E ter a Fundação José Rodrigues na morada de trabalho "é qualquer coisa". Trabalha num dos ateliers desde Janeiro, por convite de José Rodrigues, como restauradora de arte. Foi a única portuguesa envolvida no restauro da Capela Sistina. Estava a trabalhar num banco há ano e meio, quando ganhou um concurso para uma obra em Ponte de Lima. "O trabalho durou quase um ano. Despedi-me e montei um atelier em casa, em Famalicão", conta Ilda Nunes. E depois ganhou uma "grande afinidade" com José Rodrigues - ou "mestre", como lhe chama -, e recebeu o convite para se mudar para um atelier na fundação, e mais tarde para ser directora artística. "É muito bom ter sido convidada para um projecto nesta fase, porque aqui tenho pano para mangas, tenho responsabilidade", refere.
Um destino que o empurra
Essa responsabilidade é, entre outras coisas, fazer com que a ideia do mestre "não fique só no papel", e essa ideia é "chamar muita gente, jovens que procuram espaços, dar possibilidade de realizar esses sonhos", explica Ilda Nunes, que sublinha que José Rodrigues "sempre lutou por apoiar os jovens". Esse interesse nos novos artistas manifesta-se na vontade do escultor de "arranjar bolsas para jovens" e num desejo que acalenta: "Gostaria imenso que a câmara municipal fizesse encomendas [aos artistas da fundação]".
Mas o conceito central da Fábrica é o diálogo entre artistas. "Normalmente pintores só falam com pintores,", explica Ilda Nunes, "escultores só falam com escultores; ele [José Rodrigues] quer que isso acabe".
Embora José Rodrigues fale da inauguração da fundação com alguma relutância - "Não quero tapete vermelho. Isto vai criar raízes devagarinho, e um dia destes dão conta e está aqui uma floresta" -, Ilda Nunes garante que a Fábrica Social/Fundação José Rodrigues será oficialmente inaugurada "no fim de Outubro ou em Novembro". Para a directora artística, o projecto ainda "está em fase de experiência", mas está "a andar de forma notável", uma vez que já foi palco de vários eventos.
Mais do que um projecto de vida, a fundação é a "continuação" da vida do escultor. Prova disso é a sua casa, que faz parte dos edifícios e cuja porta dá para o pátio da Fábrica. "Passei a vida a fazer isto, falhei aqui, falhei acolá, acertei aqui, acertei acolá - conta - e esta agora é mais uma tentativa. Fazer uma coisa de que não sei bem qual é a definição, nem quero, não quero definir nada. Definir é matar." É um dos projectos que surgiram do "destino", que o empurra - "não sei se para o precipício, mas que empurra, empurra". Rodrigues fala de algo que lhe disse um dia Agostinho da Silva, "um homem que ensinou muito a Portugal, que ensinou a estar sem pensar. 'Não faças muitos projectos' - dizia-me ele -, 'para não atrapalharem os projectos que o destino já marcou. É só estar atento e, quando surgir, é pegar no barco e avançar'". Foi o que fez.