As 114 mulheres-espelho de Abbas Kiarostami
O realizador filmou 113 actrizes iranianas e uma francesa a olharem para um espectáculo.
E fez do rosto delas o espelho dos espectadores do seu filme, o fabuloso Shirin
a Douglas Gordon, "artista visual", membro do júri do concurso desta edição, descreveu assim a sua experiência de ver um filme (ele, que vem de fora do cinema): "É como uma série de pequenas explosões que se dão naquela caixa negra, e do que se trata depois de apanhar os pedaços" e cumprir com eles uma certa ordem. A definição de Gordon incrivelmente romântica é justa para descrever aquilo por que estamos a passar: que ainda estamos a ordenar os pedaços das pequenas explosões que se deram durante a projecção de Shirin, o filme, radicalmente romântico, de Abbas Kiarostami (exibido fora de competição). Radicalmente romântico e, por que não dizê-lo, mais próximo do mundo de onde vem Douglas Gordon, "artista visual", do que do clássico mundo do cinema. Se é que isso ainda existe.
Podemos começar por aqui ao tentar dar ordem a estes pedaços: para o cineasta iraniano, não há nenhuma forma de espectáculo sem público; mesmo no futebol, ele interessa-se mais pela reacção dos espectadores do que pela partida dentro do campo. Gosta de ver as pessoas a verem, isso, voyeurismo assumido, o que não é novidade para quem conheça a obra do iraniano. Em Shirin, há 114 espectadores - correcção: 114 espectadoras - encontrados entre actrizes iranianas de várias gerações (com a intromissão no meio delas de uma actriz europeia, Juliette Binoche). Kiarostami sentou-as numa sala de espectáculos, observou-as, durante hora e meia: os rostos delas enquanto elas reagiam ao que se passava fora de campo, num palco, onde era representado um poema persa do século XII, A História de Khosrow e Shirim, sobre os amores de uma princesa arménia pelo rei da Pérsia e sobre o triângulo amoroso que se forma quando Shirin conhece Farhad.
Império do feminino
Shirin: hora e meia de dramas, traições e império do feminino apenas com rostos de actrizes e as vozes que lêem o texto, procedimento quase tão minimal como o de Branca de Neve, de João César Monteiro, que também foi visto aqui em Veneza e que fez igualmente muitos espectadores desistirem da experiência. Os que se deixaram subjugar ficaram frente a uma caixa de ressonância onde a fantasia e a nossa memória de espectadores daquelas espectadoras foi alimentada, excitada.
Mas todos juntos e todos sozinhos: como diz Abbas Kiarostami, "entramos juntos numa sala de cinema, mas cada um vê o filme sozinho". E, como sempre em Kisarostami, várias camadas a sobreporem-se, textura vertiginosa para além da aparente simplicidade do que se vê (mesmo a proximidade da obra inicial do realizador ao "neo-realismo" italiano escondia algo que se foi revelando: construções em mise en abime, trabalho perverso com os actores, sobretudo com actores que não eram actores, consciência muito aguda das transferências que se dão numa sala de cinema).
Filmado em alta definição, Shirin faz várias coisas de uma vez só: homenageia actrizes - toda uma história do cinema iraniano que Kiarostami passa em revista; pinta o seu retrato de senhora (multiplicado por 114); expõe em primeiro plano a mulher iraniana, dá-lhe protagonismo, pathos, faz os homens subjugarem-se à volta dela (os homens são figurantes na sala de espectáculos que conseguimos descobrir atrás dos rostos das actrizes); mergulha-nos na emoção e, simultaneamente, tira-nos dela para termos consciência dos mecanismos que utilizamos. Mas como é que fez? O que é que aquelas 114 actrizes viam enquanto choravam, riam, sorriam, desviavam o olhar?
Nada. Isso mesmo, nada.
"As actrizes não estavam a ver nada. Tinham apenas uma indicação numa folha, com três pontos marcados para onde deviam olhar", explicou ontem Kiarostami e esperávamos mesmo uma explicação destas. "Cada uma teve direito a cinco minutos", continuou (Binoche estava de férias em Teerão e aceitou participar). "Pedi-lhes que se lembrassem de algum filme que tivessem visto, ou que pensassem em algum momento de alegria, de tristeza, que fizessem a sua própria viagem emocional. Cada uma pensou, fez o seu trabalho de memória. Foi isso que filmámos. Só depois é que juntámos o texto, a história que se ouve declamada em som, e fizemos a montagem. Esse processo de montagem durou seis meses. Como são actrizes, pode-se pensar que elas estão a interpretar emoções. Mas o que me interessou, e foram esses pedaços que escolhi montar, foram os momentos privados de cada uma delas, a viagem pessoal de cada uma, foi esse o fascínio para mim."