Sobrou nostalgia, mas faltou rasgo no piano de Wim Mertens
Wim Mertens é flamengo, mas não parece. Depois de um início de carreira, nos primeiros anos da década de 80, marcado por um minimalismo à la Philip Glass ou Steve Reich, o músico foi derivando para uma abordagem mais classicista, romântica, até mediterrânica. Talvez isso explique a popularidade do pianista em Portugal, onde já actuou inúmeras vezes. Nesta ocasião, coube-lhe fechar o ciclo Cerveira ao Piano, onde sucedeu a José Cid e Jorge Palma (um cartaz eclético, no mínimo).Num anfiteatro improvisado ao ar livre, Mertens evitou um alinhamento em formato best of, privilegiando ao invés o seu disco de originais mais recente, Receptacle, em que o seu piano é acompanhado por um ensemble de 17 mulheres. O belga trouxe apenas a violinista Gudrun Vercampt, que foi uma aposta ganha: tecnicamente irrepreensível, a intérprete interagiu com Mertens através de linhas melódicas nem sempre óbvias, frequentemente dramáticas, num processo que evidenciou uma comunicação quase telepática entre os dois músicos. Talvez Vercampt pudesse ter deixado o piano respirar mais em uma ou outra ocasião, mas as suas intervenções nunca foram sufocantes.
Para além do piano e do violino, também se ouviu a voz de Mertens, em quase todos os temas. Recorrendo ao falsete, o músico aplicou uma linguagem imaginária (não por acaso, chegou a fazer lembrar o Hopelandic, dialecto "inventado" pelos islandeses Sigur Rós), com reminiscências de francês antigo ou latim, ou seja, o interesse estava no significante, nos sons, na voz como mais um material, e não no significado das palavras. Esta opção tem sido atacada por muitos críticos e alguns fãs, algo injustificadamente: o tom é etéreo, angelical, as intervenções são esparsas e adicionam mais uma camada de complexidade às composições.
Mais criticável é o pendor neoclássico e nostálgico que Wim Mertens adoptou de forma quase exclusiva ao longo de mais de metade do concerto e que pareceu adormecer um pouco a plateia. É certo que a sua música se impõe com pezinhos de lã, mas a actuação ganhou bastante com momentos mais aventureiros, como Tacticity (um dos inéditos apresentados) e, já no encore, The personell changes (um momento mais próximo da pop e a fazer lembrar Michael Nyman): aqui, o pianista apresentou-se em claro confronto com a violinista Gudrun Vercampt, abandonando a abordagem complementar. Também com um andamento mais rápido, seguiu-se Watch! e, a fechar, já em regime de descompressão, 4 mains (originalmente incluído no arrojado álbum Vergessen, de 1982).
Em quase duas horas de actuação, Mertens só dirigiu um "obrigado" ao público, mas nem por isso deixou de percorrer a frente do palco no final de cada tema, agradecendo e erguendo os braços como se tivesse acabado de marcar um golo numa final do Campeonato do Mundo. Se alguma dessa energia tivesse sido aplicada musicalmente na primeira metade do espectáculo, em que estiveram ausentes o rasgo e o aventureirismo da fase inicial da sua carreira, ter-se-ia tratado provavelmente de um concerto a recordar. Assim, pode dizer-se que foi uma noite agradável e amena (em termos sonoros e meteorológicos), mas em que o empolgamento só apareceu perto do encore.
João Pedro Barros