Inventário de Portugal

Assim avançada esta descrição, relativizemo-la. Éverdade que é um filme que incorpora (e tem algo a dizer sobre) a relação entre documentário e ficção, ou que se constrói reflectindo (e dizendo algo sobre) os procedimentos práticos e formais normalmente associados ao cinema documental e ao cinema de ficção. Continuamos, de resto, a pensar num célebre aforismo de Godard, que propõe que odocumentário mais interessante é o que se integra na ficção, e a ficção mais interessante a que se integra no documentário - também sobre isso o filme de Miguel Gomes tem algo a dizer, e mais ainda a praticar.

Mas tudo isto parece sugerir uma oposição, um confronto, a ficção e o documentário jogados um contra o outro, porventura encarregues de sedesfazerem mutuamente num titânico "combate de géneros". Ora uma das coisas especiais de "AqueleQuerido Mês de Agosto" é que, justamente, nada acontece assim. Nem de uma "fractura" propriamente dita se pode falar, visto até que se alguma coisa existe no filme para simbolizar a passagem de um domínio a outro essa coisa é a imagem de uma ponte. Ficção e documentário, sim; mas não o que os separa, antes o que os une, não o que os bloqueia, antes o que entre eles circula. Em vez dum combate, um encontro - porventura tão incestuoso como o da história desenvolvida na sua ficção e certamente tão carnal como ela. Arrumemos assim a questão genérica: "Aquele Querido Mês de Agosto" é um filme sobre a ficção como desejo do documentário, e sobre o documentário como desejo da ficção. Há vários momentos, vários planos, que ilustram isto muito bem; mas escolhemos um, absolutamente extraordinário até na forma como "explica" o modo de funcionamentodo filme: aquele em que, já a ficção vai avançada e a história de amor adolescente/incestuoso/triangular se aproxima do seu pico dramático, um grupo de músicos que antes nos tinha sido apresentado em formadocumental "clássica" irrompe por uma cena adentro, cantando à desgarrada canções alusivas à situação narrativa. Tudo se encontra e se reencontra, tudo flui e se enleia, até formar uma unidade que setorna impossível (e se não impossível, inútil) desenlaçar.

Um desejo de cinema, chamemos a essa unidade. Talvez o tema do filme não seja outro. Como o leitor jádeve saber, estamos em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias eé tempo de bailaricos, procissões e incêndios. Rituais e mais rituais - e mesmo os incêndios o são, como se vê nas cenas na torre de detecção e no plano dos botões luminoso no centro de controlo. Quase um jogo, num filme que do princípio ao fim não pára de mostrar jogos e brinquedos, do dominó que a equipa de rodagem laboriosamente constrói na primeira sequência em que aparece aos peluches que decoram o quarto da miúda protagonista. Os "motards", aimagem de uma santa em luminoso efeito especial num céu nocturno, as narrativas sobre crimes de faca ealguidar, os homens da "Festa dos Colhões", os saltos de Paulo Moleiro (espécie de anti-herói local) da ponte para o rio. "Aquele Querido Mês deAgosto" é um filme sobre o cinema e um teatro de uma terra onde não se fala nem de cinema, nem de teatro,e onde provavelmente eles nem existem. Brincadeiras de gente crescida, persistência de um impulso infantil na idade adulta, gente que arrancou ao quotidiano o seu imaginário sem deixar de o manter lá cravado (as canções "românticas", a que jávoltaremos, entram por aqui). Se o documentário deseja a ficção, a realidade deseja o espectáculo e a narrativa, e inventa-as com o que tem à mão. Se há uma perspectiva etnográfica, nem por isso extraordinariamente remota, em "Aquele Querido Mês deAgosto", ela andará por aqui, neste olhar sobre asmúltiplas ficções disseminadas (e espevitadas)por um quotidiano falho de variedade.

Neste contexto, o cinema propriamente dito, a rodagemdo filme e a participação de intervenientes locais, éacolhido como mais um jogo, mais um ritual, de regras facilmente interiorizadas (como se vê num plano, aparente "recuo" na ficção, em que doisactores amadores debatem as suas experiências pessoais no trabalho da rodagem). É, importa dizer, um retrato daquilo a que dantes se chamava o "povo" que nada tem a ver com as suas comuns e redutorasrepresentações modernas propostas pela televisão (de onde, de resto, o "povo" praticamente desapareceu,resistindo nalguns programas matinais e só interessando à televisão da noite ou como "vítima"ou como "testemunha" de um assalto qualquer).

A ficção do filme quer-se melodrama, e isso implica música e implica canções. Abundam no filme, umas em "off", muitas em registo de actuações ao vivo, por profissionais (Marante, por exemplo) e poramadores a fingirem que são... amadores (os protagonistas). Ah, "música pimba", pensa o leitor, "ou é a gozar ou é a redimir". Mas não, nem uma coisa nem outra, e nenhum efeito "automático" nasce da profusão musical do filme. É simples: as canções nascem dali, a sua presença é tão real como as ruas ou as árvores. O filme não tem que as julgar, nem aos que as cantam, nem aos que as ouvem - limita-se a filmar gente que acredita naquelascanções, no acto de manifestarem essa crença. Rossellini propunha algo parecido quando se tratava de filmar a religiosidade dos outros. É tudo questão de encontrar a distância justa. A justeza de "AqueleQuerido Mês de Agosto" é uma coisa magnífica.

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