Depois da ratazana gourmet, um robô apaixonado: onovo prodígio da Pixar é uma extraordinária fábulasobre o que é ser humano num mundo cada vez maisvirtual. Vejamos: daqui a 700 anos, a Terra sobreconsumida tornou-se num deserto árido feito de lixo e poeira,onde só as baratas e os robôs sobrevivem, e os humanos retiraram-se para o espaço para aí viverem uma existência quase "virtual" como consumidorespassivos a bordo de super-naves automatizadas. Estariam perdoados por pensar que isto é apenas a mais recente distopia de ficção-científica em variação sobre a icónica "Matrix" dos manos Wachowski.
Em vez disso, o que acabámos de descrever é a base do mais recente prodígio animado por computador da Pixar de John Lasseter - sim, os mesmos dos "Toy Story" e de "À Procura de Nemo" e de "Ratatui". E um prodígio que, ao mesmo tempo que confirma a perfeiçãotecnológica e a sofisticação visual a que o estúdio de Emeryville nos habituou, regressa à própria origempioneira do cinema, à capacidade de contar uma história de modo puramente visual, sem as "âncoras"do diálogo narrativo.
Que o mesmo é dizer: os primeiros vinte minutos de "Wall-E" não têm diálogo de espécie nenhuma. E só um terço do filme, se tanto, tem diálogo falado. Nestes tempos em que o cinema quer tanto encher o olho que se carrega na espectacularidade em detrimento de tudo o resto, em que a narrativa é um simples pretexto para acumular as sequências de acção, os magos da Pixar respondem de modoabsurdamente simples: fazendo da própria imagem a narrativa, integrando tudo aquilo que é necessário ao espectador para seguir a história no modo como aspersonagens se movimentam e interagem com o seu universo, sem recorrer a "muletas" narrativas oudiálogos.
É, em suma, cinema em estado puro: uma experiência acima de tudo visual que invoca ao mesmo tempo os pioneiros da comédia cinematográfica (Chaplin e Keaton à cabeça) e a ficção-científica distópica ("2001: Odisseia no Espaço", "À Beira do Fim", "OÚltimo Homem na Terra" à cabeça), e que o faz dentro do quadro criativo da mais velha história do cinema -"rapaz encontra rapariga".
A questão aqui, claro, é que o "rapaz" e a "rapariga" são robôs. Wall-E é o único "homem do lixo" que resistiu à erosão do tempo na Terra abandonada, "almeida" solitário de um planeta deserto que desenvolveu uma personalidade decoleccionador maníaco e tem como único amigo uma barata curiosa. EVA é a sonda aerodinâmica esofisticada enviada à Terra para investigar se há sinais de vida vegetal que marquem a regeneração doplaneta e o retorno da sustentabilidade da vida humana. O homem do lixo e a super-modelo, em suma, um casal tão improvável como ternurento - se é que épossível chamar "ternurento" a metal e circuitos programados.
Mas, claro, no mundo da Pixar, como já percebemos, tudo é possível, e "Wall-E" é o passo seguinte da evolução da companhia que o geralmente incompreendido"Carros" pôs em marcha. Não só Wall-E e EVA são realmente dois românticos ternurentos como este é o filme mais arriscado, arrojado e experimental que o estúdio alguma vez produziu. Esta mistura quase sem diálogos de alegoria ecológica, sátira consumista (arrepiantemente certeira) e romance desastrado, querecorda a espaços o ostracizado "Cosmonauta Perdido" de Douglas Trumbull, é o evidente resultado decriativos que não estão interessados em fazer mais do mesmo mas sim em forçar os limites do que pode serfeito no cinema de animação.
E a ironia suprema de "Wall-E" é a de ser um filme sem narrativa convencional que conta uma históriamais bem construída, mais conseguida, mais inteligente e mais comovente do que 99 por cento daprodução "convencional" corrente. Porque, independentemente da distopia futurista, este é um filme optimista, que assume que enquanto a espécie humana tiver engenho e bom senso, o futuro só pode ser bom. E porque, apesar de ter robôs como estrelas e de ser uma aventura futurista, o que nele se conta é a história de um solitário que descobre o amor e de como isso muda, literalmente, o seu mundo. Está tudo nas lentes que servem de olhos a Wall-E - e na magia indecifrável com que Andrew Stanton e a sua equipa transformam essas lentes numa janela para a alma de um robô solitário num mundo vazio, e, por extensão, para a lição de humanidade que Wall-E e os seus confrades metálicos dão a uma sociedade que esqueceu o que é o toque humano (magistralmentereflectido nas "mãos" dadas, primeiro, de Wall-E e EVA e, depois, de John e Mary).
A palavra pode estar gasta, mas há casos em que não é possível usar outra: "Wall-E" é uma obra-prima.