O escritor que precipitou o princípio do colapso do comunismo soviético
Com um só livro, O Arquipélago do Gulag, mudou quase de um dia para
o outro a percepção da tragédia soviética e do sistema concentracionário. Faz parte daqueles escritores que são os grandes sociólogos da sua época
A Alexandre Soljenitsin, 89 anos, Nobel da Literatura, símbolo da dissidência soviética, morreu no domingo em Moscovo, pouco antes da meia-noite, de "insuficiência cardíaca aguda". Raros escritores tiveram tão grande impacto em vida. Mudou a percepção da tragédia russa e do terror estalinista, de forma quase absoluta, em poucos anos e por todo o mundo. Morreu feliz, disse sua mulher, Natalia: "Queria morrer no Verão e morreu no Verão. Queria morrer em casa e morreu em casa." A primeira parte da sua obra não pode ser circunscrita à narração da barbárie. Diz também respeito à irredutibilidade da condição humana, resumida numa frase do livro O Primeiro Círculo (1968) sobre o Gulag: "Quando privais alguém de tudo, ele deixa de estar sob o vosso poder. Ele volta a ser inteiramente livre."
Soljenitsin tornou-se célebre em 1962, ao publicar na revista literária russa Novi Mir uma curta narrativa, Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch, sobre um prisioneiro num campo de trabalhos forçados na Sibéria, imediatamente traduzido em todo o mundo e celebrado inclusive por escritores comunistas ocidentais. No campo, sem passado nem futuro, Ivan não se deixa desapossar do que lhe resta de humanidade, "capaz de experimentar algumas das grandes alegrias prometidas ao homem na terra: matar a sua fome, acabar um trabalho, contemplar um céu", escreveu o seu tradutor Georges Nivat.
Depois de outras obras marcantes, como A Casa de Matriona, a primeira bomba explode em 1968, com a tradução francesa de O Primeiro Círculo, em que descreve o horror dos campos destinados a intelectuais e cientistas e a demência do estalinismo do pós-guerra. Publica ao mesmo tempo, no Ocidente, o Pavilhão dos Cancerosos (proibido na União Soviética, onde circula em edições clandestinas). É-lhe atribuído o Nobel em 1970, mas não o recebe, pois teme não poder regressar à Rússia.
O impacto do Gulag
Em 1973, o KGB interroga a sua dactilógrafa - que depois se enforcará - e apodera-se de uma cópia de O Arquipélago do Gulag, que vinha escrevendo há anos, tendo já mandado um microfilme para a Europa. Ordena a imediata tradução em francês. Torna-se subitamente, à direita e à esquerda, o testemunho da falência política e da catástrofe humana do comunismo soviético. É um livro que combina romance, autobiografia, testemunhos e reflexão filosófica, na senda de escritores russos, como Tolstoi. O seu pressuposto é: o arquipélago grego foi o berço da nossa civilização, o arquipélago dos campos é a nossa nova civilização do século XX. "A fábrica da desumanização."
É sobre ele que se vai desenvolver um novo tipo de crítica radical do sistema. Foi definido pelo diplomata e sovietólogo americano George Kennan como "a maior e mais poderosa acusação isolada contra um regime político nos tempos modernos". O Times, de Londres, escreveu que "virá o tempo em que situaremos o princípio do colapso do sistema soviético na data de publicação do Gulag".
Preso e despojado da cidadania soviética, é metido num avião para a Alemanha em 12 de Fevereiro de 1974. Moscovo acabava de cometer mais um erro. Em vez de o condenar ao silêncio, deu-lhe uma tribuna e uma projecção universais.
É um romance peculiar, rigorosamente documentado, com testemunhos e análises que permitem compreender, de uma forma radicalmente nova, a engrenagem do sistema concentracionário soviético, rompendo os quadros tradicionais da historiografia e impondo uma releitura não só do estalinismo como da Revolução de 1917.
"Gulag" (acrónimo de "Direcção principal dos campos de trabalho") passa a ser sinónimo da barbárie soviética.
O dissidente
Alexandre Soljenitsin nasceu a 11 de Dezembro de 1918 em Kislovodosk, no Cáucaso, originário de famílias camponesas abastadas, já depois da morte do pai. A família muda-se para Rostov. Acompanha a mãe à igreja, que para sempre o marcará. Cedo se increve nas juventudes comunistas. Na Universidade de Rostov, faz o curso de Matemática e Física, começando a ensinar. É influenciado pela cultura alemã e não concebe viver sem a sua música.
Passa ao lado das "grandes purgas" estalinistas de 1936-37, reconhecerá mais tarde numa carta a um amigo "que lhe tentou abrir os olhos". Casa-se com uma colega e conclui estudos complementares em Literatura. É mobilizado em 1941, combatendo como capitão de artilharia na Prússia Orientel. Recebe duas condecorações.
A sua vida muda em 9 de Fevereiro de 1945, quando a polícia secreta (NKVD) o detém no gabinete do seu comandante. A polícia vigiava a correspondência que livremente trocava com um amigo, em que manifestava dúvidas sobre o génio militar de Estaline. Interrogado na prisão Lubianka de Moscovo, é condenado a oito anos de trabalhos forçados, passando por vários campos. Começa a escrever em restos de papel, que esconde e que, dirá mais tarde, fixará rigorosamente na memória.
Em 1952, é operado a um tumor maligno no pescoço. É libertado no dia da morte de Estaline, 5 de Março de 1953. Será reabilitado três anos depois, durante a desestalinização de Nikita Khrutchov.
Volta ao ensino e começa a escrever. Propõe à revista Novi Mir, de orientação renovadora, a publicação de Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch. O director obtém a aprovação de Khrutchov e Soljenitsin torna-se célebre. A lua-de-mel termina com a queda de Khrutchov, em 1964, e a ascensão o poder de Brejnev. Começa a perseguição aos escritores dissidentes. Apesar de autocensura, é recusada a publicação do Pavilhão dos Cancerosos. Entra em confronto aberto com o regime.
Após a edição do Pavilhão dos Cancerosos e de O Primeiro Círculo no estrangeiro, é expulso da União dos Escritores. Passa a viver com Natalia Svetlova. Encontra refúgio na casa do violencelista Rostropovitch. Dá sucessivas entrevistas à imprensa internacional, em que denuncia as perseguições e as calúnias de que é alvo na imprensa oficial.
Numa "Carta Aberta" ao ministro do Interior explica a recusa de ir a Estocolmo receber o Nobel e protesta contra as restrições que lhe são impostas, como a probição de residir em Moscovo com Natalia. "Aproveito a ocasião para lhe lembrar que a servidão foi abolida no nosso país há 112 anos. E diz-se que a Revolução de Outubro suprimiu os seus derradeiros vestígios."
Obceca-o a conclusão do Gulag. Cortadas as pontes, publicado o livro no Ocidente, é preso e metido num avião para Berlim, onde é recebido pelo escritor alemão Heinrich Böll.
O exílio americano
Instala-se em Zurique, tal como Lenine, viaja frequentemente até Paris. Em 1976, muda-se definitivamente para os Estados Unidos, passando a viver numa mansão isolada em Cavendish, Vermont.
O equívoco cedo se revela. Soljenitsin é acolhido como um paladino da democratização da URSS. Ora, ele começa a falar obsessivamente da Rússia vítima duma ideologia nascida no Ocidente. Acusa a ocidentalização da Rússia e demarca-se do modelo liberal do Ocidente. Ataca as Luzes e a Revolução Francesa. Defende a Vendeia. Condena a retirada americana do Vietname e a Revolução dos Cravos em Portugal.
Em 1978, fez em Harvard um discurso célebre sobre o declínio do Ocidente. "O declínio da coragem é hoje o traço mais saliente do Oeste para um observador externo. O mundo ocidental perdeu a sua coragem cívica, no conjunto e individualmente, em cada país, em cada governo e, certamente, nas Nações Unidas."
"Vivi toda a minha vida num regime comunista, e posso dizer-vos que uma sociedade sem referências legais é terrível. Mas uma sociedade baseada na letra da lei, e não indo mais longe, fracassa em desenvolver em seu proveito o largo campo das possibilidades humanas. A letra da lei é demasiado fria e formal para ter uma influência benéfica sobre a sociedade. Quando toda a vida se tece através de relações legalistas, resulta uma atmosfera de mediocridade espiritual que paralisa as tendências mais nobres do homem."
"Como pôde o Ocidente declinar, da sua marcha triunfal até à sua debilidade presente?"
A Roda Vermelha
Soljenitsin centra-se então na escrita daquela que considerará a sua obra máxima, A Roda Vermelha, 6600 páginas, concluída em 1990, a mais amada e a menos lida.
Composta num estilo aparentemente caótico, combinando ficção, documentos e longas dissertações históricas e filosóficas, é a narração do desastre histórico da Rússia, do princípio do século e das reformas de Stolipin, à catástrofe da guerra de 1914 e à instauração da ordem comunista. Mais do que a vitória de Lenine, é a crónica do fracasso do liberalismo russo e da Revolução de Fevereiro, "que só podia levar à anarquia". Acusou os historiadores ocidentais de andarem a reboque da historiografia soviética.
Organizou-a em diferentes "nós": é no nó que se constrói a orientação dos ramos. Assim aconteceu na revolução, "esta roda que marcha", "esta mó que tritura as nossas almas" e se torna sangue. Daí o título.
O exílio interno
Só regressará à Rússia em 1994. Em 1990 publica um longo artigo, uma espécie de "encíclica" com uma tiragem de 28 milhões de exemplares: Como ordenar a nossa Rússia?
Opõe-se a uma organização do Estado em moldes ocidentais. Um parlamentarismo partidário fracassará, a organização política deve ser construída a partir da base, dos conselhos de aldeia (zemstvos). Defendeu a "descolonização" dos povos não russos, mas dilacerou-o a separação dos eslavos, a perda da Ucrânia e da Bieolorrússia. Doravante, fala como um profeta que os compatriotas não escutam.
Acusa de novo os liberais russos. "É um mundo estranho e de ilusões o que nasceu na Rússia nos anos 90", disse numa entrevista de 1988. "Somos uma República de eleições livres, com uma imprensa na aparência livre. Todavia, as personalidades mais corruptas mantiveram os seus lugares e é em vão que se procuram os assassinos. Por causa da cínica crueldade dos bandidos, o preço da vida humana está reduzido a um zero. (...) É a oligarquia que governa e tanto lhe faz que o povo sobreviva ou não."
Em 2007, aceitou o Prémio do Estado, concedido por Vladimir Putin, a quem dava o benefício da dúvida. Eslavófilo e partidário de um "Estado forte" e dos valores tradicionais russos, saudou a sua política de resistência ao "cerco da Rússia", que já "não representa nenhum perigo", pelas potências da NATO - da Ucrânia ao Cáucaso e à Ásia Central.
Soljenitsin "já entrou no Panteão da literatura russa", dizem em Moscovo. Mas um panteão muito especial. Ele pertence àquela espécie de romancistas que são os grandes sociólogos de uma época, a que só através deles podemos aceder. Neste caso, um sociólogo daquela Rússia que ele amava: a que já não existe.