dEUS no sangue de Paredes de Coura, o diabo no corpo dos Wraygunn
Ontem de madrugada, já com três dias de festival (e já com um homem-tigre em cima), lia-se isto nos lábios de 20 mil pessoas: Paulo Furtado, oh baby all night long. Também nos agarrávamos com unhas e dentes aos dEUS, mas Tom Barman não passou para o lado de cá do espelho
a Paulo Furtado, oh baby all night long. Saímos de Paredes de Coura a dizer isto, ontem às 3h30 da manhã, já com três dias de festival e um lendário homem-tigre em cima: Paulo Furtado, sem óculos, a ameaçar-nos de morte se não lhe largássemos o sapato. Ainda estamos a tentar perceber se foi ele que caiu em cima do festival ou se foi o festival que caiu em cima dele, mas estamos mais para aí virados.Este ano ainda não tínhamos visto Paredes de Coura a agarrar-se com unhas e dentes a nada - tem de ser geracional, os bilhetes com desconto de Cartão Jovem estão esgotados, portanto nem vale a pena perguntar onde é que estes miúdos estavam quando os Sex Pistols eram tudo na vida, quando os Primal Scream apareceram com um álbum duplo vermelho e quando os dEUS nos puseram a olhar para o mapa a ver onde é que ficava a Bélgica, porque ainda não estavam -, e vimos Paredes de Coura a agarrar-se com unhas e dentes aos Wraygunn. Um dia eles vão poder dizer que andaram com este festival ao colo.
Tinha havido dEUS - e dEUS está no sangue de Paredes de Coura desde 1999, quem tinha idade para estar lá nesse ano tinha obrigação de ter ouvido Worst Case Scenario, In a Bar, Under the Sea e The Ideal Crash, de preferência em cassete, como se não houvesse amanhã - antes de haver o diabo, no corpo dos Wraygunn, e por momentos o festival também se agarrou com unhas e dentes a eles, como se estivesse em casa. Os dEUS estão - voltam em Outubro para mais dois concertos, em Lisboa e no Porto, disse Tom Barman antes de acender o último cigarro para se ir embora. Não durou para sempre.
Wraygunn a fechar
Foi um grande concerto dos dEUS (não podemos dizer o mesmo do último que tínhamos visto, ainda durante a digressão de Pocket Revolution), um concerto do tamanho do novo Vantage Point e também do tamanho de tudo o que passámos com eles até 1999 (Instant street, Fell off the floor, man, Turnpike, Nothing really ends, Suds and soda, Roses e Serpentine); o público é que nunca foi do tamanho deles. Também ajudava Tom Barman ter passado para o outro lado do espelho, o nosso, e ameaçar-nos de morte se não lhe largássemos o sapato: não iríamos largar, para um dia podermos dizer que andámos com os dEUS ao colo.
Temos outro troféu de caça, os Wraygunn, que fecharam o palco principal por acidente (os Mars Volta preferiram tocar às 21h30, para poderem sair mais cedo: ficámos sem saber o motivo de tanta pressa, porque o próximo concerto é só na segunda semana de Setembro).
Acabaram muito melhor do que começaram (sim, podia ter corrido mal: em Just a gambling man e Ain't gonna break my soul, as primeiras duas canções do alinhamento, os Wraygunn pareceram em dificuldades), com o festival, completamente sob o efeito do tandem She's a go-go dancer / Drunk or stoned, todo do lado deles, mas sobretudo do lado de Paulo Furtado, Raquel Ralha e Selma Uamusse: os Wraygunn andaram com o festival às costas dos Wraygunn, mas eles andaram com os Wraygunn às costas, oh baby all night long.
Mars Volta e autofagia
Nunca saberemos o que teria acontecido se fossem os Mars Volta a acabar a noite, mas de certeza que não teria acontecido isto: há uma química imediata com este homem-tigre que fala a mesma língua que nós. Os Mars Volta falam uma língua que ainda não foi descoberta (o espanto é esse: eles chegaram a território desconhecido muito antes de nós), e que é tão estranha quando se parece com uma língua-morta (a língua-morta de Jimi Hendrix e dos Led Zeppelin) como quando se parece com uma língua que está por inventar.
Há autofagia no que eles fazem em palco (coisa para passar de boca em boca, porque não há fotografias nem vídeos, pelo menos oficialmente): um rock quase suicida, com a voz sempre no limite de Cedric Bixler-Zavala e as guitarras sempre no limite de Omar Rodríguez López a canibalizarem-se uma à outra. Nem toda a gente quis aventurar-se com eles.
Também nem toda a gente quis aventurar-se com os The Teenagers, a banda das 20h30: podiam ser o futuro da França, mas ainda só editaram um álbum e já estão um bocadinho cansados de ser sexy (pronto, vamos fazer queixinhas: Quentin Delafon, o vocalista, tem atitude a mais).
Foram sexy: Starlett Johansson, Feeling better, Fuck Nicole, Make it happen e Homecoming, em que mandaram vir uma cheerleader do público para cima do palco, estiveram ali para isso. Depois foram à vida deles e nós fomos à nossa, que já não era exactamente a mesma depois da primeira banda do dia em Paredes de Coura, os Spiritual Front (mais quatro rapazes de preto: tivemos muito disso nesta edição do festival). Também têm qualquer coisa a mais - Bad Seeds a mais, possivelmente -, mas disso já não nos vamos queixar. As canções deles levam-nos a qualquer lado com aqueles crescendos (o de Bastard angel é uma das coisas que se levam para casa deste festival), as dos Teenagers põem-nos a dançar, mas sem sairmos do sítio.